Crianças e jovens: como e quando intervir

O psiquiatra Alexandre Saadeh. Foto: André Sampaio
O psiquiatra Alexandre Saadeh. Foto: André Sampaio

Cerca de 40 crianças receberam atendimento e 34 estão sendo acompanhadas por uma equipe médica multidisciplinar. Entre os adolescentes, o número é maior: 94 atendidos e 58 em acompanhamento. Eles estão no Ambulatório Transdisciplinar de Identidade de Gênero e Orientação Sexual do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas de São Paulo. É lá que vão receber o diagnóstico se têm ou não têm uma questão de gênero. 

Quem coordena o ambulatório é o psiquiatra Alexandre Saadeh, que trabalha com sexualidade desde 1993 e cuja tese de doutorado pela Universidade de São Paulo trata do “transtorno de identidade sexual”. “Há cinco anos, além dos adultos que já atendíamos, começamos a  receber no HC crianças e adolescentes. Mas o número cresceu e, em 2015, decidimos não receber novos pacientes adultos para focarmos nessa nova população.”

Para ele, a identificação com o sexo oposto e o eventual desejo de uma pessoa em assumir uma nova identidade de gênero podem aparecer ainda na primeira infância. O assunto é polêmico e Saadeh avisa: “É importante diferenciar uma simples experimentação de um comportamento repetitivo”.

O atendimento

Atendemos a três populações muito diferentes: adultos, adolescentes e crianças. São necessidades e demandas completamente distintas. Um adulto, em geral, é mais complexo porque a sua identidade de gênero pode ter começado a ser questionada ainda na infância. Chegou à fase adulta com todas as questões sociais, pessoais e sexuais decorrentes. Com adolescentes e crianças é outra situação. A criança é trazida pelos pais e isso tem a variável do olhar deles para a questão. Nesses casos, um dos focos do diagnóstico é a criança e o outro são os pais, a família. Atendi a um menino de 6 anos, filho de um casal supermoderno, que era um moleque com comportamento bem masculino, mas os pais davam boneca para ele brincar, queriam vesti-lo de saia. A questão era dos próprios pais. Uma coisa é a criança querer experimentar uma situação diferente. Outra é forçar uma experimentação.

A primeira criança

Nosso primeiro atendimento foi um menino disfórico de 4 anos. Sua família é supertranquila em relação a isso, permitia que ele fosse menina em casa. Mas no meio social era diferente, ele sofria, era um moleque chato, irritado, violento. A decisão para a transgeneridade foi dele com a família e nossa supervisão. Hoje é uma menina de 9 anos, linda, maravilhosa. Ela vive em Mato Grosso, teve inclusive autorização judicial para mudar de nome, deu um bafafá na imprensa.

O diagnóstico

Em termos médicos, o diagnóstico é disforia de gênero, está classificado no DSM-5 (Manual de Diagnóstico e Estatística dos Transtornos Mentais 5ª edição). Essa classificação internacional é um problema para os ativistas sociais, o que me parece uma bobagem. Um diagnóstico médico não significa que haja doença. Qualquer intervenção médica exige um diagnóstico. Não posso simplesmente dizer que uma criança tem disforia de gênero. É preciso fazer um diagnóstico e, para isso, seguimos todo um protocolo. O mais interessante de trabalhar com crianças é que não precisamos intervir, apenas acompanhamos com psicoterapia, orientação aos pais e conversa com eles. É um atendimento regular. A OMS define a transexualidade como um dos transtornos de identidade sexual. As pessoas dão um peso enorme a essa palavra. Para mim, não se trata de doença e não uso o diagnóstico para separar doentes e não doentes. O nome não importa, e sim o que essa pessoa traz consigo e de como vamos lidar com ela. E não é uma questão estética, é terapêutica. O que a expressão diagnóstico revela é a necessidade de intervenção médica, intervenção em saúde.

