Crer ou não crer: eis a superstição

Não há como ignorá-las. Superstições são antigas, têm história documentada, sobrevivem e revivem, despertam a curiosidade, provocam ironias, interessam a vários domínios de conhecimento. No Brasil, constam no rol da chamada tradição popular, antiga e rústica, temperada no permissivo catolicismo “mole” e “adocicado”, como assim denominou Gilberto Freyre, ensaísta da formação social e cultural da colônia portuguesa na América, aí onde as superstições encontraram campo fértil para difusão e criação. Certa porosidade entre tradições africanas, indígenas e européias, certo distanciamento da população em relação aos ritos oficiais da Igreja em tão vasta e dispersa colônia continental formaram o caldo histórico e sociológico que irrigou o imaginário das superstições. Mário de Andrade nelas tropeçou em suas andanças pelos interiores brasileiros. Rendeu-lhes conta, por exemplo, em seu Namoros com a medicina. Mas basta um lance de olhos em Macunaíma para logo flagrarmos um tanto delas ali salpicadas.

Luís da Câmara Cascudo as documentou e sobre elas versou em toda a sua obra dedicada à chamada cultura popular. Folclorista, como então se denominava, Câmara Cascudo dedicou um livro ao assunto: Superstição no Brasil. Em seu Folclore do Brasil, de 1967, por exemplo, Cascudo demora-se em superstições sobre o poder contagiante, purificador e rejuvenescedor da água e dos banhos. Escreve sobre os afamados banho-de-cheiro, banho-do-mato, banho-de-ervas ou as técnicas de ramalhete, todos recursos de defesa mágica, “com feição terapêutica contra a má sorte, reincidência de acasos infelizes, negócios falhados, assuntos de amor impossível, sonhos econômicos”, que povoavam e povoam os recantos de um Brasil nem tão antigo assim. De uso generalizado nas festas joaninas, havia arruda, alecrim, manjericão e outra infinidade de ervas aromáticas. Havia os banhos sanjoanenses, de origem portuguesa, preparados contra mau-olhado, azar, moléstias de pele, “porque têm o condão de conservar a felicidade, afastar o caiporismo, destruir o enguiço, ou readquirir os favores da sorte”. Essa botânica que se chamaria hoje de popular, mas que foi medicina de uso geral na colônia, também se surpreende nos ritos e festas de candomblé, como em “feituras das filhas-de-santo e mesmo para fixar o santo”.

Quanta magia de contágio e simpatia na historiografia sagrada e pagã das águas! Quanta, diríamos, superstição. Não é assim com a água benta ou santa? Antiga era a água lustral que gregos e romanos fumigavam com folhas de louro ou aspergiam em cerimônias de purificação. Pagãs, é verdade, mas serão transformadas na água batismal do cristianismo, utilizada pelo método seja da ablução, da imersão, da aspersão ou da efusão. Águas que purificam. Função que a água-de-oxalá também presta nos candomblés, água que se troca cerimonialmente para purificar o terreiro. Todas as águas que carregam semelhante princípio simpático do contágio, essa ação mágica indutora de efeitos, atraindo ou repulsando propriedades das coisas umas com as outras. Purificam, consagram. Dita o catolicismo popular brasileiro que “cuspir na água é cuspir na cara de Nosso Senhor”. A incursão de Mário de Andrade nos assuntos de medicina destacou a recorrência dessa imagem imaculada, pura e sagrada da água:

Em Portugal é pecado urinar n’água, só se livrando da culpa quem diz, ao mesmo tempo: “Morra o diabo, viva o menino Jesus”. Na Alemanha, explicam a proibição como delito contra o céu que se espelha nas águas. Ainda no Brasil amazônico, as mães proíbem aos filhos urinar n’água porque o terrível do peixinho candiru sobe por ela e entra na bexiga do mijador. Otoniel Mota, nas Horas Filológicas, provavelmente colhendo a tradição aqui em São Paulo, diz que o povo a explica afirmando que “a água é nossa mãe”, e quem nela urina vai pagar no inferno esse desrespeito. É uma tradição linda brasileira a que proíbe defecar a beira-rio, porque jamais nunca as águas se dignarão atingir esse lugar, para sempre abjeto.

Sagrada e terapêutica como a popular água-dormida, aquela que se deixa ao sereno a fim de ganhar mais forças para ser ministrada como remédio no dia seguinte. Mágica e contagiosa como a “água da lavagem da camisa de uma mulher, dada a beber a um rapaz (que o faz) deixar outros amores e apaixonar-se pela dona da camisa”, conforme relatos que Câmara Cascudo colheu. Aí a água aparece como substância, diríamos, própria de carrego, uma virtude conservacionista, mas, simetricamente, própria também ao descarrego, porque ela dissolve forças. Por isso os despachos das religiões de origem afro-americana terem a um só tempo suas forças conservadas ou dissolvidas conforme a espécie de rito que se apropria do elemento.

Naqueles banhos com águas mágicas, naquilo que hoje denominaríamos de superstições, podemos ainda ver coincidir medicina, magia e religião. Uma trova popular recolhida por F. A. Pereira da Costa e publicada em 1908 na Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, lembra o “banho na Cruz do Patrão”, de encantos e virtudes mágico-religiosas, a que os foliões se apegavam para, associado ao favor do santo, dissolver mazelas e atrair felicidade e boas venturas.

