Cracolândia assistida

Desde terça-feira, 3 de janeiro, a Polícia Militar comanda, na área central de São Paulo, a Operação Sufoco, que pretende eliminar o tráfico de drogas no centro da cidade. O policiamento ostensivo e a ocupação da área fazem parte do Plano de Ação Integrada Centro Legal, iniciativa da Prefeitura e Estado de São Paulo. Dividida em três fases, a medida pretende tornar o ambiente seguro, a fim de criar um local propício para ações de reintegração de usuários à sociedade.

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No entanto, declarações controversas e relatos de truculência têm colocado em xeque a eficácia do Plano. O editorial de O Estado de São Paulo, do dia 6 de dezembro, trata as medidas da Prefeitura como “irrealistas e grandiloquentes”. Além disso, matéria publicada na mesma edição, no caderno Metrópoles, relata o uso de armas de bala de borracha contra usuários. Carta Capital, em seu site, também publica reportagem com visão contrária ao Plano.

O pesquisador da Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP), Marcelo Ribeiro, endossa o coro dos que veem as ações da PM com ressalvas. Marcelo, que é coordenador da linha de pesquisa sobre o crack na UNIFESP, acredita que estamos vivendo um problema de saúde nacional. “Já existem levantamentos que mostram que o crack está em quase 100% das cidades brasileiras”, comenta.

Em entrevista a Brasileiros, que você lê abaixo, o pesquisador comenta a ação no centro de São Paulo. É possível tirar ao menos uma conclusão da conversa: o crack é uma das questões mais delicadas e urgentes de nosso tempo.

Brasileiros – O coordenador de Políticas sobre Drogas da Secretaria de Estado da Justiça e da Defesa da Cidadania, Luiz Alberto Chaves de Oliveira, declarou: “Como é que você consegue levar o usuário a se tratar? Não é pela razão, é pelo sofrimento.” Você concorda?
Marcelo Ribeiro – É uma estratégia sem nenhum embasamento. As pessoas não usam, ou deixam de usar a droga, porque sentem dor. Isso é um pensamento ultrapassado, dos anos 1950, que vigorou durante muito tempo. Eu quero acreditar que eles não quiseram dizer bem isso, porque não é provocando abstinência que as pessoas vão buscar ajuda. Existe um fundamento anterior, com o qual eu concordo, que diz: quanto mais você facilitar o acesso, mais as pessoas vão usar. Vide o cigarro. O consumo de cigarro no Brasil, nos últimos 10 anos, caiu 25%. Não é porque proibiu, mas porque regulamentou melhor. Acho que estabelecer alguns parâmetros pro crack é importante para ajudar a pessoa a conseguir dizer “não”. Acho que é impossível deixar um exército de pessoas usando crack na rua. Mas esse não é o modo de se fazer.

Brasileiros – Então, o que fazer com a cracolândia?
M.R – Não há uma receita de bolo. Mas temos que estruturar melhores serviços antes de fazer uma ação como essa. Não precisaria fazer essa coisa surpresa. Mesmo por que, as pessoas que estão precisando de ajuda mal têm noção de espaço. Mesmo que você diga “segunda-feira vai ter um rapa”, eles estão tão enlouquecidos pela substância, que só vão parar pra pensar nisso na segunda-feira.

Brasileiros – O Plano não é minimamente eficaz?
M.R – Não digo isso. Eles têm uma estratégia ali. A vice-prefeita tem falado com bastante convicção sobre o assunto. Cada um tem o seu método, mas o deles é meio de “tolerância zero”. Concordo que, em alguma hora, tem de haver uma coisa mais endurecida. Mas ela devia ser melhor “combinada”, para o usuário ter, de fato, uma alternativa. Eu estive lá faz, mais ou menos, um mês. É uma “lixaiada” impressionante. Por que não ir cuidando disso, por enquanto? Dá pra estar presente lá, tomando ações sanitárias. Não precisa chegar e quebrar tudo.

Brasileiros – Mas já existe algum tipo de política de assistência social na área, não?
M.R – Uma coisa harmonizada não. Existem equipamentos desconexos. Tem o CAPS – Centro de Atenção Psicossocial – da Rua Prates, que é tido como a “mãe” de todos os CAPS. Afora isso, tem o trabalho de ONGs, Igrejas e universidades. Há, também, a promessa de entrega da primeira fase de mais um grande CAPS, com mais de 1200 vagas, para janeiro. Mas, com essa ação da PM, eu já vi vários colegas nossos dizendo que o trabalho que eles vinham fazendo acabou se perdendo. Em minha opinião, devemos pensar melhor os equipamentos que temos. Assim, daria tempo de envolver melhor todos os profissionais que estão na área.

Brasileiros – O crack é uma droga diferente, não é? E o usuário parece, em sua grande maioria, pertencer às classes mais baixas da sociedade…
M.R – É verdade. Ela pega pobres e pessoas marginalizadas. O crack é uma droga desenhada, vamos dizer assim, para a população marginalizada. Ela é natural do caos urbano, da ausência de Estado. E o crack, ao contrário da cocaína, está disponível em várias formas. Uma lasca chega a custar 2, 3 reais. Por isso, acaba sendo muito mais barata. E também, depois que a pessoa está vivendo em função dela, o preço acaba sendo o de menos. Ela vai fazer a correria dela para arrumar o dinheiro.

Brasileiros – Existem diferentes comportamentos entre os usuários?
M.R – Eles são totalmente heterogêneos. Faz toda a diferença se é homem ou mulher, se é jovem ou velho. A questão de parar de usar é um passo ridiculamente pequeno, perto do que vem depois. A palavra é estruturação. Você tem que ajudar o cara a se estruturar. A arte do tratamento está aí: ajudar o cara a continuar abstinente, enquanto ele vai reconstruindo a vida dele.

Brasileiros – Isso toca na questão da internação compulsória…
M.R – Tem tudo a ver. Esse é um recurso que deveria estar disponível, que pode ajudar a pessoa. Se você colocar para a pessoa que ela vai ser internada e que, depois, vai ter um acompanhamento, isso vai fazer toda a diferença. É um recurso para uma população e para um momento restrito do tratamento desses indivíduos. A internação compulsória serve para isso: no momento em que o cara está completamente desorganizado, você consegue acessá-lo.

Brasileiros – Existe essa ideia de que o usuário é uma pessoa desprovida de vontade própria, mas me espanta a lucidez de alguns…
M.R – Eles são pessoas inteligentes. O consumo da substância não afeta a inteligência, afeta a capacidade de a pessoa utilizar essa inteligência nos timings corretos. A pessoa fica mais impulsiva e tudo se volta para a droga. São os timings que ficam prejudicados.


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