A avaliação

Nosso trabalho com crianças que têm questão de gênero é de observar. A partir dos 3, 4 anos, já existe essa definição, se é menina ou menino. Mas é muito comum receber crianças que sofreram tanta repressão que não se bancam, como o menino que gosta de boneca, de vestido, mas o pai não aceita. Quando ele é questionado no ambulatório, não olha para o pai nem para a mãe e fala: “Não gosto de boneca, gosto dos vingadores”. Mas a gente vai perguntando e, de vez em quando, escapa uma coisinha mais feminina. Só que essa criança já introjetou que é errado gostar de boneca, por exemplo. Há algumas que passam por fases distintas, querem experimentar. Mas quem tem uma questão de gênero não está passando por uma fase, porque é algo que se mantém ao longo do tempo. Se a família não aceita, essa criança passa por um sofrimento por ter de pertencer a um gênero que não condiz com sua identidade.

O consultório

Outro dia, atendi a um menino de 8 anos que nasceu menina, mas não havia a menor sombra de dúvida de que é um moleque. Quem o cria é a avó. Ao falar com ela, ao lado do neto, fico sabendo que sua maior preocupação eram os seios. Ao me dizer isso, puxou a camiseta dele para baixo  ressaltando os brotinhos mamários. Essa atitude da avó o deixou péssimo. Nessa fase, menino ter peitinho é o horror dos horrores e nessa situação a questão se agrava. No caso dessa criança, com a puberdade sendo ativada, foi necessário fazer um bloqueio porque, se esperássemos a menstruação, a vida desse menino seria um inferno.

A família

Para alguns pais, conviver com uma criança disfórica é quase um luto. A maioria não está preparada para olhar para aquele filho ou filha com outra identidade de gênero. Os pais também precisam de auxílio e, reforço, o diagnóstico precisa envolver, além do paciente, os pais e a família. O adolescente, quando chega aqui, em geral já tomou hormônio. Eles compram no mercado negro, pela internet. Estão antenados com tudo, mas não sabem usar a medicação, tomam altas doses. Alguns injetam silicone industrial por conta própria, um horror, porque fica plástico dentro do corpo. Além de deformar, provoca uma série de problemas graves de saúde.

Ambiente social

Isso exige várias respostas. Nosso País é muito liberal nas brincadeiras sobre sexualidade, mas, quando o assunto é sério, os valores são estreitos. Evoluímos muito aqui em São Paulo, existem ótimas oportunidades. Desde que eu comecei a trabalhar, em 1997, até hoje, as características socioeconômicas da população transexual mudaram muito. Na época, 80%, 85% dos adultos que buscavam o ambulatório se prostituíam; hoje de 10% a 15% estão nessa situação.

Cirurgia

Crianças não são submetidas a cirurgias nem recebem hormônio. A questão começa a ter certa gravidade no início da puberdade e esse é um momento crucial da nossa intervenção porque é quando ocorre uma transformação física radical, e a biologia não está nem um pouco interessada na identidade de gênero. O corpo vai se desenvolver pelo caminho biológico. Quando resta alguma dúvida com relação à disforia, fazemos um bloqueio, impedindo a puberdade, mantendo a infância por mais tempo até ter maior certeza se existe disforia ou não. Depois, desbloqueamos e iniciamos a hormonoterapia específica para aquele gênero definido. As cirurgias só são permitidas depois dos 21 anos e não basta ser transexual para se submeter à cirurgia. A pessoa precisa estar preparada, tem de estar certa e passar certeza para a equipe de que vai saber lidar com as modificações decorrentes da operação. É um processo, ninguém dorme João e acorda Maria. E, depois, ocorre uma reformulação do esquema corporal. A pessoa precisa reaprender a andar, precisa reaprender um monte de coisas. Uma coisa é ter pênis, escroto e testículo. Outra é não ter mais esses órgãos e ter uma vagina. Isso muda tudo e completamente.

