Cores e volumes ancorados na paisagem

Chego ao Brasil em outubro para uma exposição que há muito eu desejava e, graças ao empenho de Renata de Azevedo Silva, diretora de relações internacionais do MuBE, e de Philippe Ormancey da ArcelorMittal, pude realizar.
Foi um trabalho inédito, pois pela primeira vez utilizei aço e inox, e completei parte do trabalho fora do meu próprio país, tendo o prazer de trabalhar de perto com artesãos anônimos que nunca antes haviam visto sua matéria-prima utilizada na arte.

E foi assim, visitando as fábricas da ArcelorMittal Brasil em Vitória (ES) e Timóteo (MG), que encontrei a desculpa necessária para escapar e visitar Inhotim pela segunda vez.

Não é à toa que Bernardo Paz está na origem desse lugar. Para um trocadilho pobre, realmente Inhotim me remete a esse sentimento: paz. Vim a esse local há dois anos com curadores do Museu de Arte Moderna de Paris. Mas longe de ter um sentimento de déjà vu, cada sensação intacta que guardei na memória foi-se abrindo como uma ferida, marcada pela exuberante paisagem e pelo canto da cigarra que me fazia ainda pensar no sul da França. Era como se esse som me desse novamente as boas-vindas e me mostrasse que o mundo é realmente uma aldeia, onde pessoas afins encontram sempre um lugar de parada e inspiração.
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Já conhecendo a amplitude do local, levei quase duas horas para ver com calma o que desejava. Dediquei atenção às novas instalações acompanhada por uma pessoa escolhida por Bernardo para me orientar sobre o novo, dentro do que Inhotim trazia de mais fresco. Na verdade eu queria mesmo era rever algumas das obras que privilegiam emoções instintivas, que abrem questionamentos, e que remetem àquilo de que meus olhos famintos sempre estão em busca: o homem.

Despeço-me de meus anfitriões e me deixo levar pela moça simpática que me sorri, mas não consigo escutá-la, tamanha minha atenção ao canto poderoso da cigarra na vegetação local. Logo sou apresentada a um ambiente minimalista, com cores e volumes ancorados na paisagem despojada, que dispensa todo tipo de explicação. E Martha, a moça que me acompanha, sábia que é, sorri novamente e com esse código me dá carta branca para que eu tenha o tempo dos homens. Dos homens que eu crio em bronze, aço e inox, e não do homem contemporâneo, que está sempre “em atraso” consigo mesmo.

O local foi concebido para abrigar Hélio Oiticica e Neville D’Almeida com a obra Casi cinéma, cujo conceito pode nos lançar a dimensões tentadoras.

Bom sinal. Começo retirando meus sapatos e percebo que isso tem um quê de sensualidade. Dois tapetes dispostos na entrada com texturas diferentes causam inquietação e curiosidade. É como se eu penetrasse em um ambiente que não recorre a artifícios. O essencial torna-se o luxo, que nossa vida de homem moderno nos proíbe. É como se encontrasse eco naquilo que acredito e reivindico. E isso me traz conforto, mas ao mesmo tempo excitação.

No prédio, cinco salas estão na penumbra. Sinto-me invadida por emoções não racionais, informações que rompem com a contenção do corpo; colchões e redes são chaves para uma quase semiconsciência.

Cosmococa 5 Hendrix War, projeções em todas as paredes, no teto, música a todo volume, sinto-me em um show ao vivo com a sensação paradoxal de uma quietude. É como um alimento. Não me sinto sozinha.

Uma piscina convida para um mergulho, mas em respeito ao público não irei lhes impor minha nudez, mas prometo a mim mesma que voltarei para sentir de perto essa proposta. Em uma das salas cheias de balões e música brasileira, um grupo de crianças dança entusiasmadamente. Penso: Vive la liberté!

CILDO MEIRELES
Eu queria muito rever essa instalação. Vidros quebrados e espalhados pelo chão: emoção, medo, misturas de sentimentos; do tipo voltar a ser uma criança que está prestes a fazer uma besteira e ao mesmo tempo tem receio desses estilhaços, desse perigo inconsciente e eminente que irei percorrer. Um caos emocional muito poderoso toma conta de mim. Um caos suspenso, um caos transparente com peixinhos voadores. Uma mistura de sensualidade visual contrapondo os vidros quebrados, que soam como lembretes a cada passo: Do quê? Do quê? Do quê?

Um recuo. Não consegui entrar na sala vermelha, com referências às guerras e ao sangue. Memórias de uma maternidade, de uma vida líquida, frio na espinha e frisson, como digo em meu idioma.

ERNESTO NETO
Uma instalação que me virou de cabeça pra baixo e me exigiu tempo foi a de Ernesto Neto. Odores de especiarias, a sensação de suspensão. Eu já havia visto seu trabalho em Paris e prometi a mim mesma que um dia terei uma de suas obras diante de mim, a cada dia que acordar dentro da minha casa material, pois na minha casa espiritual, que é minha alma, eu tenho Ernesto Neto como um dos pilares.

Adriana Varejão
Me fez repensar o que é vivenciar a violência, o sofrimento. Seu trabalho é forte e imprime um poder que admiro. Não tive tempo de rever a serpente de Tunga, que eu adoro. Minha escapada só me permitiu circular por Inhotim ao longo de duas horas. Next time! (e mais uma vez uma promessa infalível para retornar).

Na saída, um espaço de quietude, amplo, com linhas retas e arquiteturais, uma luz incrível. Um conjunto – fruto de uma estória – que solidifica a grande força de um homem de Paz, que me traz e me remete ao mesmo sentimento que tenho quando estou de pés no chão, sozinha, centrada no meu tempo, no que é real, no que importa, seja em Paris, em São Paulo ou em Aracati (CE); me conforto ao ver a obra e o trabalho de homens de paz, e como a simplicidade das coisas me remete a um sentimento de força.

Nathalie Decoster Artista plástica francesa, teve esculturas expostas na Champs Elysées, em 2008, e no Musée de Montparnasse, em 2009. Desde outubro, expõe suas obras no Museu Brasileiro de Esculturas (MuBE), em São Paulo. A mostra segue até 9 de janeiro de 2011


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