Edvaldo Vianna conheceu o Movimento dos Trabalhadores Sem-Teto (MTST) em 2006, quando vivia de aluguel no bairro Jardim Varginha, na zona sul de São Paulo. “Vi pela televisão uma ocupação no Taboão e decidi me juntar ao grupo. Não saí mais de perto.” Hoje, ele trabalha como porteiro no canteiro de obras do conjunto de prédios onde vai morar. O Condomínio João Cândido fica no Jardim Salete, à margem da Rodovia Régis Bittencourt (BR-116), no município de Taboão da Serra, região metropolitana da cidade.
Ao longo do ano passado, o MTST despontou como um dos mais fortes movimentos sociais do país. Multiplicando as ocupações de terrenos ociosos em São Paulo e outras capitais, reuniu dezenas de milhares de pessoas nos acampamentos e escancarou o problema crônico da falta de moradias populares nas cidades. Mas o crescimento é só uma das facetas da transformação pela qual passou o MTST.
Em Taboão da Serra, Edvaldo e outros antigos acampados trabalham na construção de seus apartamentos, viabilizados pelo programa Minha Casa Minha Vida, que também favorece, por meio da modalidade “Entidades”, movimentos sociais. É a primeira conquista do MTST em 18 anos de história. “Depois desses prédios, o pessoal começou a acreditar no movimento. No início, muitos diziam que não ia dar em nada, que era baderna”, lembra o porteiro Edvaldo.
O MTST foi fundado em 1997, a partir de um debate do Movimento Sem Terra (MST) sobre a necessidade de expandir suas bases do campo às cidades. Assumiu postura independente em relação ao governo e se distanciou do MTS depois da chegada do PT à presidência da República, em 2003.
No entanto, as primeiras experiências foram dramáticas. Quando grandes ocupações sofriam despejo, o MTST perdia o que havia construído e toda a base se desestruturava. As que não eram despejadas por vezes terminavam como favelas — e saíam do controle político do movimento.
A solução encontrada pelo MTST foi passar a entender suas ocupações como um momento de pressão, erguendo barracos provisórios de lona e organizando as famílias para além do terreno, a partir de um cadastro. Assim, os sem-teto passaram a continuar ligados ao movimento, participando de ações para pressionar o poder público pela construção de suas casas. A presença nessas atividades também passou a contar pontos. Os que participam ao longo de todo o processo de reivindicação têm acesso à moradia.
“Um colega tem 187 atos, que é 95% de participação. Eu tenho 157 por que desacreditava um pouco”, conta Idelni Pereira, militante que hoje trabalha na faxina da obra em Taboão da Serra. “Às vezes, a gente se cansa por que tudo do governo é demorado. Só quando vi que ia conquistar esse terreno que comecei a ir nos atos.”
Edvaldo e Idelni são apenas dois militantes, entre tantos, que agora aguardam as chaves dos apartamentos do condomínio João Cândido – todos participam das mobilizações do MTST desde a ocupação de um terreno na região, em 2005. “Enfrentamos a polícia, a Prefeitura, ocupamos a Câmara, fizemos marchas pacíficas”, conta Edvaldo. Idelni lembra de um episódio ocorrido em 2006, quando um grupo entrou em greve de fome e se acorrentou nos portões do Palácio dos Bandeirantes, exigindo pagamento da bolsa-aluguel.
O condomínio João Cândido terá 1.080 apartamentos, áreas de lazer e postos de saúde. Jussara Basso, coordenadora estadual do MTST, afirma que o Minha Casa Minha Vida foi criado em 2009 para “impedir que a crise econômica norte-americana, que era uma crise do mercado imobiliário, atingisse o Brasil”. Ela ressalta que o programa surgiu para dar mais popularidade ao governo. “Foram destinados R$ 32 bilhões para as empreiteiras, injetando dinheiro na iniciativa privada.”
