Prestes a completar 86 anos, Barbara Heliodora desce com destreza a escadaria em formato de semicaracol para abrir a porta de entrada da sua casa. E como se estivesse esnobando a visitante, pede “cuidado com os degraus”. Ela mora com uma de suas três filhas, a ex-atriz Patrícia Bueno, no Largo do Boticário, lugar tombado pelo Instituto do Patrimônio Histórico Artístico Nacional (Iphan), no bairro do Cosme Velho, zona sul do Rio de Janeiro, onde é possível ouvir o barulhinho da correnteza do Rio Carioca, que corta a região. Lá é tudo muito antigo, original, sem nenhum vestígio de arquiteto moderno. As fotografias da família se misturam com cerca de dois mil livros, obras de arte e a coleção de peças de opalinas azuis.
A tranquilidade do local contrasta com a turbulenta profissão escolhida ainda na juventude por uma moça apaixonada pela obras de William Shakespeare. Com saúde perfeita e boa memória – conta que dirigiu seu próprio carro até 2008, quando foi proibida pelas filhas de botar a mão no volante -, uma das mais temidas, conceituadas e admiradas críticas de teatro continua trabalhando muito e enxergando longe, através do seu par de óculos redondos com lentes garrafais. Ela assiste, em média, a três peças teatrais por semana, para escrever as críticas que, desde 1990, são publicadas no jornal O Globo. Os atores, no palco, geralmente estremecem com sua inconfundível, austera e, às vezes, desagradável presença na plateia. “Não gosto de destruir as produções. Meu prazer é assistir ao que é bom. Tem de haver um mínimo de responsabilidade nas montagens”, diz Barbara.
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Shakespeariana de carteirinha, ela acaba de traduzir o segundo volume do Teatro Completo de William Shakespeare (1564-1616), e deve lançar o terceiro volume em dezembro. Tal admiração e conhecimento faz com que ela não perca nenhuma peça do autor que estiver em cartaz. E mete o pau, sem dó nem piedade, se o espetáculo não for de seu agrado. “O que falam de mim é exagero. Não ponho fumaça pelo nariz. Só exijo o mínimo de coerência entre a luz, cenografia, figurino e trilha sonora. Não pode ser de qualquer jeito”, explica. Em 2008, por exemplo, Barbara detonou a montagem de Otelo, de Shakespeare, uma produção de R$ 1,3 milhão bancada pelo ator global Diogo Vilella que ficou quatro meses em cartaz no Teatro do Sesc, no centro do Rio de Janeiro, e em seguida fez turnê por vários estados do Brasil. Vilella, que escolheu para si o papel de Iago e deixou o personagem Otelo, que é mouro, para o ator negro Luciano Quirino, dividiu a direção com Marcus Alvisi e optou por um texto de Otelo que foi traduzido pelos jovens Leonardo Marona e João Gabriel Carneiro. Na primeira semana em cartaz, a expert em Shakespeare apareceu no teatro, como sempre, sem avisar. Dias depois, em sua crítica no O Globo, Barbara escreveu que a tradução de Marona e Carneiro era “saturada de acréscimos inúteis”. Apontou vários defeitos na opção de Vilella pelo papel de Iago. Viu erros na cenografia, assinada pelo premiado Ronald Teixeira, no figurino de Pedro Sayad e, ainda, na iluminação de Jorginho de Carvalho. Em compensação, elogiou os desempenhos da atriz Rose Abdallah, no papel de Emília, e do ator Reinaldo Gonzaga, que fez o Brabanito.
Difícil saber até que ponto uma crítica negativa influencia o público, mas, coincidência ou não, após a publicação, o teatro manteve apenas metade de suas 550 poltronas ocupadas durante a temporada. Diogo Vilella, apontado pela classe teatral como uma pessoa vaidosa, teria ficado arrasado. Barbara não perdoa nada e sua fama de implacável inspirou, em 2001, a comédia Barbara não lhe adora, encenada pelo grupo Janeiro Produções, enfocando a polêmica relação entre críticos e artistas. “Essa peça eu assisti e achei muito interessante”, diz a crítica. As equipes de produções de teatro, no Rio de Janeiro, apelidaram Barbara Heliodora de “Viúva de Shakespeare” e ficam atentas com sua presença na plateia. Na hora da entrada do público, os operadores de som mais irreverentes costumam tocar a música “Cala a boca, Barbara”, de Chico Buarque e Ruy Guerra, que não foi inspirada na crítica em questão, mas se enquadra perfeitamente.
Influência materna
Barbara Heliodora tem razões de sobra para ser uma pessoa exigente. Quando completou 12 anos, ela ganhou da mãe, Anna Amélia, as obras completas de William Shakespeare. Cursou línguas anglo-germânicas em uma faculdade de filosofia da rede pública e ganhou bolsa de graduação para o curso de história do teatro europeu, antigo e moderno, na University of Connecticut, nos Estados Unidos, onde se especializou em Shakespeare. Na época, início da década de 1940, só não foi para a Inglaterra devido à Segunda Guerra Mundial.
Visando a carreira de crítica de teatro, frequentou o Tablado para aprender os processos do ensaio de uma peça, acompanhando a direção de Maria Clara Machado. Em 1958 foi trabalhar no jornal carioca Tribuna da Imprensa e no ano seguinte estava no Suplemento Literário do Jornal do Brasil, que era editado por Reinaldo Jardim.
Apesar da imagem de implacável, Barbara ri da fama de pedante e antipática que todos os críticos carregam. Mas quem acompanha atentamente as suas críticas, sabe que seu alvo preferido são os diretores. Viciada em água e suco de laranja, ela é aficionada por Fernanda Montenegro. Tanto que, num domingo de abril, Barbara atravessou a Linha Vermelha, point de balas perdidas, para assistir ao monólogo Viver sem tempos mortos, de Simone Beauvoir, em cartaz no Teatro Sesc de São João de Meriti, na Baixada Fluminense. “Como é bom ver Fernanda no palco! Ela tem controle de si. É uma emoção ver sua atuação. Se o monólogo fosse com qualquer outra atriz, talvez ficasse com ar de aula”, diz. Já em relação à nova safra de atores, Barbara não é tão entusiasmada. “Vejo uma queda de qualidade na formação do artista. Antigamente, quem ensinava artes cênicas vinha com enorme experiência, eram atores consagrados. Hoje em dia, os professores nunca pisaram num palco”, lamenta. O mesmo se aplica aos cursos de teatro, aos quais ela se refere como “encantadores de serpente”. Queixa-se também da procura desatinada daqueles que querem transformar-se em “celebridade televisiva”. “Esses jovens não têm formação cultural e nem interesse em, pelo menos, ler os jornais diários”, afirma. Um prato cheio para suas próximas críticas.
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