Foram várias horas de conversa com o presidente Lula a bordo do Aerolula e no escritório particular do Palácio da Alvorada nos primeiros dias de dezembro. Aos 62 anos, Lula vive o melhor momento dos seus cinco anos de governo. Refratário a entrevistas no início do primeiro mandato, agora ele não pára mais de falar com jornalistas quase todo dia. Talvez porque agora tenha o que dizer, Lula não deixa pergunta sem resposta e até sugere outras, não se altera diante de questões mais delicadas e não mostra pressa para encerrar a conversa. “Eu vou bem porque o Brasil vai bem”, resume ele logo no começo da entrevista, dando o tom de sua visão sempre otimista do País e do seu governo.
Destino das reformas, crises políticas, terceiro mandato, conquistas na economia e na área social, combate à corrupção, as obras de infra-estrutura, os planos até 2010, sucessão, a rotina do presidente entre os palácios do Planalto e da Alvorada, a prioridade da educação como marca do governo e uma adaptação do “toyotismo” como método, como ficou a vida familiar, a relação com a imprensa e com os amigos, o que vai fazer depois de deixar o governo no dia 1º de janeiro de 2011 – falamos um pouco de tudo.
Algumas afirmações de Lula:
– Agora é só não errar que as coisas vão acontecer.
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– Terceiro mandato? Não, definitivamente não, nem se o povo pedir.
– A reforma política não sai porque os partidos políticos não querem.
– A reforma tributária pode ser aprovada ainda no meu governo.
– Fernando Henrique está ressentido, mas continua amigo.
– Quando deixar o governo, quero morar numa cidade de praia e continuar na política.
A história desta entrevista começa em meados de novembro, ao final de um almoço no Palácio da Alvorada em que só estavam sua mulher, dona Marisa, o presidente da Petrobras, José Sérgio Gabrielli, e o repórter. Quando já ia me despedir, foi o presidente quem sugeriu a pauta: “Todo mundo me pede entrevista, menos você. Não quer fazer uma entrevista comigo? Vamos fazer um balanço de tudo o que aconteceu até agora”.
Com a agenda de fim de ano carregada de compromissos, ele mesmo encontrou uma brecha e marcou a nossa conversa para o Aerolula na viagem de volta a Brasília depois da cerimônia de inauguração da TV Digital em São Paulo, no primeiro domingo de dezembro. Como eu imaginava, a cabine presidencial estava lotada de importantes ministros e seria impossível fazer a entrevista ali, embora desta vez tenha levado até gravador.
“Vem comigo para casa. Você dorme lá e a gente pode conversar amanhã de manhã durante a minha caminhada”, foi a proposta indecente que ele me fez quando chegamos a Brasília, sabendo das minhas dificuldades de locomoção. Era brincadeira. Ao chegar em casa, quer dizer, no Palácio da Alvorada, Marisa e Lula ainda viram um filme pela metade e as notícias do futebol (naquele domingo o Corinthians tinha sido rebaixado para a segunda divisão e o assunto foi evitado durante o vôo e em casa como se tivesse morrido alguém na família). À uma da manhã, o casal Silva se recolheu e às seis já estávamos todos de pé.
Depois da caminhada dos dois, dos exercícios na sala de aparelhos e do café-da-manhã à base só de frutas, finalmente liguei o gravador. A fita simplesmente não se mexia. Comecei a tomar nota como sempre fiz, o que não é fácil quando o entrevistado é o falante Lula, mas logo fui salvo pelo Carneirinho, um funcionário do Palácio da Alvorada que cuida do cinema e é pau para toda a obra. Acompanhado por dona Marisa e pela fox-terrier Mel, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva, meu velho amigo e ex-chefe, deu esta entrevista exclusiva para Brasileiros.
Brasileiros – Como vai, presidente Lula?
Luiz Inácio Lula da Silva – Eu vou bem porque o Brasil vai bem. As coisas estão acontecendo como eu previa que iam acontecer. O Brasil está entrando numa fase em que pode definitivamente se transformar numa nação justa, com crescimento econômico e distribuição de renda. Está tudo preparado para isso. Agora é só não errar que as coisas vão acontecer.
