A voz suave e familiar – da mulher amiga e irmã – repetiu uma vez mais a frase, talvez nem pela necessidade de ênfase, mas para ter certeza de que a pitada de sabedoria nela contida não fosse subestimada ou esquecida.
“A nossa vida não é nada mais que a soma dos nossos amores.”
Dita assim, de surpresa, no final de uma conversa telefônica, no princípio da madrugada, ninguém suspeitaria, nem mesmo a autora, de que ali se encontrava um novo fio da meada para abordar um dos capítulos mais trágicos e vergonhosos da história brasileira, aquele cuja solução definitiva não pôde mais ser adiada, ou pior, empurrada com a barriga, como tem sido, sob pena de se cristalizar uma chaga incurável, um obstáculo moral intransponível para a construção de uma nação verdadeira e justa.
Em sua autobiografia, Nelson Mandela diz que se conhece a alma de um país pela forma como os seus presos são tratados. Parafraseando-o, eu modestamente acrescentaria que se pode também quantificar o caráter de uma nação pela maneira como retribui àqueles que lhe deram, voluntária ou involuntariamente, a dádiva maior, a própria vida, pelo simples crime de amá-la demais. Pois se a vida de cada um de nós é construída sobre os alicerces dos nossos encontros e desencontros amorosos, também são os atos anônimos e inocentes de amor incondicional que esculpem o coração imaginário de toda uma nação. E não há prova maior de amor do que a perda da própria vida, a renúncia ao gozo da existência, da perda da luz do sol de cada dia e do brilho da lua de cada noite, a remoção forçada da convivência com tantos outros amores em prol de um ideal utópico de liberdade, igualdade e fraternidade que move a mente de alguns homens e mulheres, desde os tempos imemoriais dos nossos primeiros passeios de mãos dadas, sob os céus estrelados das savanas africanas.
Sem inúmeros, generosos e sinceros atos de amor não existiria uma nação brasileira para contar essa história trágica. Mas qual terá sido a retribuição dada, até o presente momento, àqueles que optaram ou foram violentamente conduzidos ao sacrifício máximo, apenas por dedicar a sua paixão a essa mulher maravilhosa e sedutora chamada Pátria Brasil? Que destino foi reservado àqueles (e aos seus outros amores) que pereceram (ou se tornaram prisioneiros perpétuos) nos porões sórdidos de um país por eles tão querido e tão amado durante os anos de chumbo da ditadura militar instalada com o golpe de 1964? Para obter uma resposta basta-nos rever brevemente a saga de dois jovens que se apaixonaram perdidamente por essa mulher e como ela lhes retribuiu esse amor juvenil.
O caso de amor do primeiro deles, Antônio Carlos Cabral, me foi relatado no meu primeiro dia como aluno da Faculdade de Medicina da USP (FMU-SP), 32 anos atrás, em um folheto apócrifo e anônimo deixado no meu armário de calouro. Desse, eu só me lembro do título que permaneceu impresso na minha memória por todos esses anos: “Cabral, vive!”.
Antônio Carlos Cabral na página do Tortura Nunca Mais |
Nascido em São Paulo, em 14 de outubro de 1948, Cabral era aluno de graduação e presidente do Centro Acadêmico Oswaldo Cruz da FMU-SP, uma das mais combativas entidades do movimento de resistência estudantil à ditadura. De acordo com os dados disponibilizados pelo Grupo Tortura Nunca Mais/RJ (GTNM/RJ) e pelo Dossiê dos Mortos e Desaparecidos Político no Brasil, Cabral era militante da Ação Libertadora Nacional (ALN) e membro do Show Medicina, a trupe artística e irreverente da FMU-SP. De acordo com os documentos oficiais da ditadura, Cabral morreu durante tiroteio com a polícia, no dia 12 de abril de 1972, numa vizinhança do Rio de Janeiro. Como era hábito na época, nenhum dos fatos apurados subsequentemente corroboraram essa versão. Vizinhos que testemunharam a sua prisão desmentem a versão do tiroteio. Apesar do laudo da necropsia de Cabral, assinada pelos legistas Olympio Pereira da Silva e Jorge Nunes Amorim, determinar a causa da morte como resultante de ferimentos penetrantes fatais produzidos por arma de fogo, fotos do corpo, posteriormente encontradas nos arquivos do IML-RJ, exibem claros sinais de sevícias brutais, evidenciadas por placas de escoriações distribuídas pelas mãos, braços, tórax, face e fronte. Entregue em um caixão lacrado e com ordens para que esse não fosse aberto, o corpo mortal de Cabral voltou ao solo da pátria que ele tanto amou, tatuado pela conveniente tarja de “terrorista”, o código que as ditaduras usam para justificar o assassinato de seus inimigos, a vasta maioria deles civis inocentes, sejam eles brasileiros, iraquianos, afegãos ou membros de qualquer outro povo lutando pela sua liberdade.
