Conexão Portugal–Brasil

A cantora portuguesa Eugénia Melo e Castro. Foto: Luiza Sigulem
A cantora portuguesa Eugénia Melo e Castro. Foto: Luiza Sigulem


Em 6 de janeiro de 1981
, aos 22 anos de idade, a jovem cantora portuguesa Eugénia Melo e Castro refez, solitária e por via aérea, a trajetória que levou seus ancestrais a cruzarem o Oceano Atlântico e descobrirem nosso País. A revelação do Brasil para Eugénia deu-se por meio da música popular produzida aqui, uma paixão indissociável de sua trajetória artística e de suas escolhas estéticas.

Nascida em Covilhã, no distrito de Castelo Branco, Eugénia é filha do poeta Ernesto Manuel Geraldes de Melo e Castro, conhecido no meio literário como E.M. de Melo e Castro e por sua importância para a poesia concreta lusitana, e da também escritora e jornalista Maria Alberta Menéres, uma das mais expressivas autoras da literatura infantojuvenil portuguesa.

Por influência do convívio estreito de seus pais com a elite intelectual brasileira – por interesses afins do concretismo, Ernesto manteve intenso diálogo criativo com os irmãos Augusto e Haroldo de Campos e Décio Pignatari –, desde a mais tenra infância Eugénia aproximou-se da cultura de nosso País. Encantou-se, sobretudo, pela produção de música popular lançada a partir da segunda metade do século 20.

Apaixonada pela revolução bossa-novista de João Gilberto,Tom Jobim e Vinicius de Moraes, a ousadia tropicalista de Gal Costa, Gilberto Gil e Caetano Veloso, o samba engajado de Chico Buarque e as sutilezas harmônicas de Milton Nascimento, Lô Borges e Toninho Horta, Eugénia aterrissou no Brasil naquele Dia de Santo Reis, há 35 anos, com o propósito de fazer um convite a outro célebre expoente do Clube da Esquina, o compositor e arranjador Wagner Tiso. O pianista mineiro nem sequer havia ouvido falar da jovem portuguesa. No entanto, destemida como seus ancestrais, Eugénia bateu na porta da casa de Tiso, certa de que o convenceria a assinar os arranjos de seu álbum de estreia. “Para os que estavam a minha volta em Portugal eu estava fazendo uma loucura. Como havia imaginado tudo de uma forma tão real, tinha projetado em minha cabeça que era aquilo que eu queria, sabia que não estava a fazer absolutamente nada de extraordinário.” Eugénia estava certa. Na contracapa de seu LP de estreia, Terra de Mel, lançado em 1982, com grande sucesso, está o nome do músico.

Memórias como essa vieram à tona durante visita de nossa reportagem ao apartamento da cantora nos Jardins, na capital paulista. O encontro resultou em quase duas horas de conversa descontraída, pontuada por diversos temas.

Eugénia relembrou a parceria de mais de  dez anos com Tiso, colaboradores de arranjos e direção musical como Tom Jobim, Francis Hime e Nelson Ayres e revelou particularidades de uma trajetória consagrada com a produção de 26 álbuns e duos de composição e interpretação com estrelas como Chico, Caetano, Gal, Milton, Gonzaguinha e Ney Matogrosso. Claro, revelou também detalhes da concepção de seu novo espetáculo, SereiA Portuguesa.

Idealizado em celebração a este ano especial, o show foi apresentado em primeira mão para o público paulistano em novembro de 2015. Nele, Eugénia revisita origens. Executado ao lado do violonista Swami Jr. e do acordeonista Olivinho, o repertório de SereiA Portuguesa é pontuado por clássicos da música lusitana, sobretudo pelo lirismo do fado de artistas como Amália Rodrigues e Francisco José. Ao longo de 2016, Eugénia pretende levar SereiA Portuguesa a diversas capitais do País – tem fechadas apresentações em 17 unidades da Livraria Cultura em diferentes estados do Brasil.

Defensora da liberdade e de transformações sociais por meio de valores humanistas, Eugénia também faz considerações sobre assuntos espinhosos, como a superação da crise econômica que assolou seu país a partir de 2008, opiniou sobre a crise institucional vivida hoje pela sociedade brasileira e manifestou sua percepção sobre a posição de Portugal na frente europeia de combate ao terrorismo.