Brasileiros – Uma consulta feita pela Fiesp no começo de dezembro revela que 77% das indústrias de São Paulo esperam vender mais em 2008; 66% lucrar mais; 50% empregar mais e 57% investir mais no próximo ano. O que os brasileiros podem esperar da economia em 2008?
Presidente Lula – Os empresários brasileiros hoje têm a certeza de que a estabilidade macroeconômica é para valer, que o controle da inflação é para valer, que está aumentando muito o número de consumidores no Brasil. Agora os empresários vão ter que cumprir com a sua parte. Não podem permitir que a oferta não atenda à demanda. Por isso, é necessário produzir mais. Num primeiro momento, quando a economia está se ajustando, as empresas aumentam o número de horas extras. Num segundo momento, contratam mais empregados e aumentam um turno na produção. No terceiro, ampliam a sua fábrica ou constroem uma nova. É esse o momento que nós vamos viver em 2008.
Brasileiros – O senhor já afirmou várias vezes que é contra um terceiro mandato consecutivo em 2010, mas muita gente da oposição e da imprensa ainda duvida disso. O que ainda falta o senhor dizer para tirar esse assunto da pauta?
Presidente Lula – Esse assunto, Ricardo, não sai da pauta porque virou uma bandeira da oposição. Todo mundo sabe que eu já era contra o segundo mandato, contra a reeleição, porque eu sou favorável à alternância do poder. E acho que somente o tempo é que vai calar aqueles que continuam teimando em dizer que eu quero um terceiro mandato.
Brasileiros – Nem se o povo pedir?
Presidente Lula – Não, definitivamente não, nem se o povo pedir. É preciso lembrar que, em 1978, quando fui eleito com 92% dos votos para presidente do Sindicato dos Metalúrgicos, convoquei uma assembléia exatamente para proibir mais de uma reeleição. A iniciativa foi minha.
Brasileiros – Presidente, o senhor poderia contar para os leitores quem é o seu anjo da guarda? Chegar ao final do quinto ano de presidente da República com a popularidade em alta, superando uma crise após a outra e ainda encontrando um tesouro em petróleo, a que ou a quem o senhor atribui essa capacidade de sobrevivência, de sempre dar a volta por cima?
Presidente Lula – Olha, Ricardo, eu penso que meu anjo da guarda é a sabedoria do povo brasileiro, que sabe separar o joio do trigo. O povo aprendeu a compreender o que é verdade e o que é mentira, o que é politicagem e o que é coisa séria. E ele percebe que nós trabalhamos como nunca se trabalhou neste país para fazer as coisas acontecerem. E eu estou convencido de que 2008 será muito melhor do que 2007. Então, meu anjo da guarda é isso, é a confiança do povo e muitas horas de trabalho por dia.
Brasileiros – O Brasil conviveu estes cinco anos de governo Lula com estabilidade e crescimento econômico e melhoria dos indicadores sociais, de um lado; de outro, com uma crise política permanente, que não sai das manchetes da imprensa. Lembro-me que nos primeiros dias de governo o senhor sempre dizia que “só não podemos errar na política”. O que deu errado?
Presidente Lula – Eu penso que é preciso avaliar corretamente o que deu errado na política. Alguns companheiros meteram os pés pelas mãos, fizeram tudo aquilo que o PT sempre combateu ao longo da vida. Afinal de contas, foi para isso que criamos o PT, para moralizar a política brasileira. Obviamente que demos oportunidade para a oposição e setores da imprensa apresentarem isso como se fosse o fim do PT. Foi um momento muito difícil. Mas, de outro lado, tive a certeza de que a crise política não iria abalar as conquistas das políticas públicas que estavam sendo implantadas. Por isso, conseguimos não só superar a crise, mas ressurgirmos melhores depois dela, com mais força.
