Consumir é preciso

A Baía do Guajará é um dos principais cartões-postais da capital paraense. O antigo porto da cidade – onde hoje está a Estação das Docas, complexo cultural, turístico e gastronômico – serviu de palco para o lançamento do Nestlé até Você a Bordo, um supermercado flutuante, que irá fazer com que os produtos da gigante suíça cheguem a consumidores locais, das classes C, D e E. Uma população que, somada, chega ao impressionante número de 800 mil moradores, isolados em 18 comunidades ribeirinhas. Gente que, por via terrestre ou navegando em precárias embarcações, não leva menos de duas horas para chegar à capital.

A ação demandou o empenho de quase R$ 1 milhão na reforma e na transformação do barco Terra Grande em um supermercado. Por quase dez anos, a embarcação foi utilizada para o transporte de palmito e maquinários de cultivo e extração da fazenda de mesmo nome. A estratégia comercial da Nestlé, longe de representar tão somente uma preocupação de inserção social de classes menos favorecidas, atesta números que não podem ser ignorados. De 2008 a 2009, o consumo de seus produtos pelas classes C, D e E cresceu 27% e fechou o ano com um faturamento perto de R$ 1,2 bilhão. A convite da empresa, a Brasileiros foi acompanhar de perto o início das atividades e, após mais de duas horas atravessando as águas da baía do Guajará, chegamos ao município de Barcarena, onde encontramos personagens com subsídios reais para vermos a expectativa e o impacto da iniciativa sobre seu público-alvo.

O rei do “chope” e seus clientes
Gregório Borges de Almeida tem 62 anos. Aguardo os homens da marinha mercante ancorarem e mantenho os olhos fixos em Gregório. Escorado em uma das pilastras da cobertura do cais, ele abraça o isopor que há quase 20 anos é sua garantia de sustento diário. Dentro dele, dezenas de embalagens plásticas contendo refrescos congelados de uma mistura de água e frutas, como maracujá, coco, manga e abacate. Em Belém, o famigerado “geladinho” ou “sacolé” é chamado “chope”. Ao custo unitário de R$ 0,50, Gregório vende uma média diária de 100 a 120 “chopes”. Ele não tira os olhos da embarcação e atesta com palavras a surpresa que o acomete. Entusiasmado, confessa certo orgulho de que sua comunidade tenha sido incluída no projeto. Dentro do barco, gôndolas, freezers e geladeiras oferecem leite em pó, café, complementos alimentares, sucos, bolachas, água mineral, chocolates, rações para animais domésticos e até sorvetes em massa e picolé. Falo sobre esses dois últimos itens e pergunto a Gregório se a chegada de tal concorrência não o preocupa. Ele sabiamente conclui: “Quem compra comigo paga só R$ 0,50. Duvido que haja picolé que custe só isso!”. Motivado a buscar opiniões de outros comerciantes locais, peço a ele que me indique como chegar aos mercadinhos da cidade. Anoto uma dica e sigo adiante. Antes de partir do cais, dou de cara com três clientes usuais de Gregório, os gêmeos Jairo e Jair, de 12 anos, e Quinho – curioso apelido de Sebastião -, de 13 anos. Os três comemoram a chegada do supermercado e, apesar de carregarem uma penca de jambos, colhidos a poucos metros do cais, confessam que adoram iogurte, sorvetes e chocolates.
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Consumo consciente
Maria de Jesus Dias Barbosa, ou dona Jesus, é a gerente do Mercado São Francisco. Neta do empreendedor que há 70 anos abriu uma mercearia no pequeno vilarejo, dona Jesus é testemunha ocular do desenvolvimento de Barcarena. Em meados dos anos 1980, com a chegada de indústrias, viu a população crescer freneticamente, até chegar aos atuais 80 mil habitantes estimados e a mercearia teve de se transformar em um minimercado. A mudança provocou reações inusitadas: “No começo, as pessoas tinham receio de pegar os produtos nas gôndolas. Estavam acostumadas a chegar com uma lista que era selecionada pelo próprio balconista. Para eles, tirar o produto da prateleira era como se os roubassem”. O mercado é um dos maiores revendedores de produtos Nestlé na cidade e dona Jesus comprova a tese de que os consumidores menos favorecidos vêm mudando seus hábitos: “Até uns sete, oito anos atrás, vinham aqui somente para comprar leite em pó. Hoje, é comum você ver essas famílias comprando creme de leite, bolachas e até chocolates e sorvetes”.

Dona Jesus não sabia da novidade do barco e me pede para levá-la até ele. No caminho, me recomenda falar com Raimundo Nonato, presidente da Associação dos Condutores de Estudantes do Município de Barcarena. A entidade agrega 282 barqueiros que transportam, diariamente, 12 mil crianças do município para as escolas. Nonato também é pego de surpresa, mas aprova a chegada do barco da Nestlé e ainda comemora a coincidência de ele ter ancorado justamente no dia em que os 282 associados recebem o pagamento da prefeitura. Dentro do supermercado, apresento Nonato ao carioca Alexandre Costa, diretor de regionalização da Nestlé do Brasil, que ouve atentamente a boa nova de que o presidente iria trazer os associados para as compras. Nonato sugere que o barco ancore sempre após o pagamento da prefeitura, para facilitar as coisas para os dois lados, e Alexandre pondera que, como tem de visitar outras 18 comunidades, terá de buscar adequação para atender a todos da melhor forma possível.

Missão cumprida, na partida observo a fila de consumidores que vai se avolumando no caixa e penso na questão que merecerá cuidado especial da Nestlé: a reciclagem das embalagens desses novos hábitos. Na coletiva de imprensa, a empresa informou que investirá maçicamente na redução de impactos e o próprio barco recebeu em suas instalações algumas lixeiras para triagem de materiais. O projeto envolve questões sociais e comerciais muito complexas, mas é inegável que o acesso a esses bens de consumo é sintoma de uma nova realidade, irrecusável e que cobra responsabilidades dos dois lados. Consumir com consciência, isso, sim, é preciso.

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