Como funciona
No sistema padrão do Minha Casa Minha Vida, os beneficiários podem acessar o financiamento de um imóvel à disposição no mercado. Mas, a partir da pressão dos movimentos de moradia, o governo desenvolveu o Entidades, que permite a uma associação ter acesso a crédito coletivo. Dessa forma, os movimentos podem organizar suas demandas e ter algum grau de controle sobre a obra. É o caso do Condomínio João Cândido.
Isso pode acontecer de duas maneiras. Uma é a autogestão (ou gestão direta), na qual o movimento tem autonomia para administrar os recursos, organizando seus militantes em cooperativas de trabalho. Outra é a chamada “empreitada global”, na qual o movimento contrata uma empreiteira com a verba que recebe, abrindo mão de um maior controle sobre a obra.
Em Taboão da Serra, o MTST optou pela segunda opção. Contratou a construtora Esecon e negociou a dimensão do projeto, além da contratação de 80 militantes como funcionários nos canteiros da obra. Jussara Basso avalia os apartamentos do novo condomínio como um ganho: “A unidade de três dormitórios aqui tem 64m²”. Essa fórmula adotada, chamada pelo MTST como “menos lucro para a empreiteira, mais metros quadrados”, não é nova.
Antes do Minha Casa Minha Vida, ainda na década de 1990, os movimentos de moradia que experimentaram a autogestão dos recursos governamentais sempre obtiveram unidades maiores e melhores.
Em Taboão, o primeiro projeto dos edifícios foi pago em 2009 pela Prefeitura do município e elaborado pela Usina, escritório de arquitetura que presta assessoria técnica a movimentos sociais. “Foi um processo coletivo muito interessante, mas também uma aposta nossa e do movimento”, lembra Flávio Higuchi, arquiteto. A aposta não avançou: a versão inicial foi rejeitada pelo poder público que, alegando problemas técnicos, apresentou um novo projeto feito pela Companhia de Desenvolvimento Habitacional Urbano (CDHU). No entanto, esse projeto ficou caro demais e foi revisado pela Usina em 2012.
“Mas o mais importante é aquele terreno, que foi a vitória do movimento”, pondera Higuchi. Segundo Jussara, no Minha Casa Minha Vida, “como a empreiteira recebe R$ 76 mil por unidade habitacional, ela sempre procura o terreno mais barato, que está na periferia da periferia, nas áreas onde não têm equipamentos públicos, transporte, saneamento básico”.
O Condomínio João Cândido, ao contrário, tem localização privilegiada. O terreno pertenceu ao primeiro prefeito do município, emancipado da cidade vizinha, Itapecerica da Serra, em 1959. Após a morte do proprietário, sua filha Salete tentou lotear e vender uma parte da terra. Por pressão do MTST, a outra parte, ociosa, foi desapropriada pela CDHU em 2009. Um casarão do antigo prefeito, abandonado, foi recuperado e transformado na sede da associação, onde hoje os futuros moradores fazem suas reuniões.
Jussara explica que esse espaço é muito importante, porque “a partir da moradia consolidada, a luta está só começando. Outras pautas sociais vão precisar ser levantadas”. Edvaldo assegura: “A gente não vai querer só morar dentro do apartamento. Nossos filhos precisam de escola, de médico, condução”.
A construção das moradias, então, abre uma nova questão: por onde continua a luta do Movimento Sem-Teto após a conquista do teto? Além do Condomínio João Cândido, o MTST tem construções andamento em Santo André e Hortolândia, região de Campinas, pelo Minha Casa Minha Vida Empreiteiras, e espera o início de outras em São Gonçalo, Embu das Artes, Distrito Federal e zona leste de São Paulo.
Conquistada a casa, continuarão os moradores tendo motivação para se mobilizar, já fora do sistema de pontuação? Edvaldo não tem dúvidas: “Se tem moradia pra mim, tem que ter pra todo mundo que precisa. Como muitos me ajudaram, agora tenho que ajudar muitos”, reforça Idelni. “E depois da moradia, vem transporte, educação, a saúde, a gente vai estar sempre lutando. A nossa vida vai ser sempre essa: entramos no movimento, não saímos mais.”
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