Fotos por Luiza Sigulem
Vestindo terno azul marinho e botas de cowboy marrom, Cory McAbee chama certa atenção ao andar por Inhotim, Instituto de Arte Contemporânea e Jardim Botânico localizado em Brumadinho, há cerca de 60 km de Belo Horizonte. Seu andar é tranqüilo e sua fala é gentil. A cabeça, completamente careca, denuncia parte de seus 51 anos, mas seu corpo esguio e seu estilo amistoso transmitem uma jovialidade apaziguadora. Quem olha para o homem atencioso e interessado na beleza do parque pouco imagina as curiosas histórias que vivenciou em sua meia década de vida.
Amigo pessoal de Morgana Rissinger, coordenadora da programação cultural do Inhotim, o cineasta foi convidado para uma visita ao parque após ter seus três longas exibidos em uma pequena mostra realizada no local. Enquanto caminha em direção a um dos restaurantes do parque, Cory fala sobre sua nova banda, Captain Ahab’s Motorcycle Club – claramente inspirada no personagem principal de Moby Dick, clássica obra do americano Herman Melville. A citação é ainda mais curiosa quando se sabe que o obscuro cineasta afirmou ter lido seu primeiro livro apenas na casa dos 20 anos. “Cat’s Cradle, de Kurt Vonegut”, revela, quando questionado sobre qual teria sido o título escolhido para tão especial ocasião. Se após a “estreia” passou a se dedicar mais ao hábito da leitura? “Eu escrevo mais do que leio”, completa.
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A relativa demora para adentrar ao mundo das letras é compreensível quando se fica a par da história de vida peculiar do cineasta, músico e artista plástico americano. Nascido no pequeno subúrbio de San Rafael, nos arredores de São Francisco, Cory McAbee era filho de um frentista e de uma dona de casa. Pouco afeito aos estudos, o garoto mostrou desde cedo seu interesse para as artes, participando de peças escolares e se dedicando a pinturas que criava sozinho na casa dos pais. Com 21 anos, resolveu deixar a asa materna e sair em busca de seu destino. Ainda não muito certo do que fazer, ruma para São Francisco, cidade famosa por suas inovações culturais, como o surgimento dos escritores beats, nos anos 40, ou a explosão do movimento hippie, nos anos 60. Lá, aceita o primeiro emprego que lhe é oferecido: segurança de um bar. Na ocasião, Cory dificilmente imaginaria, mas esta se tornaria sua profissão por 12 anos.
“Eu entrei nesse habitat, então sempre que eu deixava de trabalhar em um bar, ia até outro lugar, me sentava lá para tomar uma cerveja e eles diziam: ‘oh, ouvi que você deixou seu emprego. Quer trabalhar aqui? ’ Como não tinha nenhum dinheiro, eu tinha que aceitar”. Enquanto bebe uma coca-cola, fala sobre a criação de seu primeiro curta, a animação Billy Nayer, feita de forma totalmente caseira. Ainda trabalhando como segurança, Cory – que já havia feito da pintura um de seus hobbies favoritos – constrói uma versão artesanal do rotoscópio, antigo aparelho usado para unir frames e criar animações cinematográficas.
Utilizando a porta de um armário dobrada e um antigo projetor quebrado, Cory faz a engenhoca funcionar. “Eu morava perto de uma loja de tintas, então eu comprei algumas latas e pintei até a cor ficar consistente. Eu precisava traçar frame por frame no papel e pintar novamente, o que levou anos”, conta o cineasta, responsável também pela trilha sonora do curta.
Desde então, a música também se tornaria parte importante de sua carreira. Recém chegado a São Francisco, conheceu o baterista Bob Lurie, músico que passaria a integrar com Cory as diversas formações da Billy Nayer Show, banda que conta com nove discos de estúdio e que foi responsável pela maior parte da trilha sonora de seus filmes, incluindo de seus dois primeiros longas, The American Astronaut e Stingray Sam, simbioses entre a ficção científica e os musicais, ambos munidos de uma boa dose de comédia. Caídos de pára-quedas na cena musical californiana daquele início dos anos 90, eles têm uma experiência relativamente curiosa logo em um de seus primeiro shows, quando abriram para a conceituada banda de punk rock Circle Jerks.