Cérebros diferentes

A minha formação é biomédica, não enxergo o fenômeno como cultural. Quando uma criança de 3, 4 anos se diz de outro gênero não é uma questão cultural. Entendo a transexualidade apenas como base biológica. Os fenômenos sociais e culturais facilitam ou não a expressão. Mas no útero materno, primeiro se forma a genitália e depois o cérebro, e existe uma diferença entre o cérebro feminino e o masculino. Eles funcionam de forma diferente, têm diferenças de estrutura, de sinapses que ganham caminhos distintos. Isso em termos biológicos. O comportamento sim, masculino ou feminino, é cultural. Mas o cérebro define se é homem ou mulher. Quando alguém tem o desenvolvimento do genital de um jeito e o cerebral de outro, há o fenômeno da transexualidade, em termos biológicos. Teoricamente, todas as pessoas trans tiveram um desacordo cerebral.

A cultura

A teoria Queer, com a qual tenho uma série de restrições, fala sobre o neofeminismo, que o sexo biológico não existe, que o sexo é uma construção sociocultural, a opressão feminina… Eu acho um tanto radical e pergunto: por que a maior parte dos transexuais é de mulheres? Se a mulher é oprimida, quem gostaria de perder os privilégios masculinos para virar mulher? Homens trans, aliás, sofrem menos preconceito que mulheres trans porque ninguém percebe a mudança. Quando a transição hormonal se dá em homens biologicamente adultos, o resultado em termos estéticos pode não ser tão bom. Provavelmente se tornarão mulheres feias. Depois da cirurgia, a maior parte das pacientes trans passa por um acompanhamento e é muito interessante porque muda completamente de figura. As queixas das mulheres trans são as mesmas das mulheres biológicas: que não tem homem confiável, que ganham menos que eles, todos os homens traem… Se fosse uma questão cultural, a maior parte da demanda seria inversa, de mulheres com identidade masculina. Mas não é isso que vemos na prática. Existe uma maneira para se lidar com mulheres e com homens. Isso é cultural. O fato de o homem ser considerado mais forte também é uma construção cultural. Mas não dá para dizer que a cultura determina a identidade de gênero. Ela determina a maneira como as pessoas vão expressar esse gênero.

MINHA FORMAÇÃO É BIOMÉDICA, NÃO ENXERGO O FENÔMENO COMO CULTURAL. QUANDO UMA CRIANÇA SE DIZ DE OUTRO GÊNERO, NÃO É CULTURAL” 

A regulamentação

O Conselho Regional de Medicina deve lançar uma resolução incluindo crianças e adolescentes. Isso nos preocupa. Hoje existe apenas um parecer, de 2013, com o qual nos baseamos. Minha preocupação, como responsável por este ambulatório, é que nessas resoluções sempre saem regras muito rígidas, como cirurgia a partir dos 21 anos, hormonioterapia a partir dos 18. Mas não dá para ter uma idade definida porque cada corpo é um corpo. Minha luta é que essa resolução leve em conta critérios clínicos, não cronológicos.

Equipamento público

Para a população adulta, o Ministério da Saúde disponibiliza cinco centros referenciados: São Paulo, Porto Alegre, Rio de Janeiro, Goiás e Recife. Existem alguns ambulatórios em outros estados, como no Amapá, na Paraíba e em Salvador. Mas, para crianças e adolescentes, o Brasil só tem o ambulatório de São Paulo e um começando a funcionar no Rio Grande do Sul. O Brasil é uma colcha de retalhos trans, a população do Norte e do Nordeste nem chega ao serviço público. A cidade de São Paulo tem uma realidade, uma característica diferente, e, apesar de todas as dificuldades de inserção, a população transexual vem se colocando na sociedade, apesar de muitos serem autônomos porque enfrentam dificuldade de emprego. Mas tem muita gente fazendo faculdade pública e pós-graduação. Há uma maior abertura de inclusão, de aceitação, de certo respeito. Para mim, respeitar envolve uma carga de tolerância, mas aceitar significa lidar com o outro. As características de uma pessoa ou de outra não a tornam melhor ou pior ser humano.