Nessa noite é benta a água
Para tudo tem virtudes.

Em Fora de Portas
Eu vou me lavar,
Se eu cair no fundo
Mandai-me tirar.

Meu São João,
Eu vou me lavar,
E as minhas mazelas
Irei lá deixar.

Oh meu São João,
Eu já me lavei;
E as minhas mazelas
No rio deixei

Narrado e versado, o tema dá testemunho da história da cultura brasileira. Concedamos que as superstições assumem o mesmo estatuto de patrimônio cultural.

Podemos reencontrar imemoriais lendas nórdicas e recuar à Idade Média se seguirmos a genealogia histórica dos azares e infortúnios atraídos pelo número 13 ou pelo gato preto que cruza o caminho. Quem inventou isso de bater na madeira três vezes para isolar e afastar notícias ou pensamentos ruins? E os possíveis infortúnios trazidos pelo guarda-chuva aberto dentro de casa? De onde o mau-agouro de um espelho partido? E quanto às desditas por passar debaixo de uma escada? Desde quando vestir branco na virada do ano para atrair boa sina? Coisa de supersticioso? Por via das dúvidas, mesmo aqueles que se acreditavam incrédulos e céticos acabam com uma taça de champanhe à mão enquanto engrossam o coro da contagem regressiva nos ritos de passagem do ano. Confessos ou não, eles estarão devidamente paramentados com uma roupa de baixo tão alva como a própria esperança. Mas, para além de seus registros históricos, encaremos a pergunta: por que as superstições continuam entre nós, no presente? Que papel jogam no seio da mentalidade moderna, esta que, ao contrário, se brinda com a razão natural e a verdade científica? O que as superstições nos evocam? A que atendem? Exorcizariam algo?

Nós modernos, que cremos bem separar fatos da cultura e fatos da natureza, aceitaríamos de bom grado o valor cultural das superstições. Apoiado na razão e nas ciências naturais, porém, não é preciso muito para que o mesmo moderno logo ironize as pretensões de verdade e razão nas superstições. Não temos razão? Ora, é precisamente de razão que se trata. Nos dicionários, superstição aparece como antípoda da razão. Uma e outra se situam em posições diametralmente opostas. A negação de uma consiste na afirmação da outra.

Causalidade enganosa, agravo às verdades naturais, desvirtuamento do real. As superstições guardam a potência de ofender o saber científico, ilustrado, esclarecido. Terapêuticas supersticiosas, por exemplo, foram historicamente acusadas de charlatãs pela medicina oficial. Feitiçaria, paganismo, charlatanismo, irracionalidade – eis algumas das categorias que acompanham as superstições. Mesmo hoje, mesmo diante do saber científico já devidamente estabelecido na oficialidade, mesmo com todas as terapêuticas contrárias e heréticas já devidamente compartimentadas no cantão da cultura e destituídas do valor de conhecimento sobre a natureza não é impossível que a mentalidade moderna siga acusando nelas alguma espécie de degenerescência psicopatológica, como Transtorno Obsessivo-Compulsivo (TOC), mania, obsessão. Sem ônus ou constrangimentos, a classificação médica e científica bem poderia enquadrá-las aí.

Por outro lado, é também verdade que a ciência moderna, em seu braço médico e acadêmico, deve conceder o valor de eficácia terapêutica que as superstições podem operar. Nesse caso, dir-se-ia tratar-se de eficácia simbólica, nessa expressão consagrada pelo antropólogo Claude Lévi-Strauss, que sugeriu assim compreender a solução de um parto embaraçado que arriscava a vida de uma indígena cuna (população do Panamá) e de seu bebê natalício. A solução consistiu em organizar, através do canto de centenas de versos míticos pelo xamã ou pajé, essa desordem (a um só tempo mental e orgânica) experimentada pela parturiente indígena. A criança finalmente veio à luz.

Não raramente minoritário, esse reconhecimento terapêutico é chancelado pelas ciências da natureza quando estas reconhecem nas superstições benesses aparentadas do efeito sugestão. Benefícios psicossomáticos, diremos. A desordem da doença substituída pela ordem da saúde restabelecida. Desequilíbrios que se curam. Mas, ainda aí, efeito placebo ou sugestão não passaria de subproduto terapêutico que as superstições surtiriam engendrar. Não por acaso aparecem como uma “má razão”, conforme jargão tecnocientífico, contra a qual se erguem os laboratórios não por acaso denominados contra-placebo. Como sugestão, placebo ou superstição, trata-se de razões fracas perante as fortes das ciências, estas baseadas num tribunal da razão supostamente imparcial.

Como crença, as superstições refletiriam um fundo religioso, mas não por isso podem pretender escapar das acusações. Bem ao contrário, também aqui sua existência reforça suas forças opostas: as de uma religiosidade depurada de atos mágicos e ritos de simpatia. Se tanto, a religiosidade a que as superstições remetem aparece de certa forma pífia, não compõe sistemas morais, como normalmente presentes nas grandes religiões. Resquícios de sistema religioso, elas ecoariam um indesejável e incômodo fundo pagão e de feitiçaria.