“Eu deixei o palco coberto de cuspe. As pessoas estavam jogando garrafas e latas em nós”, conta Cory, sem deixar de rir com as recordações. “Minha primeira banda era horrível”, confessa ele, que manteve a Billy Nayer Show e a parceria com Bob Lurie por quase vinte anos, até que os amigos decidiram seguir caminhos diferentes. Cory se dedicando ao cinema e seu novo projeto musical, e Lurie mantendo um estúdio musical em Manhattan, Nova York. “Minha banda não era realmente uma banda punk, e eles nos odiavam. Eu tinha um grande medo do palco, o pior medo de palco do mundo, então era uma combinação ruim. Mas eu queria fazer isso, então continuei fazendo”, relembra.
Cory também não imaginava, mas seu primeiro curta metragem acabaria sendo exibido em Sundance, hoje um dos mais importantes festivais de cinema do mundo. “Naquela época eu não sabia o que o Sundance era. Festivais de filmes não eram algo tão popular. Agora todo mundo sabe sobre eles, mas eles eram como sua própria subcultura acontecendo”, conta o cineasta, que atribui a exibição de seu filme em Sundance ao acaso. Vivendo perto de um local chamado The Film Marks Foundation, o cineasta decidiu levar seu curta até lá. A temática do pequeno filme agradou aos organizadores, que o exibiram em seu próprio festival. No evento, estavam os organizadores de Sundance, que apreciaram o talento do americano e passaram a exibir e apoiar seus filmes desde então.
Parecia que as coisas estavam finalmente se acertando para Cory McAbee. Apesar de continuar trabalhando em bares, ele passou a se dedicar a escrever e dirigir novos curtas, lançados pela pequena produtora independente BNS Productions, fundada por ele e por Lurie. No entanto, as coisas passaram a mudar quando o dinheiro que ganhava deixou de ser suficientes para pagar o aluguel de seu apartamento. Sem saída, deixou sua mobília com o senhorio para pagar os quatro meses atrasados e passou a viver na garagem de um amigo. “Acabei ficando três anos fazendo isso até conseguir dinheiro suficiente pra pagar aluguel novamente. E não foi horrível. Eu era jovem e saudável, você sabe…”, minimiza ele.
Se os tempos foram duros, também foram criativos. Durante o período em que ficou desempregado e sem uma verdadeira casa para morar, Cory McAbee vagou pelas ruas da cidade e escreveu o roteiro de seu primeiro longa, The American Astronaut, uma ficção científica musical sobre um cowboy espacial que em sua estranha e divertida jornada se deparada com personagens como “O Garoto Que Viu o Seio de Uma Mulher”, a “Garota da Vagina Feita de Vidro” e outros peculiares integrantes da história que tem o próprio cineasta como protagonista. A trilha sonora também originou um disco do Billy Nayer Show, cujos integrantes também compõe o elenco do filme. O bar, tão presente na vida de Cory, é outro que aparece por lá.
O mesmo cenário voltou a ser retratado em Stingray Sam, filme episódico que fez convidado pelo Sundance para ser exibido em pequenas telas, antecipando o advento de mídias feitas exclusivamente para novos dispositivos de exibição. Foi com sua primeira incursão nesse gênero – o curta Reno, de 2007 – que Cory ganhou o primeiro celular de sua vida. Por mais inacreditável que pareça, o cineasta underground foi pioneiro neste tipo de trabalho mesmo antes de ter um telefone móvel.
Ainda antes de conseguir o apoio de produtores para filmar The American Astronaut, McAbee viveu mais uma situação particularmente curiosa. Sem emprego, consegue por indicação de um amigo uma vaga para trabalhar em uma fábrica de manequins, onde era responsável por pintar os rostos dos bonecos, numa experiência que classificou como “horrível”. “Durou pouco menos de um ano, mas foi divertido por apenas cinco minutos. Havia uma grande mesa com pessoas fazendo manequins, e havia outra grande mesa na frente com todas as cabeças, eu sentava lá e pintava as faces deles”, recorda, às gargalhadas.
