O clima solene que costuma pairar?em teatros vazios é quebrado quando uma música suave de piano invade o ambiente. Um grupo de pessoas com mochilas nas costas e calças de moletom, que está sobre o palco, se dispersa. Barras de ferro com cerca de 1 m de altura são colocadas ali. O grupo se organiza em torno das barras, e o palco do Teatro Alfa, em São Paulo, se transforma em uma sala de balé. Mas não em uma sala de balé qualquer. Trata-se do ensaio do Grupo Corpo, a premiada companhia de dança contemporânea 100% brasileira que nasceu em Belo Horizonte nos anos 1970 com a canção Maria Maria, de Milton Nascimento, e que inspirou Luís Fernando Veríssimo a declarar que “toda vez que assiste aos seus espetáculos vira patriota”.A performance que se desenrola no palco é uma aula de técnica clássica, explica um dos fundadores e coreógrafo da companhia, Rodrigo Pederneiras. Uma espécie de aquecimento para o ensaio. “É a primeira coisa boa que um bailarino tem de ter: técnica clássica”, diz ele, sentado em uma das poltronas do teatro na véspera da estreia da turnê comemorativa dos 35 anos da companhia. “A gente fala em 35 anos, mas mesmo assim, procura se oxigenar, buscar novas ideias e parcerias. Acho que essa incessante procura por coisas que ainda não fizemos é o grande barato”, afirma.[nggallery id=15113]A “aula”, como é chamada pelos bailarinos, acontece não apenas antes do ensaio daquela noite, mas também todos os dias na sede da companhia, em Belo Horizonte. No entanto, para expectadores que estão acostumados com os movimentos vibrantes e sensuais, o sacolejar do Grupo Corpo, assistir à “aula” é uma quebra de rotina. Surpreendente, simples e poética. Logo o palco se esvazia e uma música de ritmo vertiginoso ocupa o espaço. É a trilha sonora do espetáculo Ímã, criado no ano passado e reprisado nesta turnê comemorativa junto com Lecuona. Formada por 12 duos e criada em 2004 a partir da obra do compositor cubano Ernesto Lecuona (1895-1963), essa coreografia foi escolhida pelo público via internet para ser reapresentada. Além de São Paulo, a turnê passa por Belo Horizonte, Rio de Janeiro, Salvador e Brasília.Mesmo sem figurino nem iluminação adequados, o ensaio de Ímã já é um grande espetáculo impecavelmente encenado do início ao fim. A única parte que teve de ser repetida foram os agradecimentos – quando descem as cortinas e todos os bailarinos reaparecem no palco no fim da apresentação. Pederneiras orientou como eles deveriam se movimentar na hora de receber os aplausos. “Quando danço, minha cabeça se esvazia, mantenho o foco no que estou fazendo. Mesmo assim, consigo perceber a reação do público durante o espetáculo e geralmente é boa”, diz o carioca de Jacarepaguá Victor Vargas, 22 anos, bailarino do grupo há três.Vídeo exclusivo com imagens do ensaioO balé da companhia costuma mexer com as pessoas porque tem uma marca distintiva. “A gente escuta muito lá fora que criamos uma forma própria de dançar, falam que o Grupo Corpo faz um trabalho único. A companhia é uma ilha, e uma ilha de qualidade”, afirma o coreógrafo.O bailarino Everson Botelho, 32 anos, frisa que quem escolhe o Corpo tem de gostar do que faz. “Porque você aprende técnicas que se encaixam aqui e em mais nenhum outro lugar. Tem de estar consciente de que vai ser um trabalho específico.”A companhia tem uma identidade própria, mas não uma “cara”, um bailarino que se destingue dos demais – Pederneiras diz que “todos são primeiros bailarinos”. Mesmo assim, Everson e sua mulher, Silvia Aguiar, 11 e 10 anos respectivamente de casa, são reconhecidos pelo público mais fiel. “Dançávamos no Palácio das Artes em Belo Horizonte. Quando o teatro pegou fogo, sua reinauguração foi feita pelo Grupo Corpo. Eu e meu marido estávamos na plateia e comentamos: ‘É aqui que queremos dançar’.” Delicada e com menos de 1,60 m de altura, Silvia cresce em cena e preenche o palco com sua grandeza.Para ela, o Corpo é a melhor companhia do Brasil não apenas pela arte, mas também como trabalho. “Tem uma boa estrutura, você tem de se preocupar apenas com a dança e com nada mais”, diz.Pederneiras afirma que a companhia tem uma maneira de trabalhar que é completamente diferente das outras. “Há uma liberdade muitíssimo maior. Todo mundo que vem assistir a um ensaio sai horrorizado. Que zona é essa? Que confusão! É porque não tem ninguém que fica no calcanhar de ninguém, se não veio fazer aula, é porque teve motivo. Funciona magnificamente, é impressionante. A gente viaja pelo menos sete meses por ano e todos se dão superbem”, diz.