Brasileiros – No entanto, entra ano, sai ano, as denúncias de corrupção continuam por toda parte. O que o governo federal pode fazer concretamente para enfrentar esse problema para o qual muitos não vêem solução?
Presidente Lula – Eu não tenho dúvida de que se todos os governos dos últimos 30 anos tivessem feito 20% do que nós estamos fazendo para combater a corrupção, nós já teríamos diminuído muito este problema. A primeira coisa que nós fizemos foi fortalecer a CGU (Controladoria Geral da União), fizemos concurso, começamos a investigar o dinheiro do governo federal que vai para os municípios. Depois, reaparelhamos a Polícia Federal, investimos muito na inteligência. Você pode conversar com os delegados da Polícia Federal para ver se em algum momento eles não tiveram toda liberdade para trabalhar. O governo mantém uma relação de total autonomia com o Ministério Público, não tem processo engavetado. Agora, qual é o problema do combate à corrupção? É que, quanto mais você combate, mais ela aparece. O povo fica vendo todo dia aparecer denúncia na televisão, mas ele só fica sabendo porque o governo está investigando.
Brasileiros – Deixa eu te falar uma coisa. Outro dia no interior ouvi um sujeito reclamar que “a Polícia Federal prende gente todo dia, mas ninguém fica preso, o que adianta?” Tem muita gente que pensa assim…
Presidente Lula – Espera aí, Ricardo. Aí nós não podemos fazer nada. Qual é o papel do presidente da República? Uma pessoa da administração pública, seja ele um ministro ou um funcionário, é acusada de cometer um delito. A primeira coisa que nós fazemos é afastar essa pessoa. Aí tem um inquérito policial, que depois vai para o Ministério Público, que é quem decide se indicia ou não. Aí vai para a Justiça, a quem cabe aceitar ou não a denúncia. Se a Justiça manda soltar é porque o País tem leis. Nós também não podemos concordar que as pessoas sejam presas antes de serem interrogadas.Têm que ter o direito de defesa, que é o que nos garante a liberdade. Quando eu era metalúrgico em São Bernardo, eu também dizia isso. “Por que não manda prender logo?” Hoje, eu sei que o presidente não pode mandar prender e nem mandar soltar… E não julga…
Brasileiros – A cada nova crise fala-se na necessidade de uma reforma política. Todo mundo se diz a favor da reforma política, mas ela nunca sai. Por quê? A mesma coisa acontece com a reforma tributária. Desde o começo do seu governo, fala-se nessas reformas. Por que elas nunca aconteceram, nem antes e nem agora no seu governo? O senhor acha possível que elas ainda saiam durante o seu segundo mandato?
Presidente Lula – Olha, Ricardo, é preciso separar as duas coisas. Primeiro, a reforma política. Os partidos não querem fazer. E, se os partidos políticos não querem a reforma política, não é o presidente da República que vai fazer. A iniciativa tem que partir do Congresso Nacional e dos partidos políticos. Porque são eles que vão votar. Se eles não querem, não vai ter. A reforma tributária anda pelo mesmo caminho. Você está lembrado que, em abril de 2003, eu mandei a proposta de reforma tributária para o Congresso Nacional. Dos 27 governadores, 25 concordaram. Votamos a parte federal e não conseguimos votar a parte estadual. Agora, outra vez, estamos encaminhando ao Congresso uma nova proposta de política tributária. Há concordância de amplos setores empresariais, há concordância do movimento sindical e há concordância dos líderes políticos. Vamos ver se dessa vez nós votamos a reforma tributária.
Brasileiros – Ainda no seu mandato?
Presidente Lula – Ainda no meu mandato.
Brasileiros – Por falar nisso, historicamente na América Latina, os segundos mandatos dos governantes costumam ser piores, mais frustrantes do que o primeiro. Tanto que os presidentes reeleitos não conseguem fazer o seu sucessor. No seu caso, está acontecendo o contrário. No segundo mandato os índices de aprovação continuam altos, há boas notícias da economia quase que todo dia, os indicadores sociais mostram que o brasileiro está vivendo melhor. O senhor acredita que dá para fazer o sucessor, mesmo com os candidatos do governo mostrando hoje magros índices nas pesquisas? Fazer o sucessor é seu principal objetivo ou agora o senhor só está preocupado com a sua biografia?