Eu lhe pergunto, meu caro leitor, que amante retribuiria assim o amor tão profundo que lhe oferecia um jovem brilhante de 25 anos, querido por pais, familiares, amigos e colegas estudantes? Cabral podia ter sido eu ou você, um de nossos filhos, netos ou nosso irmão.
A história de um segundo jovem apaixonado pelo Brasil chegou a mim pelas mãos generosas da minha querida irmã baiana, a jornalista Mariluce de Souza Moura, que me ajudava a coletar informações sobre meu colega Cabral. Nascido em Ituiutaba, Minas Gerais, em 8 de julho de 1949, Gildo Macedo Lacerda morreu em Recife, em 1973, no final do período que ficou conhecido como “outubro sangrento”. Outra liderança histórica do movimento estudantil da época, Gildo era militante da Ação Popular (AP). Depois de atuar no movimento estudantil de Minas, ser preso no Congresso da UNE em Ibiúna e de ser eleito vice-presidente dessa entidade em 1969, Gildo foi obrigado a cair na clandestinidade para se evadir da caçada nacional lançada pela polícia da ditadura. Transferido para Salvador pela AP, Gildo começou seu trabalho de organizar estudantes e trabalhadores. Em junho de 1972, Gildo encontrou outro dos seus grandes amores, a jovem Mariluce Moura, com quem se casou, meros três meses depois do primeiro encontro. O Brasil encontrara uma digna rival na vida amorosa de Gildo.
Ao meio-dia de 22 de outubro de 1973, o jovem militante, marido e futuro pai, Gildo Lacerda foi preso na porta de sua casa. No mesmo instante, na frente do Elevador Lacerda, Mariluce, grávida de um mês de Tessa, foi apreendida pela repressão baiana. Naquela noite, já presos no prédio da Polícia Federal, Mariluce e Gildo trocaram os seus últimos olhares silenciosos de amor, pois palavras não lhes foram permitidas trocar. Nunca mais.
Em um dos infinitos dias que se seguiram, durante uma sessão de tortura, Mariluce, grávida, foi informada de que Gildo tinha feito uma longa viagem. Dias depois, lhe comunicaram que Gildo Lacerda não era mais. Transferido para o DOI-CODI de Recife, Gildo pereceu sob tortura nos porões da ditadura. Na versão oficial, porém, a morte desse jovem, cujo único crime foi ter-se apaixonado perdidamente por duas mulheres maravilhosas, Pátria e Mariluce, deu-se por meio de tiroteio com seus comparsas, os quais Gildo, outro “terrorista”, teria supostamente delatado à polícia. Nesses tempos não bastava torturar e matar o inimigo, era preciso também desonrá-lo e salgar o seu genoma, para que dele não germinasse mais nenhuma outra paixão igual. No caso de Gildo, nem o seu corpo sem vida foi jamais devolvido à Mariluce, Tessa, e suas netas.
Mas por que – perguntariam os leitores – abrir essas feridas tão horrorosas e expô-las, assim, sem paliativos ou bálsamo para a dor excruciante que elas hão certamente de causar, novamente, tanto em indivíduos envolvidos intimamente com cada uma dessas tragédias humanas, como para toda a nossa nação? Até que os responsáveis por tais atos de barbárie sejam trazidos à luz da justiça nacional, como ocorre na Argentina, e respondam por seus crimes, não haverá outra forma aceitável de retribuir o sangue derramado por inúmeros bravos brasileiros que, como Cabral e Gildo, pagaram um preço incomensurável por seus lindos devaneios de amor. Se essa justificativa não lhes basta, some-se a ela uma tão ou mais terrível. Não, eu não me refiro à humilhante sentença proferida pela Corte Interamericana de Direitos Humanos, condenando o Brasil pelo descumprimento duplo da Convenção Americana de Direitos Humanos e, no processo, expondo a realidade que a mais alta instância da justiça brasileira deixou de cumprir, mais uma vez, o seu dever cívico e histórico para com o povo brasileiro.
Não, eu me refiro ao fato corriqueiro, conhecido de qualquer casal de namorados: que aquele que não retribui o amor sincero à altura, corre o sério risco de jamais ser novamente amado com a mesma intensidade.
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