Depois de abandonar o emprego, McAbee voltou a trabalhar como segurança. Um dia, parou em um restaurante e se encantou com a garçonete. Reparou que ela lembrava a personagem de uma antiga foto que tinha em sua casa, e trouxe para entregá-la. Por azar, a garota – Amy – estava de mudança para Chicago. Gentil, Amy disse que o cineasta poderia entregar a foto para sua mãe, o que ele fez. A amizade durou dois anos, período em que Cory e Amy trocaram cartas e não se viram mais nem uma vez. Quando a paixão tornou-se inevitável, Cory se mudou para Chicago, onde viveu por mais dois anos com a atual mulher, mãe de seus três filhos: Willa Vy, de 9 anos; John Huck, de 4; e o bebê Sam, de 9 meses. Atualmente, a família vive no Brooklyn, em Nova York, onde Cory finalmente se estabeleceu como artista, realizando filmes, tocando com sua banda Captain Ahab’s Motorcycle Club e viajando ao mundo para falar sobre seu trabalho.
Há cerca de dois anos, Willa e Johnny também foram os protagonistas do que McAbee considera seu filme favorito, Crazy & Thief. Baseado em uma aventura infantil das duas crianças – então com 7 e 2 anos, respectivamente – no famoso bairro nova-ioquino, Cory filmou uma história adorável e simples, seu terceiro longa metragem. Sem apoio financeiro, juntou alguns amigos e filmou com orçamento reduzido e muita vontade. Para gravar os áudios, colocou gravadores comuns junto ao corpo dos filhos. Os outros personagens que compõe a encantadora trama são seus amigos, e a trilha sonora novamente foi feita pelo próprio Cory, que ainda jovem aprendeu sozinho a tocar a auto-harpa, instrumento pouco convencional que em 2003 rendeu um convite para que o cineasta fosse o único músico ocidental a se apresentar junto com uma ópera chinesa em concertos no NYC Lincoln Center e no Guggenhein.
Uma ópera também será o tema do novo filme do cineasta, que pela primeira vez contará com apoio de produtores de Hollywood para filmar um de seus trabalhos. Cory revela que a obra será baseada em uma peça de 1850, e que tem tentado encaixar diferentes músicas no projeto. “Ouço uma música clássica e penso ‘bem, isso funcionaria aqui’, e depois ouço um rap e penso ‘isso também funcionaria aqui’”, conta o empolgado cineasta, que fez da auto-suficiência e da simplicidade de recursos uma marca registrada de seus filmes, sempre inspirados em suas próprias experiências, utilizando seus filhos, amigos e conhecidos como membros da equipe e do elenco.
Com a banda Captain Ahab’s, Cory McAbee também quer trazer a marca registrada do Do It Yourself para a música. Através de um site, convida os ouvintes e fãs a interagirem com as canções, alterando-as até chegarem ao resultado final. O “clube” do título não é a toa. Qualquer interessado pode se tornar parte do projeto, que não tem fins lucrativos. Para Cory, o projeto da banda é “algo que funcionará porque não há dinheiro envolvido”. Segundo o cineasta, retirando o que chamou de “fábrica de ganância”, o clube torna as pessoas iguais na composição do projeto, e transforma suas contribuições em algo genuíno e espontâneo, que não vê sua iniciativa baseada na chance de lucrar. E Cory garante que, caso o projeto gere algum lucro, todo o valor será destinado a uma instituição de caridade. “Nós começamos a fazer as coisas pelo motivo que nos levaram a fazer no começo”, reflete.
No auditório de Inhotim, Crazy & Thief foi exibido para uma pequena mas interessada plateia, que ao final se reuniu com o diretor em uma das mesas de café do pátio externo. Num bate-papo descontraído, o cineasta falou sobre a composição do filme com novos fãs, encantados pelos dois pequenos protagonistas da obra. Em meio ao cair da tarde, Cory McAbee transmite a sensação de ser similar aos filmes que realiza: um sujeito amigável e pouco preocupado com as dificuldades ou a falta de recursos que possam eventualmente surgir. Para ele, basta uma pequena câmera e uma grande dedicação para realizar seus projetos e manter sua criatividade em constante funcionamento. Certamente, isso não lhe faltará.
* O repórter da Brasileiros, Gabriel Daher, viajou a Brumadinho a convite do Instituto Inhotim
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