Presidente Lula – Eu não me preocupo com a minha biografia, até porque não sou eu que vou determinar a minha biografia, serão os outros… E certamente as pessoas não me vêem como eu me vejo. Por isso, essa não é uma preocupação minha.
Brasileiros – E o sucessor?
Presidente Lula – Um presidente da República tem que estar com a preocupação voltada prioritariamente para concluir a sua obra. O sucessor é conseqüência. Cabe ao presidente garantir que o processo eleitoral seja o mais democrático e transparente possível. O resultado pertence ao povo, não ao presidente. Lógico que o governo e a sua base aliada vão trabalhar para construir uma candidatura vitoriosa para que nosso projeto tenha continuidade, mas isso eu só irei pensar a partir de 2009. Eu ainda tenho muita coisa para fazer para o Brasil antes das eleições. Quem tem interesse em antecipar a discussão eleitoral é a oposição e não o governo.
Brasileiros – Eu sei que o senhor não vai falar em nomes. Mas certamente o senhor já deve ter um nome na cabeça…
Presidente Lula – A minha idéia é juntar todos os partidos que compõem a base do governo, ver quem é que pode ter o perfil mais adequado para disputar as eleições e depois trabalhar a indicação dessa pessoa para ganhar as eleições. Quem será essa pessoa ainda é muito cedo para dizer. Nós não podemos dar importância a pesquisas feitas três anos antes das eleições.
Brasileiros – O senhor ainda tem três anos de governo pela frente. O que falta fazer? De que forma o senhor pretende passar para a história? Qual será a marca do governo Lula que vai ficar?
Presidente Lula – Algumas coisas eu quero concluir no meu governo, ações que marcarão a nossa passagem pela Presidência da República. A primeira delas é fortalecer muito as políticas sociais para garantir que o povo pobre tenha acesso aos benefícios do crescimento econômico do País. Quero passar para a história como o presidente da República que mais investiu em educação. Para isso lançamos o Fundeb (Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação) e estamos fazendo o PDE, que é o Plano de Desenvolvimento da Educação. Os investimentos em novas universidades e no ensino técnico profissional vão elevar o Brasil de padrão nessa disputa globalizada. Outra área que é prioritária são as obras de infra-estrutura. As principais são a hidrelétrica do Rio Madeira, a BR-101 Nordeste, a BR-101 Sul, a ampliação da Ferrovia Norte-Sul até Anápolis, a Ferrovia Transnordestina, o asfaltamento da BR-163, ligando Santarém a Cuiabá. E temos a revolução na matriz energética, produzindo mais álcool, mais biodiesel, sem falar da descoberta da reserva de petróleo do Campo de Tupi…
Brasileiros – A última entrevista que fiz com o senhor foi em meados de 2001, quando ainda estava decidindo se seria ou não candidato a presidente pela quarta vez. Hoje, passados seis anos, o que mudou na sua forma de pensar o Brasil, o futuro do nosso país? Qual a diferença entre o Lula líder da oposição e o Lula presidente, além dos cabelos brancos? E o que mudou no Brasil?
Presidente Lula – Olha, quando se está na oposição a gente não tem dimensão do que é o exercício da Presidência da República de um País importante como o Brasil. É tudo mais complicado do que a gente imaginava, por um lado; de outro lado, parece tudo mais fácil também do que a gente enxergava. É mais complicado porque você tem uma máquina estruturada há décadas, regulada por normas, leis, decretos e costumes. Muitas vezes você toma uma decisão num conselho de ministros. Lá embaixo, na ponta do processo, se você não estiver acompanhando a ordem vai parar numa gaveta. A parte boa é que se você criar normas de acompanhamento para a execução dessas obras, como nós criamos no PAC o Conselho Gestor, as coisas acontecem. Nós agora estamos adotando na Presidência a parte boa de um sistema chamado “toyotismo”. Ao tomarmos uma decisão na Presidência nós reunimos na Casa Civil todos os setores por onde esta ordem vai passar para decidirmos conjuntamente. Evitamos assim que os papéis fiquem transitando de uma mesa para outra sem que a ordem seja cumprida.
