Nas décadas de 1920 a 1970, nenhum assassinato ficava impune se o criminoso cruzasse o caminho de Hercule Poirot e Miss Marpleou do comissário Maigret. Ao longo de todo o século 20, os detetives criados pela inglesa Agatha Christie (1890-1976) e pelo belga-francês Georges Simenon (1903-1989) reinaram absolutos como fenômenos de público; Christie chegou a vender mais de dois bilhões de exemplares – metade em inglês e o restante em 45 idiomas. Tamanho sucesso fez com que o telefone desses investigadores sagazes tocasse de novo, incessantemente. Entre os que “ligaram”, está o Grupo Penguin, que começou a republicar neste ano, simultaneamente nos Estados Unidos, Inglaterra e Brasil – onde é acionista da Companhia das Letras –, todos os 75 romances de Simenon protagonizados por Maigret. O curioso é que, nos três países, o projeto gráfico é o mesmo, do brasileiro Alceu Chiesorin Nunes. Por aqui, saíram quatro aventuras do lacônico inspetor no primeiro semestre e mais três chegam às livrarias em outubro. A Penguin comprou, também, os mais de 400 romances (!) de diversos gêneros escritos por Simenon – parte sob pseudônimos. Os primeiros desse lote diverso a saírem, também em outubro, serão A Neve Estava SujaeO Homem que Viu o Trem Passar.
Enquanto isso, a Globo Livros acaba de relançar nada menos que oito volumes de uma só vez de Agatha Christie, com um impecável projeto gráfico da Babilônia Cultura Editorial. O lote inclui alguns dos mais famosos títulos, como O Assassinato de Roger Ackroyd, E Não Sobrou Nenhum (O Caso dos Dez Negrinhos)eOs Três Ratos Cegos. E as boas novas sobre a autora não acabam aí. Em 8 de setembro, será lançado mundialmente um romance inédito com Poirot, escrito sob encomenda pela britânica Sophie Jordan, autora de oito thrillers psicológicos publicados em mais de 20 países e adaptados para a televisão. Essa é a primeira vez que os herdeiros de Agatha permitiram a publicação de uma nova história com seus personagens. No Brasil, a obra sairá pela Nova Fronteira, que publica os romances de Christie desde 1969 e tem em seu catálogo 77 títulos. Como aperitivo, a editora também lança, neste mês de agosto, uma caprichada caixa com seis títulos, em formato especial e capa dura. Como se não bastasse, a L&PM, que comprou em 2006 os direitos da criadora do detetive de chapéu-coco para livros de bolso – o catálogo hoje tem 60 títulos –, está reunindo em gordos volumes algumas histórias por década. Depois da safra de 1930 a 1950, chegam às livrarias as tramas que ela escreveu nos anos 1960.
Motivações
A Penguin aposta em outras mídias para estabelecer um ritmo constante de lançamentos de Simenon, de acordo com a receptividade do público. O filho, John Simenon, herdeiro do espólio, acaba de fechar contrato com um canal americano para a produção de uma série de aventuras de Maigret, que deverá ser exibida pela Netflix no próximo ano. E alguns filmes com o detetive estão em produção. Flávio Moura, editor brasileiro da obra, acredita que não demorará para Simenon ser definitivamente absolvido da imagem de um autor de entretenimento rápido. “Maigret é muito fascinante, e Simenonnãoépara ser lido rapidamente”, observa. Para a literatura policial, acrescenta Moura, alémde viver aventuras densas e bem escritas, o heróisurgido em 1931 representa uma mudançanomodelo de detetive dedutivo. Ou seja, em cada aventura o autor cria um quebra-cabeça, e o leitor tenta juntar as peças. Ao invésde descobrir quem matou, a busca maior é outra: “Às vezes, desde o começo da trama já se conhece o assassino, resta saber as motivações”.