É justamente isso que chama a atenção de bailarinos como Everson. “O que mais gosto no Corpo é o diferencial do tratamento da direção com os bailarinos. É uma relação de pai para filho. Eles têm carinho, cuidado e respeito muito grande pelos bailarinos. Não tem aquela pressão: ‘Ou você faz o que eu quero ou sai’”, afirma.A história do coletivo mineiro diz muito sobre sua filosofia de trabalho. A companhia nasceu de uma família de classe média amante de música clássica. A iniciativa partiu de Paulo Pederneiras, um dos cinco filhos de um engenheiro civil e de uma dona de casa. Paulo trouxe seus irmãos e alguns amigos para a empreitada e fundou o Grupo Corpo. Assumiu a direção geral e depois também a iluminação. Rodrigo, que era bailarino, a partir dos anos 1980 se tornou o coreógrafo do grupo. “Nunca sofri preconceito. Até curtiam com a minha cara, porque eu estudava em colégio de padre, o Marista Dom Silvério. Estudei até terminar o terceiro científico e já engatei nessa. Mas todos os meus irmãos se formaram: Pedro é engenheiro, Luís é médico e Paulo é arquiteto”, conta Rodrigo. Hoje, Pedro é diretor de cena do grupo, Luís, fotógrafo, e Paulo, diretor artístico do grupo. O filho de Rodrigo, Gabriel, 28 anos, também trabalha na companhia há oito anos como técnico.A trajetória do Corpo é dividida em duas fases: a primeira vai de 1975 a 1980, quando o argentino Oscar Araiz era responsável pela coreografia. “Foi fundamental para nós, mas chegou um ponto que não tínhamos domínio sobre nada, quer dizer, toda criação era importada, porque o Oscar quando vinha, trazia iluminador, cenógrafo, então a gente ficava como intérprete”, afirma Rodrigo.A partir dos anos 1980, quando ele assumiu a coreografia e Paulo, a iluminação e a direção artística, iniciou-se o que é considerada a segunda fase da companhia. “É a fase que nós trabalhamos. Se considerar as obras a partir daí, vai perceber que surgiram da música erudita”, explica.No início, eram eruditos brasileiros: Alberto Nepomuceno, Henrique Oswald, Bruno Kiefer, Heitor Villa-Lobos e Carlos Gomes. Depois vieram Mozart, Chopin e Bach. Dependia de “quem” Rodrigo Pederneiras estava ouvindo no momento, porque é a música que o inspira a criar. “Adoro música clássica, principalmente Bach e Beethoven, e rock’n’roll antigo, coisas como Rolling Stones. Acho que aprendi a coreografar ouvindo Bach”, diz.Rodrigo acredita que o grupo passou a marcar presença de uma maneira muito mais forte a partir de 1992, com a obra 21. “Com a trilha sonora do grupo Uakti, de Marco Antônio Guimarães, a gente começou a buscar uma linguagem nossa, um jeito mais brasileiro de ser. Hoje, a gente escuta muito: ‘Isso só o Grupo Corpo faz’”, afirma.”Trabalho com os músicos. E é a partir da música que surge a coreografia. Não tenho pretensão de ter ideias riquíssimas, nem acho necessário para criar. Não vou buscar referências em livros, poemas, nada disso. Na maioria das vezes, da ideiazinha mais simples do mundo nasce o melhor dos trabalhos”, revela.Com o espetáculo Breu (2007) foi assim. Quando Rodrigo se encontrou com Lenine para convidá-lo a fazer a trilha do espetáculo, perguntou: “Há alguma coisa que você nunca tenha feito e queira fazer? Então faça”. Lenine comentou que seu filho tinha alguns instrumentos, som de brinquedos… E Rodrigo recomendou: “Divirta-se”. Tempos depois, ao ouvir o resultado do trabalho de Lenine, Rodrigo concluiu: “Isso tem uma força violentíssima. Vamos falar de violência”.Ao longo desses 35 anos, o maior parceiro musical do grupo foi José Miguel Wisnik. “Ele é um sujeito simplesmente genial. Temos a mesma forma de pensar, de ver e querer fazer arte. Somos uma parceria que não tem aresta”, diz. A trilha do próximo espetáculo, que estreia em 2011, está sendo preparada por Wisnik. “Não tenho notícia nenhuma do que ele está aprontando, até preciso saber mais”, conta.Quando não está trabalhando, Rodrigo gosta de ficar em casa lendo e ouvindo música. Sua predileção são os livros policiais, sobretudo Dennis Lehane e P. D. James. “Gosto bastante também de um autor chamado Sérgio Bandeira de Mello”, afirma.O grupo conta ainda com a ONG Corpo Cidadão que, desde 1988, desenvolve um trabalho social com crianças em comunidades de baixa renda em Belo Horizonte e região metropolitana. Miriam, irmã de Rodrigo que o levou para o balé e foi assistente de coreografia da companhia por muitos anos, está à frente do projeto. “A ideia não é formar bailarinos, é um trabalho social. Fazemos parceria com gente que já trabalha dentro da comunidade. Cedemos professores, psicólogos, fazemos acompanhamento escolar, arrumamos verba para reformar e melhorar o espaço para as crianças, essas coisas”, conta Rodrigo.Três meses do ano ele se dedica a essa ONG. Sua contribuição é emprestar a sua arte. Ele coreografa um grupo de dança das comunidades para se apresentar no Palácio das Artes, que recebe os espetáculos mais importantes de Belo Horizonte. “O grupo se apresenta com orquestra própria, com os moleques tocando clarineta, sax, trompete, percussão. É muito legal”, diz.Desde que deixou de ser bailarino e se tornou coreógrafo, Rodrigo nunca mais sentiu vontade de dançar. Mas, eventualmente, sonha com isso. “Há pouco tempo, sonhei que estava dançando, mas não sabia o que estava fazendo ali, pensava: ‘Estou no lugar errado’”, relembra, rindo.Entre as companhias jovens chama a atenção do coreógrafo o Grupo Cena 11, de Alejandro Ahmed. “Eles têm um trabalho contemporâneo e forte.” Mesmo com a solidez dos 35 anos do Grupo Corpo, Rodrigo quer continuar crescendo. “Gosto de citar uma frase do meu irmão Paulo que eu adoro: ‘A gente não tem intenção de influenciar ninguém, a gente quer ser influenciado’”. Quando questionado sobre o que o motiva hoje, depois de tanto tempo de estrada, ele responde de um jeito bem mineiro: “O sacolejo do trem”.
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