Brasileiros – E isso está funcionando?
Presidente Lula – Está. Eu comparo a Presidência da República como se fosse um trem. A máquina pública é a estação. Então, passa trem, chega trem, parte trem, chega trem, a estação está lá, impávida, sem se mexer. A grande missão de um dirigente que governa um país é fazer a máquina funcionar.
Brasileiros – Do que o senhor mais se orgulha e do que o senhor se arrepende de ter feito nesses cinco anos de governo ?
Presidente Lula – Eu me orgulho das coisas que nós fizemos, dos avanços na área social e, ao mesmo tempo, eu acho que nós poderíamos ter feito mais. Então eu fico orgulhoso quando vejo os números. Mas, ao mesmo tempo, deixo de ficar orgulhoso quando eu sei que nós precisamos fazer muito mais, e que podemos fazer muito mais. Do ponto de vista da perspectiva do que o governo vai fazer até 2010 está tudo pronto. Nós lançamos o PAC da Saúde, o PDE da Educação, a política de reforma agrária e de política ambiental. Todas as políticas prioritárias até o final do governo nós já definimos, quantificamos metas e o governo está estruturado para isso. Agora, só falta fazer…
Brasileiros – E do que o senhor se arrepende?
Presidente Lula – Ricardo, eu tive um momento na minha vida no governo em que eu senti uma certa melancolia. Você está lembrado, em 2003, lá na fábrica da Ford, eu falei do espetáculo do crescimento… Por conta disso eu fui achincalhado durante meses pela imprensa. E por que eu disse aquilo? Porque em toda a conversa que eu tinha com o Palocci, com o Meirelles, a perspectiva para 2004 era muito boa. A verdade é que a economia em 2004 cresceu 5,7%. Do que eu me arrependo? É que, em 2005, com medo da inflação, nós aumentamos a taxa de juros outra vez. A economia que tinha ido para 5,7% caiu para menos do que 3%. Essa foi uma coisa que me magoou profundamente.
Brasileiros – Se o senhor por acaso encontrasse amanhã o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso em algum evento, o que gostaria de dizer para ele? Por que vocês dois, que estiveram juntos em muitas lutas políticas já não se falam há muito tempo? No dia da sua posse, o senhor disse ao Fernando Henrique que ele deixava um amigo no Palácio do Planalto. Hoje, o senhor diria a mesma coisa?
Presidente Lula – Eu não confundo, Ricardo, a minha relação de amizade com as minhas divergências políticas. Eu continuo tendo no Fernando Henrique Cardoso uma pessoa amiga, é assim que eu o vejo. O que eu sinto, lendo as coisas que o ex-presidente escreve, é que ele fica magoado com comparações que fazem entre os nossos governos. Às vezes, eu tenho a impressão de que ele esperava o meu fracasso. Como o fracasso não aconteceu, parece que isso o deixa um pouco ressentido… Sobretudo pela melhoria da imagem externa do nosso país, por causa da melhoria da vida das pessoas no Brasil, o crescimento
da economia…
Brasileiros – Nos dois primeiros anos de governo, o senhor não gostava muito de falar com a imprensa, era uma dificuldade danada para a gente marcar entrevista. Agora o senhor fala com a imprensa quase que todo dia, até oferece entrevista para a televisão. O que mudou nas suas relações com a imprensa?