População trans

Temos uma estimativa diante dos números internacionais. O dado mais clássico é de 1 para 40 mil pessoas, de homem para mulher, e de 1 para 100 mil, de mulher para homem.

Arrependimento

Temos uma grande preocupação nesse sentido, de pessoas que foram para a cirurgia, ou estão indicadas para a cirurgia. Mas só indicamos quando essas pessoas têm total certeza do que querem fazer com o corpo, avalizadas com o nosso acompanhamento. Dos adultos operados que acompanhei, nenhum se arrependeu, tenho certeza. Um ou outro pode não estar satisfeito com a estética, mas arrependimento não. Agora precisamos acompanhar essa população de crianças e adolescentes, que vai se tornar adulta.

A terminologia

Há muita confusão em torno da terminologia. Hoje a tendência é falar que todos são transex, e não são. A população transexual é bem específica dentro da transgeneridade, em que estão incluídos travestis, cross dresses, drag queen e transexuais, que são aqueles que se identificam com o sexo oposto ao de nascimento, têm uma identidade de gênero contrária ao designada no nascimento.


Comentários

Uma resposta para “Crianças e jovens: como e quando intervir”

  1. Os argumentos contra a teoria queer apresentados aqui me parecem bem fracos. Ter um cérebro X justifica alguma restrição de acesso a uma identidade de gênero, se ele é socialmente construído? As diferenças cerebrais são tão relevantes assim para questões de identidade? Os fatores biológicos não determinam a identidade de gênero de alguém, porque gênero é aprendido, nós performamos um gênero. Diferenças no desenvolvimento do cérebro e dos órgãos sexuais (no casos dos intersex, por exemplo) podem até auxiliar, mas não determinam o gênero. Este não está no cérebro ou em qualquer outro lugar, é sempre uma expressão, é criado na convivência com outros seres humanos.

    O doutor parece desconhecer a teoria de gênero e confunde cultura com subjetividade individualista. Quando dizemos que gênero é socialmente construído, significa que não é uma simples escolha individual, como se a pessoa pudesse resolver se tornar de outro gênero. O processo de autocompreensão, de formação da identidade, não é individualista, é social. O doutor pergunta: quem gostaria de ser mulher numa sociedade machista? Mas a pessoa não é trans por uma escolha racional ou utilitária, doutor. Essa pergunta não tem sentido. Ela implica no contrário do que a teoria de gênero afirma. Talvez haja mais mulheres trans assumindo a transição do que homens trans pelo mesmo motivo que existem mais homens gays assumidos do que lésbicas assumidas. Justamente porque o peso da opressão contra pessoas identificadas como mulheres dificulta que elas assumam uma posição que representará ainda mais opressão.

    Penso que o doutor escolheu muito mal as palavras ao dizer que “ninguém percebe a mudança” dos homens trans e que mulheres trans que começam a transição já adultas “provavelmente se tornarão mulheres feias”. Como se alguém escolhesse ser homem trans para ter os privilégios do homem numa sociedade machista! Como se alguém fosse preferir ser cis para não perder os privilégios do homem numa sociedade machista! Não existe nada no cérebro ou na biologia que determine o gênero de alguém. A cultura determina como pessoas devem ser tratadas, como devem se comportar, quais devem ser suas preferências, qual relação devem estabelecer com seus corpos e com outros corpos, tudo isso com base em sua anatomia genital… Substituir o critério biológico da anatomia genital pelo da conformação cerebral, sendo que o cérebro é tão plástico, não é suficiente, ainda implica em reducionismo. Assim como não importa a genitália que temos e sim como a usamos, não importa o cérebro que temos, e sim o que fazemos com ele, e isso é completamente cultural.

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