Na verdade, faz tempo que lá fora Simenon é um autor da maior reputação e um daqueles casos em que quantidade também pode representar qualidade. E não são poucos os especialistas que atestam isso. “O maior de todos, o romancista mais genuíno que já existiu”, afirmou André Gide, prêmio Nobel de Literatura de 1947. Foi chamado pelo jornal inglês The Observer de“soberbo”, de“o mais viciante dos escritores”e de“um contador de histórias singular”. Outra respeitada dama do crime, P. D. James, o considera um escritor que, mais do que qualquer autor policial, combina grande reputação literária com apelo popular. “Seus romances são extraordinárias obras-primas do século 20”, escreveu John Banville. Muriel Sparknãofoi menos entusiástica: “Um escritor maravilhoso, admiravelmente fluente – lúcido, simples, absolutamente afinado com o mundo que criava”.
A Globo foi a primeira a lançar um livro de Agatha Christie no Brasil. Isso se deu em 1929, quando sua sede era ainda em Porto Alegre. O volume saiu pela famosa Coleção Amarela. Até a década de 1960, a editora manteve em catálogo cerca de 30 títulos. Nos últimos anos, apenas três pertenciam a seu acervo, porém. Agora, com a aquisição de mais cinco livros, a coleção volta a ganhar corpo. São títulos fundamentais. “Na lista de possibilidades de aquisição, fomos muito cuidadosos nas escolhas dos mais importantes e resolvemos traduzir tudo de novo, além de mudar todo o projeto gráfico”, explica a editora Ana Lima, que tem uma relação bem pessoal com a escritora. Ela foi apresentada a seus romances quando tinha 10 anos, pelo avô. Acabaria devorando mais de 30 na adolescência e lembra com nostalgia que os dois comentavam com entusiasmo e cumplicidade cada leitura. “São romances muito inteligentes, divertidos, que passam ao leitor uma sensação de sagacidade”, observa ela, ao explicar a perenidade da escritora inglesa.
Kaíke Nanne, publisher da Ediouro Livros, proprietária da Nova Fronteira, conta que o selo mantém contratos exclusivos no formato convencional. Para ter uma ideia da lucratividade da autora inglesa, somente nos oito últimos anos, mesmo com a concorrência dos livros de bolso da L&PM, a editora já vendeu cerca de 1 milhão de exemplares – em média, 100 mil por ano. Sabe-se que a Nova Fronteira, antes de ser comprada pela Ediouro, vendeu, de 1969 a 2002, nada menos que 8,5 milhões de cópias. Números respeitáveis que levaram a novo projeto gráfico na década passada. Agora, alguns dos casos mais famosos de Poirot e Marple ganham versão de luxo e preço especial. São eles A Mansão Hollow, Assassinato no Expresso do Oriente, Morte na Mesopotâmia, Morte no Nilo, Os Elefantes Não Esquecem e Um Corpo na Biblioteca. Serão vendidos individualmente e em dois boxes, com três livros cada.
Além dos 60 títulos em pocket, a L&PM tem dois volumes de histórias adaptadas para o formato de quadrinhos. A editora Caroline Chang explica que, no caso do Brasil, a autora estava bastante esquecida no início do século 21, até que a L&PM voltou a colocar suas obras no mercado, com novas traduções. “Podemos publicar em formato de bolso os títulos que contratamos junto aos agentes da autora.” A L&PM, no entanto, não informa os números de venda. Diz apenas que a previsão é que a obra completa seja reeditada em tamanho reduzido ainda nesta década.
A relação da escritora inglesa com o Brasil não se resume às expressivas vendas que alcança por aqui. Na contrapartida, o primeiro e talvez único contato seu com o país aconteceu em 1911, quando ela tinha 21 anos e estudava em Paris. Na companhia da mãe, presenciou a tentativa de Alberto Santos-Dumont levantar voo com um de seus aeroplanos na ampla área do Bois de Boulogne. “Ele voou alguns metros e depois caiu. De qualquer modo, foi impressionante.” Seu testemunho deu um papel de pioneiro para o brasileiro: “Depois dele, apareceram os irmãos (americanos) Wright”, recordou. Uma relação de admiração, sem dúvida, que seria intensa e recíproca.
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