Presidente Lula – Eu disse no final do meu primeiro mandato que ia mudar a minha relação com a imprensa. O que aconteceu no primeiro mandato é que desde o começo eu tinha a impressão de que a imprensa gratuitamente se colocou contra o governo. Houve, não da minha parte, mas de quase todo o governo, uma predisposição de não conversar com a imprensa. O que nós descobrimos depois? Se a gente não fala com a imprensa, eles vão escrever do mesmo jeito. Se eles não tiverem as informações corretas do governo, vão inventar informações ou vão pegar informações truncadas. Adotei essa política de voltar a conversar mais com a imprensa e acho que tem dado bom resultado. Pelo menos eles publicam o que eu falo e não o que os outros falam de mim… Nesse processo todo, Ricardo, o que a gente aprende? É que nem nós precisamos virar inimigos da imprensa e nem a imprensa tem que virar inimiga do governo. Numa relação civilizada, o governo cumpre com o seu papel de fazer as coisas e a imprensa cumpre com o seu papel de informar. A mim não interessa que a imprensa seja gratuitamente chapa-branca ou que ela seja gratuitamente oposição. A mim interessa que a imprensa informe com lealdade as coisas boas e as coisas más, e que o leitor, o telespectador e o ouvinte interpretem e tirem suas próprias conclusões.
Brasileiros – A impressão que se tem de fora do governo é que, na medida em que a oposição político-partidária foi perdendo força, esse papel começou a ser assumido por veículos e jornalistas da grande imprensa. De outro lado, o governo parece ter aceitado esse jogo ao tratar a imprensa como adversária. Não tem alguma coisa errada aí? Quer dizer, pelo que eu entendi da resposta anterior, isso aconteceu no primeiro mandato e agora esta mudando, é isso?
Presidente Lula – Está mudando. Eu acho que o auge dessa relação de conflito entre governo e imprensa aconteceu com o acidente do avião da TAM. Houve uma predisposição de setores da imprensa de crucificar o governo, sem nenhuma veracidade, sem nenhuma informação, sem nenhum critério técnico. Chegaram a colocar 200 cadáveres sob a responsabilidade do governo. Embora não tenhamos ainda a palavra oficial da Aeronáutica, todo mundo sabe hoje que foi uma falha humana aliada a uma falha técnica que causaram aquele acidente.
Brasileiros – Teve algum dia, em meio a tantas crises, em que o senhor chegou a pensar em jogar tudo para cima e pegar o boné?
Presidente Lula – Não… E sabe por que, Ricardo? Eu acho que depende da formação psicológica de cada um de nós. Têm pessoas que fraquejam nas crises, têm pessoas que entram em depressão em momentos difíceis. Eu, ao contrário, fico com mais vontade de lutar. Quanto mais me batem, mais eu tenho motivação para resistir. Portanto, não tive momentos nem de desespero nem de depressão. Eu só fico desmotivado quando não está acontecendo nada que me motive a brigar.
Brasileiros – Além da dona Marisa, quem são hoje os principais conselheiros do presidente, dentro e fora do governo, aqueles que são ouvidos antes da tomada de decisões mais importantes?
Presidente Lula – Muitas vezes o presidente não tem condições de ouvir muita gente antes de tomar decisões. Claro que eu converso muito com a Marisa, eu converso muito com gente da sociedade. Você sabe que esse é um hábito meu desde o tempo do sindicato. Eu tenho uma coordenação política, tenho o conselho político representado pelos presidentes e pelos líderes de todos os partidos da Câmara e no Senado, tenho o Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social, me reúno com alguns economistas de quando em quando para ouvir opiniões dentro e fora do governo.
Brasileiros – Quem, por exemplo?
Presidente Lula – Além dos ministros, eu converso com o Luciano Coutinho, com o Beluzzo, com o Delfim Netto, converso com empresários, sindicalistas, líderes do movimento social. Uma coisa é certa: eu não gosto de tomar decisões sem contar até dez!
Brasileiros – Como é a rotina do presidente em Brasília, desde a hora em que acorda até a hora em que vai dormir, num dia normal de trabalho, quando não está viajando?
