Conto de Plínio Marcos sobre o cais de Santos

Uma barca chamada esperança

O pivete loiro se meteu num barco que partiu de um ancoradouro que ficava pra lá do loló do mundo. Seu negócio era navegar pelas sete águas. Estava com a cuca fundida pelas milongas de marujos coroas. Só se ligava em papo de Moby Dick, Barba Ruiva, Ilha do Tesouro, Navio Fantasma e outras maresias. Vivia atucanado por não ter nascido no tempo dos piratas.

Então, soltou as amarras. Deixou andar. Cada um tem seus faróis. E temporal sempre se pega pela proa. Tanto faz estar em terra firme ou em mar grosso. Se o marujo não tiver bom lastro, vai pro beleléu. Se lançou nas águas e não quis nem saber a rota.

De mar em mar, de porto em porto, veio atracar em Santos. Desceu em terra firme a fim de entortar o cabo. Já estava se sentindo marinheiro escolado. Agüentava qualquer balanço. E já tinha se mancado que nas histórias havia muita enganação. A bordo, o batente é duro e chato; não acontece bulhufas.
E o negócio de uma mulher em cada porto não passa de onda; custa caro paca. Nesse assunto, o pivete loiro fez o que pôde. Se entrou pelo cano, nunca estrilou; se fechou em copas e deixou barato. Porém, continuou pegando embalo de saia. Foi pra isso que largou seus ferros no cais do porto na Baixada Santista.
Estava mariscando nos pesqueiros das piranhas quando suas botucas bateram na vitrina da loja do Tatoo Lucky. Se assanhou. Estava diante do cobra da tatuagem. E tatuagem era só o que faltava pra ele ficar manjado, até pelos loques, como pinta do mar. Não deu moleza. Meteu umas biritas na caveira pra ganhar coragem e se apresentou ao Tatoo. Entre dragões, âncoras, bandeiras e os cambaus, escolheu uma enorme caravela. Mandou desenhar no peito. O Tatoo caprichou, ficou legal às pampas. Botaram na caravela o nome de Esperança.

LEIA TAMBÉM:
Outras noites no cais
Conto-reportagem de João Antonio, da revista Realidade

O pivete loiro — camiseta aberta no peito pra todo mundo ver a Esperança — ficou todo contentão com sua caravela. Começou logo a batizar a bruta. E tome cachaça! Já estava cercando frango quando a Nica Chupeta se flagrou nele. Catimbada em chaveco com gringo bebum, a Nica Chupeta era pistoleira de oitenta anos de janela, chuqueira de muitas presepadas.

A Nica olhou pro pivete loiro como quem olha um bilhete premiado. Saiu pro trambique e foi logo cuidando do otário. Foi um perereco: uma dureza arrastar o marujo, do bar até um canto escuro; teve uns vinte tombos. Mas a Nica lembrava bufunfa que ia afanar e carregava a carga, na base do agüenta firme.

Precisando ter uma saudade pra contar a bordo, o pivete loiro se esforçava. Penando, se encostaram atrás de uma galera vazia. Foi outra gronga. A Nica Chupeta fez o que pôde, mas não é mole lidar com bêbado; foi um chove-não-molha que durou um tempão. A Nica Chupeta já estava uma arara. Ia partir pra linha grossa quando o pivete loiro desabou.

A lanceira foi firme no porão do marinheiro… neca de sonante. Nas janelas… neca também. No grilo, no churro… tudo vazio. Em nenhum bolso, nenhum vintém. O pilantra tinha bebido toda a grana! A mulher endoidou. Agarrou o gogó do marujo e sacudiu até ele abrir as botucas. ‘Tu tá duro, desgraçado, tá duro?’, esculachou.

Mas o pivete loiro não entendeu pirulito do plá da Nica. ‘Esperança!’, bochinchou, rindo, abrindo a camisa pra mostrar a caravela. A Nica Chupeta babou de raiva. Puxou da liga um punhal e meteu no peito do gringo até o cabo. Espetou bem no meio da caravela. O melado correu. A Esperança foi a pique.

Plínio Marcos
(05/09/99)


Comentários

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Esse site utiliza o Akismet para reduzir spam. Aprenda como seus dados de comentários são processados.