A seguir, divididos por temas, os melhores momentos da conversa com Eugénia Melo e Castro.

Eugénia apresenta em SP o espetáculo SereiA Portuguesa, uma ode a sua terra natal. Foto: Divulgação/Arquivo Pessoal
Eugénia apresenta em SP o espetáculo SereiA Portuguesa, uma ode a sua terra natal. Foto: Divulgação/Arquivo Pessoal

Rebelde com causa
Sou rebelde, mas nunca fui uma rebelde sem causa. Estudei em colégios internos e, por exemplo, achava uma coisa patética, um tanto ridícula, ver todas as meninas vestidas da mesma forma e aquela coisa religiosa, católica, de que meus pais eram completamente contra, mas de que meus avós faziam questão. Como meus pais tinham uma rotina maluca, eu ficava muito tempo com meus avós e tinha de me submeter à vontade deles. Na terceira e última vez que consegui ser expulsa, a família inteira ficou a chorar, mas meu pai veio dizer: “Parabéns, até que enfim!”.

Brasil, uma paixão
Desde criança era apaixonada pelo mundo dos meus pais. Eles levavam amigos para casa e eu ficava ouvindo as conversas, participava de tudo e essa paixão pelo Brasil surgiu daí. Meu pai comprava muitos discos de música brasileira, mas quem mais os ouvia era eu. Ia para a biblioteca, pegava minha vitrolinha e passava horas a ouvir aqueles discos. Apaixonada, eu ficava a pensar: “Meu Deus, como é possível cantar em português e fazer coisas tão bonitas e harmoniosas sem se entregar à cafonice”.

“Fui caçada pela MPB”
Na adolescência eu até me divertia com a música portuguesa, mas ela não era o que eu queria enquanto cantora. Fui caçada pela MPB. Havia artistas portugueses que eu gostava, como Zeca Afonso, Sergio Godinho e Mario Branco, artistas muito especiais, mas eu não gostava dos arranjos das canções. Achava as músicas muito tristonhas. A música portuguesa tem muita influência da França, da canção de exílio e de protesto. Não queria nada daquilo para mim, porque já havia ouvido Chico Buarque, João Gilberto, Nara Leão, Elis Regina. Era outra coisa.

Sereia portuguesa
O começo de minha carreira no Brasil foi bem difícil. As pessoas pediam para eu cantar fado e eu retrucava: “Não sou fadista, não canto fado!”. Tive, inclusive, de me defender algumas vezes de uma forma até antipática para me descolar dessa imagem. Passados 35 anos, para mim é completamente indiferente ser fadista, sambista, cantora de jazz, de rock n’ roll ou punk. Hoje, sou uma pessoa tranquila, a vida mudou e senti vontade de fazer algo que desejava há muito tempo, que é brincar com as canções portuguesas dando a elas novas leituras. Coloco-me muito mais como uma cantora de jazz e de blues, de voz pequena, uma coisa mais bossa-nova, mais Tom Jobim. Senti que eu devia esse espetáculo ao Brasil porque, nesses anos todos, sempre fui bem tratada pelos brasileiros e os portugueses que aqui estão.

Escolhas estéticas
Sou econômica, mas não na emoção e sim na emissão. Sou cantora lírica soprano. Tenho uma tessitura de três oitavas. Cantar de forma comedida é uma escolha estética. Não quero ficar na mesma nota, a mostrar minha ginástica vocal do Natal até a Páscoa. Não me interessa essa escolha. Aliás, tudo em minha vida envolve escolhas. De decisões a amizades, tudo passa pela estética, a ética, a educação e o bom caráter. Interessam-me pessoas poucas, mas boas.

Duas nações, uma língua
Sempre cantei com o português de Portugal. Algo complicado, porque as métricas são diferentes. Lembro um dia em que Tom Jobim, a quem tive a felicidade de ter como conselheiro, disse: “Eugénia, a divisão das sílabas é fundamental”. Respondi: “Tom, para mim, o grande problema são as vogais”. Ele sorriu e expliquei melhor: “Se tenho de dizer ‘Belém’, engulo o ‘e’ e digo ‘Blém’. Se tenho de cantar ‘diferente’, canto ‘difrente’”.