Presidente Lula – Num dia normal de trabalho, quando eu não estou viajando, eu e Marisa nos levantamos às seis horas da manhã, fazemos nossa caminhada, fazemos musculação, uma hora e meia todo dia. Se não fizer isso não agüento o dia. Aí tomo café e vou para o Planalto às nove da manhã. Em média, são nove audiências por dia. O que é sagrado para mim é que, quando eu estou em Brasília, venho almoçar em casa nem que seja só por meia hora. Durante a semana, só como um bife ou filé de frango, ou um peixinho e uma salada. Arroz e feijão só como uma vez por mês. Depois dos 60, eu tenho que me cuidar… É engraçado porque todo dia eu ouço da dona Marisa sempre as mesmas coisas. “Por que essa pressa de ir embora?”, ela pergunta quando eu vou trabalhar de manhã. E quando eu chego à noite é sempre a mesma cobrança: “Isso é hora de chegar?” Ouço isso há pelo menos 30 anos! Já faz parte da minha rotina…
Brasileiros – E à noite vocês fazem o quê? Jantam, assistem à televisão e vão dormir?
Presidente Lula – Eu chego em casa dez, 11 horas toda noite. Aí eu tomo uma sopa e vou dormir… Meu jantar é só creme de aspargo, de couve-flor ou de ervilha, coisa leve. Às vezes nem televisão eu vejo.
Brasileiros – E nos fins de semana?
Presidente Lula – Sábado e domingo eu como melhor. Aí eu como uma boa rabada, frango com polenta, faço um churrasco, mas só no final de semana.
Brasileiros – Qual costuma ser a melhor hora para o presidente da República? Dá para dormir direito? Quantas horas por dia?
Presidente Lula – Eu não sou um homem de dormir bem, mas isso é coisa antiga. Aqui em Brasília eu tenho mais dificuldade de dormir do que em São Bernardo. Eu não sei se é a baixa umidade relativa do ar. Aqui em Brasília eu durmo só quatro ou cinco horas por noite. Eu sei que isso é pouco…
Brasileiros – Toma algum remédio para dormir?
Presidente Lula – Não tomo remédio nenhum. Em São Bernardo, eu durmo melhor do que aqui, o ar é mais úmido, faz mais frio, mas não tem nada que me tire o sono. Eu não consigo deitar na cama com problemas. Aprendi na minha vida a deixar os problemas fora de casa. Você me conhece bem, sabe que eu detesto quando alguém me liga às dez horas da noite para dar notícia ruim, quando eu não posso fazer mais nada. Deixa para me ligar no outro dia cedo porque aí eu posso fazer alguma coisa.
Brasileiros – O senhor e dona Marisa há seis anos vivem confinados em palácios e cercados por seguranças. De que o senhor sente mais falta dos seus tempos de metalúrgico e líder sindical? No governo o senhor mais ganhou ou perdeu amigos?
Presidente Lula – Olha, eu não diria que eu ganhei ou perdi amigos, não é uma conta simples. Os meus companheiros foram os companheiros que eu construí antes de ser presidente, companheiros comprovados em relação de amizade de 15 anos, 20 anos, 30 anos, como você. No governo você tem amigos e alguns podem se transformar em companheiros. Quando termina o governo, cada um vai cuidar da sua vida, a gente não sabe se vão continuar como companheiros. Sou um homem que gosta de manter as minhas relações de amizade. Acho que o bem maior de um ser humano são as amizades que ele constrói. Eu acredito nas pessoas, gosto de ter amigos e costumo confiar nas pessoas, até prova em contrário. Sempre parto do pressuposto de que todo mundo é bom.
Brasileiros – E do que o senhor sente falta?
