Contadores de “causos”

Rosário Borges, de família tradicional de Batatais, interior de São Paulo, era dono do cartório da cidade. Um de seus maiores prazeres era escrever, principalmente, lendas e anedotas. Ao saber disso, o doutor Gabriel Monteiro de Barros, um delegado aposentado morador de uma fazenda naquele município, chamou Borges para uma conversa. Ele queria contar seus “causos” e anedotas para que o “cumpadre” registrasse tudo em um caderno. E assim foi feito. Doutor Gabriel garantiu que todas as histórias, ocorridas entre 1894 e 1964, eram verídicas. O caderno ficou guardado com o tabelião durante anos. Em seu leito de morte, Rosário contou sobre os escritos ao seu filho, o também tabelião Antônio Carlos Paladino Borges, e pediu que ele os guardasse por dez anos após sua morte, e só então poderia publicá-los. E foi o que Antônio Carlos fez. Entregou o material ao jornalista João Garcia Duarte Neto, que o transformou no livro As Anedotas Picantes do Doutor Gabriel (Caros Amigos Editora), com prefácio de José Hamilton Ribeiro.

O INSUFICIENTE
Otacílio era um negro alto e magro e lá ia pelos seus setenta anos. Enviuvou na roça na época em que os fazendeiros estavam derrubando as casas da fazenda. Foi mais um na leva do êxodo rural provocado pelo Estatuto da Terra.
Com os filhos já criados, e com uma reservinha de dinheiro que tinha guardado durante muitos anos, comprou uma casinha na cidade. Se antes mexia com gado, plantava “de ameia” arroz e milho, agora na cidade vivia de bico, carpia um terreno aqui, castrava uma porca ali, ia para o mato tirar mel e assim ia tocando a nova vida.
Certo dia, um compadre, o Zé Sapé, condoído com a solidão de Otacílio, fez-lhe uma visita e com jeito, depois de rodear muito, chegou ao ponto:
[nggallery id=15748]

– Causo que o cumpá não casa de novo? Fica aqui sozim de noite, num é bão.
– Ah, cumpá, tem mais idade pra isso, não!
Mas Zé Sapé insistia:
– Tem a Zirda, tá viuvada de novo. Junta os trapo quéla, cumpá.
Qual, Otacílio não queria saber.
Mas Zé Sapé avaliou que o compadre estava é com mamparra. E resolveu, por conta própria, tocar o negócio pra frente. Falou com Zilda e ela gostou da proposta.
Zilda também vivia sozinha: era uma brancona peituda, varizes grossas nas pernas e barriga já frouxa de uns tantos filhos paridos e já criados.
Zé Sapé fez outra visita ao compadre:
– Vai me discurpá, cumpá, mas a Zirda falô que até acha bão morá junto.
Otacílio continuava irredutível e Zé Sapé fazendo de tudo para convencer o homem:
– Um muiezão daquele, cumpá! Ela tá sem marido pra mais de ano.
E fez um gesto com a mão:
– Ó, tá inté piscano!
Otacílio deu um risão sossegado e balançou a cabeça:
– Ah, isso não é pra mim não, cumpá. Ela é das cor branca e eu sô preto.
Mas Zé não desistiu, continuou com as tratativas com Zilda. Mesmo assim, o negócio não prosperava. Era conversa daqui, conversa dali e nada. Até que Zilda, mulher decidida, resolveu ela mesmo tomar a peito a coisa para dar uma solução ao caso que se arrastava. Numa tarde de sol muito forte, protegida por uma sombrinha, cercou seu Otacílio na rua:
– Sô Otacilo, vem aqui!
Ele, que lá ia distraído, levou um susto quando viu aquela mulherzona na sua frente. Olhou ressabiado e parou.
– Vem aqui! – ela ordenou.
Ele deu uns três passos e parou de novo.
– Vem aqui, pertim, na sombra.
Ele ficou estático.
– Vem aqui, já falei!
Muito sem jeito, ele entrou debaixo da sombrinha. Ela teve que esticar o braço para acolhê-lo na sombra porque ele era alto. Foi quando viu, pela primeira vez de perto, aquela mulher dos olhos verdes, lábios grossos vermelhos, cheirando a alho.
– A senhora pode falá.
– Sô Otacilo, contece que eu tô sem home já passa de um ano, inté já tirei os luto. E vô falá uma verdade, uma coisa pro senhor, sem home eu num passo!
Seu Otacílio olhava para o chão, em silêncio:
– Tem ôta, tô inté queimano dos desejo. Se o senhor não vinhé na minha casa, eu vou é na do senhor… Eu quero é deitá com um home das suas qualidade.
Otacílio tirou o chapéu, coçou a cabeça e se justificou, mostrando os seus braços magros e negros:
– Primeiro, que a minha cor num ajuda…
Correu os olhos pelo corpão da mulher e finalizou:
– … e segundo, que é capaiz que eu num sô suficiente.
Zilda virou o corpão e foi embora a passos decididos. Otacílio continuou carpindo, tirando mel, castrando porca e dormindo só.


Comentários

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Esse site utiliza o Akismet para reduzir spam. Aprenda como seus dados de comentários são processados.