Qual primitivo poder contagioso de um copo de água sobre um televisor a exibir preces e encantamentos? Num contexto contemporâneo de modernidade e ciência, as grandes religiões tradicionais que vingaram no solo histórico do Ocidente já não podem, não sem mais, ratificar oficialmente o ato de abrir, ao acaso, uma página da Bíblia atrás de respostas para aflições. Também aqui as superstições vão se prestar, não raro, a objeto de ironia, como não passassem de bizarras e exóticas sobrevivências de um misticismo difuso, de uma religiosidade mágica que outrora se servia, sem pudor, de semelhantes atos e representações em suas liturgias, ritos e ofícios, mas que agora talvez as prefira deixar esquecidas em seu passado obscuro. Convém mesmo esquecer sua etimologia.

O certo é que invariavelmente topamos com esse conjunto bem articulado de acepções negativas, testemunhas das acusações disparadas pelas forças bem estabelecidas da ciência e da religião. Crença em falsas razões, temores infundados, confusão sobre causalidade, percepções enganosas, fetichismo, fantasia. Face às superstições, ciência e religião dão-se os braços para se oporem ao charlatanismo e ao paganismo que pressupõem nesses sortilégios, nessas que seriam muletas destinadas a exorcizar, como magicamente, o medo e a insegurança. Fonte de irreflexão e imprudência, arcaísmo da natureza, atavismo da cultura, abastardamento da religião – eis a pecha das superstições.

Geneticamente ligadas ao que se convencionou denominar de tradições populares, as superstições marcam o conflito – histórico, sociológico, político, cultural – com os poderes espirituais e temporais que se forjaram negando terapias mágicas e feitiçarias mestiças. Mas um domínio revela o outro, eles se correspondem. A história das superstições é a história das acusações que receberam. Mas, ora, não é como categoria de acusação que as superstições revelam o moderno ele mesmo? Pela negativa, elas nos dão conta de nós mesmos. É que, contrapondo-se à religião oficial, aos métodos racionais de terapia e cura, ao saber das ciências bem firmadas e instituídas, sorrateiramente as superstições denunciam no moderno tudo que nele aparece como dado e universal: tudo que é diametralmente oposto ao absurdo e inverossímil, ao fantasista e irracional. Mas não será que ganharíamos mais se deixássemos, por assim dizer, passar os mistérios e as ambigüidades das superstições?

É certo que, opostamente ao programa fechado das ciências e suas certezas prometidas, nas superstições o acaso e as incertezas insistem em permanecer. Mais: seu programa aberto permite operar com os mesmos elementos para ativar forças ora atrativas ora repulsoras, ora o semelhante causando o semelhante, ora causando seu contrário. Se elas não fossem logo de saída barradas, proibidas ou desdenhadas pelo senso comum da ciência e da modernidade, que maiores efeitos experimentaríamos das rivalidades que as superstições instauram? Decerto que por ameaçar nossos mais cavados fundamentos é que sempre incomodaram tanto.

Ainda que acantonadas no cômodo domínio quase exótico da cultura, mesmo sendo objeto de desconfiança e até zombaria dos modernos quanto à lógica e eficácia de suas poções e mezinhas, além de distorção do verdadeiro espírito religioso, as superstições contudo seguem e insistem. O caso é que, se as ignoramos, junto deixamos no irrefletido todas as condições que, touché, permitem nossas reflexões – racionais e escrupulosas, experimentais e reprodutíveis, científicas e reais. Aí certamente o poder das superstições entre nós modernos. Fundo de resistência à unanimidade e ao consenso, as superstições desestabilizam as evidências e o evidente. Melhor crer nelas. Nem que seja por superstição.

DEFINIÇÕES
Superstição: substantivo feminino
1. Crença ou noção sem base na razão ou no conhecimento, que leva a criar falsas obrigações, a temer coisas inócuas, a depositar confiança em coisas absurdas, sem nenhuma relação racional entre os fatos e as supostas causas a eles associadas; crendice, misticismo.
Ex.: por segurança, vários hotéis nos Estados Unidos não possuem o 13º andar.

2. Crença em presságios e sinais, originada por acontecimentos ou coincidências fortuitas, sem qualquer relação comprovável com os fatos dos quais se acredita sejam prenúncio.

3. religião primitiva, em que se cultuam basicamente espíritos que se crê estarem presentes nas coisas e nas forças da natureza; paganismo, magia, feitiçaria.

4. Derivação por extensão: crença cega, arraigada e exagerada em alguma coisa, alguma regra ou algum princípio, que se adora ou se segue sem questionar. Do latim superstitìo, ónis ‘superstição; observação escrupulosa; objeto de terror religioso; culto religioso, veneração; adivinhação, profecia’, do v. lat. supersto, as, stìti, státum, áre ‘estar sobre ou acima de; estar apoiado ou firmado sobre’.

Fonte: Dicionário Eletrônico Houaiss da Língua Portuguesa. Versão 1.0.5, Agosto de 2002.


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