Presidente Lula – O que sinto falta é da liberdade que eu tinha quando não era presidente da República. Sabe, aprendi que a liberdade é um bem incomensurável. Você não ter ninguém te vigiando, não ter ninguém tomando conta dos teus passos, poder levantar de manhã e decidir o que fazer na hora. Na Presidência você não pode porque a Presidência é uma instituição. Eu estou aqui cinco anos, nunca vou a um restaurante, nunca vou a uma festa. Sabe, eu não vou nem em aniversário, eu não vou em casamento, sabe por que, Ricardo? Porque eu termino atrapalhando as outras pessoas. Chego lá com um bando de companheiros que têm que fazer segurança para mim, eles têm as suas funções, e eu termino incomodando as pessoas. Então eu prefiro ficar em casa com a Marisa. Quando não estou viajando fico com ela aqui e quando não estamos aqui vamos para São Bernardo e ficamos no apartamento, conversando com os filhos. Eu sinto uma imensa saudade de quando ia para o meu terreno com os meus companheiros de sindicato, acendia o meu fogão a lenha, colocava uma panela de ferro para fazer meu coelhinho, fazer pizza, o meu feijãozinho com costela. Hoje é tudo mais fácil, não tenho que fazer nada, é só pedir… Mas é menos prazeroso, apesar do carinho com que as pessoas tratam a gente. Dá mais prazer a gente fazer do que receber feito.
Brasileiros – Como fica a convivência com a família? O senhor tem visto os filhos, os irmãos, os outros parentes? Na sua idade, não dá vontade de cuidar mais dos netos, sente falta deles?
Presidente Lula – Os filhos eu vejo a cada 20 ou 30 dias. Ou eles vem para cá ou eu vou para São Bernardo do Campo. Cada um tem a sua vida, não é fácil. Às vezes, a Marisa vai para São Bernardo e passa o final de semana brigando porque cada um vai namorar, cada um sai e a gente fica sozinho de novo. Os netos eu vejo muito pouco. No fundo, no fundo, Ricardo, no fundo a verdade é essa: no exercício da Presidência, se você quiser exercê-la na sua plenitude, o grande sacrificado é a família.
Brasileiros – O que o senhor pretende fazer da vida depois do dia 1º de janeiro de 2011, quando passar o cargo para o seu sucessor? Uma vez o senhor me falou que o seu sonho é morar numa cidade de praia do Nordeste. E o que mais? Continuar atuando no PT, fazer palestras, conversar com os aposentados do sindicato ou ficar criticando o próximo presidente? Quais são os seus planos para depois do governo?
Presidente Lula – Eu não tenho muitos planos para depois do governo. Três anos demoram tanto para passar aqui que eu não tenho planos. Eu, certamente, e já disse isso a você, adoraria morar próximo ao mar. É uma vontade que eu tenho há muitos anos. Qual é o problema? É que a Marisa prefere morar no campo, na montanha. Então eu já sei que vou ficar mesmo morando em São Bernardo do Campo. Veja, quando eu deixar a Presidência, estarei com 65 anos de idade. Pela lei das probabilidades eu posso ter mais uns dez ou 15 anos de vida. Preciso encontrar um jeito de viver melhor nesse final de vida, mas certamente não deixarei a política. Só vou tentar estabelecer uma convivência melhor com a família. Uma coisa eu te prometo: não farei qualquer pronunciamento com relação ao próximo governo.
Brasileiros – Última pergunta: se o senhor fosse apenas um velho militante petista, que
pergunta gostaria de fazer ao presidente Lula?
Presidente Lula – O que eu gostaria de perguntar ao presidente se eu fosse apenas um velho militante do PT? É a pergunta que certamente qualquer militante faria para mim: por que o presidente não coloca em prática tudo o que o PT quer, tudo o que o PT propõe? E o presidente iria responder para mim: “Em primeiro lugar, não dá porque eu não governo só para o PT, eu governo para o povo brasileiro. Depois, eu tenho que levar em conta a existência de outras forças políticas; terceiro, no governo a gente não faz apenas o que quer ou tudo o que quer. Você faz o que é possível fazer, mais ou menos de acordo com os seus compromissos políticos”. Eu tenho clareza do que eu quero, sei qual é o meu lado na política brasileira. Por isso que eu não canso de dizer: sou presidente de todos os brasileiros e brasileiras, mas minha prioridade é fazer com que os pobres tenham condições de melhorar de vida.
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