Intercâmbio
Há alguns anos nossos jovens têm vindo ao Brasil e levado muita informação a Portugal. Há também uma grande mudança da imagem do nosso país para os brasileiros e isso vai ao encontro de algo que por muitos anos estive a fazer sozinha, que é demonstrar que em Portugal também existe música, cinema, que temos grandes artistas visuais, que temos teatros fantásticos. Na maioria das entrevistas que dei dez minutos eram dedicados ao meu trabalho e todo o resto para falar de Portugal.

Fado renovado
Neste momento, em Portugal, há uma geração de artistas jovens que provam que não é impossível fazer coisas novas com o fado. Eles fazem experimentos, misturam influências com abertura absoluta para tudo que vier. Tem gente a fazer fado com guitarra elétrica, com bateria, com piano, com influência de jazz. Acho muito bom, porque a base poética do fado é muito rica. Há, por exemplo, um fado de Ana Moura, desconhecido no Brasil, mas que já atingiu o disco quíntuplo de platina em Portugal, chamado Desfado. A letra é genial, diz coisas como “ai que saudades que tenho de sentir saudade”. Ela desdiz o próprio fado e a música é uma coisa alegre, não tem nada de pesado.

Encanto legítimo
Por tudo que aconteceu nos descobrimentos, Portugal é até hoje criticado, mas tenho uma visão particular do que fizemos no Brasil. Claro, em Minas Gerais, por exemplo, tiramos todo o ouro, mas a gente misturou-se, casou-se, teve filhos e apaixonou-se aqui. Houve um encantamento legítimo de Portugal com relação ao Brasil.

Poder jovem
Portugal passa agora por uma crise que estamos a superar, mas ainda pagamos, com a língua no chão, por nossas extravagâncias. O novo-riquismo e a cafonice consumista tiveram de acabar, as pessoas tiveram que voltar para a Terra e, hoje, a criatividade esta à solta. A juventude é guerreira e tem ajudado a superar a crise. Sempre tivemos essa coisa dos argonautas de encarar o desconhecido na base do “sai da frente que atrás vem gente e eu quero ir”.

Imigração e terror
Os portugueses mais idosos morrem de medo do terrorismo, mas temos de separar as coisas e considerar que, no caso dos imigrantes, o lado humano vem em primeiro lugar. Eles fogem da guerra e esse é um direito legítimo. É óbvio que em meio a centenas de milhares de pessoas que enfrentam esse drama pode haver um ou outro mal intencionado, mas esses são riscos inevitáveis. É algo que dispensa opiniões contra ou a favor, porque se trata de uma questão humanitária.

Retrocesso e alienação
Quando penso em grupos como o Estado Islâmico, completamente inconsequentes e facínoras, sinto que a humanidade retrocedeu anos-luz. Nesse momento, existem milhões de mulheres presas, torturadas, mutiladas e sendo submetidas à escravidão sexual. É preciso que isso venha à tona. O mundo ocidental está completamente alienado. Que tipo de progresso estamos vivendo?

Brasil, segundo Eugénia
Enxergo o País com olhos de estrangeira. Acho que não devo me meter na política do País, mas sempre analisei as coisas pelo lado social e sei de tudo que aconteceu por aqui depois da reabertura política. Sei da reconquista da liberdade de expressão, do crescimento do País, da distribuição de renda e do aumento da qualidade de vida das pessoas. Mas é preciso lembrar que o Brasil é um país continental e que, por essa dimensão, problemas como a corrupção, consequentemente, envolvem cifras gigantes.

Ignorância histórica
Quem defende a ditadura no Brasil não tem a menor ideia do que está falando. Isso é um horror. Uma coisa é mudar as ações do governo, outra coisa é querer a volta do regime militar. Esse radicalismo é a imagem que, de fato, parece marcar a loucura em que o mundo se encontra. Acho que temos de discutir alternância, mas pensar dessa forma é estupidez. O regime militar é brutal. A gente tem, sim, é que tentar mudar o sistema político ou mudar o governo por meio do voto democrático. Que haja revoluções e não retrocessos. Essa história dos saudosistas dos militares, ignorantes que querem a volta da ditadura, não é exclusiva do Brasil. Também ouço muito em Portugal. Um bando de idiotas que argumentam coisas como: “No tempo do Salazar era muito melhor. As pessoas não passavam fome”. Ok, mas também não podiam abrir a boca para outros fins. 


Comentários

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Esse site utiliza o Akismet para reduzir spam. Aprenda como seus dados de comentários são processados.