Crise, Obama e o efeito Bradley

Não sei quem disse que o capitalismo está para a cobiça assim como o casamento está para a luxúria. Abrandam, limitam e controlam. Nem toda cobiça, nem toda luxúria, claro. Em tempos recentes a cobiça de Wall Street correu solta e desencabrestada, tal qual cônjuge fogoso e incontido, que sai para a noite e toma todas, transa todas, cheira todas, fuma tudo, quebra tudo e, enfim, retorna em tal confusão que nem consegue avaliar o tamanho da encrenca. A de Wall Street foi uma farra de alavancagens enganosas, créditos podres, derivativos evanescentes, contratos espúrios e tudo o mais que pode ocorrer num mercado como o dos EUA. Os americanos ficaram horrorizados e o resto do mundo, como de costume, machucado e de orelha em pé. McCain apontou o dedo para Wall Street com um vocês deveriam ter se controlado. Obama apontou o dedo para o governo com um vocês deveriam ter controlado. Em crises, dedos são sempre apontados.
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Alguém disse, talvez eu mesmo, que os problemas da vida são tratados como pilhas. Lidamos primeiro com os problemas mais graves, em cima da pilha, e só vamos nos dedicar aos menos graves, embaixo da pilha, quando as coisas de cima estão resolvidas. Em cima de nossas pilhas estão a sobrevivência, a segurança, a saúde e outras coisas graves. Lá embaixo está o será que troco minha TV? Por isso as senhoras não gostam de maridos aposentados em casa que, sem problemas maiores, começam a se preocupar com coisas menores. Mutatis mutandis, assim emergem e submergem os temas eleitorais. Mudança climática, aborto e Irã já estiveram no topo da pilha eleitoral. Quem quer hoje discutir criacionismo versus evolucionismo nas escolas quando o sistema financeiro está em chamas? Efetivamente estão em jogo as hipotecas, as poupanças de uma vida, planos de aposentadorias, reservas financeiras, emprego e o concreto dia-a-dia.

Assim, com a farra de Wall Street, a crise financeira claramente veio para cima da pilha, junto com todos os solavancos do preço do petróleo, que atingem mais do que os carros: quase 17% do petróleo consumido nos EUA é usado na produção de alimentos. A um mês das eleições, é pouco provável que essa crise financeira, que ajuda democratas, saia do topo das preocupações. Há pela frente, é verdade, os vários debates entre candidatos e entre seus vices. Em ambos os casos, os democratas têm esperada vantagem. Obama deve levar vantagem, sobretudo em economia, em que McCain é ignorante confesso. Binden nocauteará Palin, muito provavelmente. Não obstante as emoções, preconceitos e medos, no agregado os debates devem favorecer Obama. O que é muito importante para os democratas, que podem precisar mais do que os 7% de vantagem que desfrutam hoje nas pesquisas. Temem o chamado efeito Bradley.

Tom Bradley – que faleceu há exatamente 10 anos, no dia 29 de setembro de 1998 – , negro e então prefeito de Los Angeles, em 1982 concorria com um candidato branco ao governo da Califórnia. Estava claramente à frente nas pesquisas e, para surpresa de todos, perdeu a eleição. Daí o chamado efeito Bradley, que se refere à tendência que teriam eleitores brancos de, em pesquisas de opinião, dizerem que votarão no candidato negro, quando na verdade votarão no oponente branco. Teriam, alguns eleitores brancos, temor de se expor à crítica. É claro que a magnitude desse efeito pode variar muito, não só com as circunstâncias próprias de cada eleição, como também pela forma como são feitas as pesquisas. Nas primárias democratas da Califórnia e de New Hampshire, Obama estava à frente de Hillary nas pesquisas e perdeu na votação. Não se sabe qual será o peso desse efeito na eleição presidencial. Aqueles 7% de vantagem democrata na pesquisa têm embutido um erro da ordem de três pontos percentuais. Assim, a vantagem real talvez seja de 10% ou talvez seja de 4%. Essa última, uma vantagem muito pequena para fazer frente a um possível efeito Bradley, cuja intensidade desconhecemos.

É a primeira vez que os norte-americanos contemplam a possibilidade de um presidente negro. Quem sabe nessa eleição, no momento do voto, emerge um efeito Obama? Em que a maioria do eleitorado, em decisão histórica, urra para o mundo um forte basta à intolerância racial?

Caso isso ocorra – tomara que ocorra – a eleição presidencial de 2008 terá sido o fruto maior, ainda que tardio, do notável discurso sobre direitos civis pronunciado por John F. Kennedy no dia 11 de junho de 1963.

VEJA TRECHO DE DISCURSO DE KENNEDY:

Tradução do discurso:

“Estamos diante de uma questão moral, em primeiro lugar. É tão antiga quanto as escrituras e tão clara quanto a constituição americana.

A questão central é se todos os americanos terão direitos iguais e oportunidades iguais e se vamos tratar nossos compatriotas como nós queremos ser tratados. Se um americano, que têm pele escura, não pode almoçar num restaurante aberto ao público, se ele não pode colocar suas crianças na melhor escola pública, se ele não pode votar em quem vai representa-lo, ou seja, se ele não pode desfrutar de vida plena e livre que todos nós desejamos, então quem, entre nós, estaria disposto a trocar sua cor da pele?Quem estaria disposto a se colocar em seu lugar? Quem entre nós ficaria tranqüilo ao receber conselhos de paciência?

Cem anos de espera se passaram desde que o Presidente Lincoln libertou os escravos e, ainda assim, seus herdeiros e seus netos não são totalmente livres. Eles ainda não estão livres da injustiça. Eles ainda não estão livres da opressão social e econômica. E essa Nação, por todas as suas esperanças e por tudo do que ela se orgulha, não será totalmente livre enquanto todos os seus cidadãos não sejam livres.”

Para ouvir o discurso inteiro e a transcrição completa, em inglês, clique aqui


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