Da precariedade à potência

Detalhe da instalação site-specific"Mão no fogo" (2015) de Matheus Rocha Pitta.
Detalhe da instalação site-specific”Mão no fogo” (2015) de Matheus Rocha Pitta.


A persistência do gesto, a mão no fogo 

Colocar a mão no fogo significa confiar cegamente. Em setembro de 2015, quando Matheus Rocha Pitta executava a proposição site-specific intitulada Mão no Fogo, na Escola de Artes Visuais do Parque Lage, a organização que administra a instituição acreditava que o governo do Estado do Rio de Janeiro regularizaria os repasses orçamentários atrasados desde julho daquele ano. Em nome dessa confiança no comprometimento do ente público em honrar um contrato assinado menos de dois anos antes, a Oca Lage (Organização Social que administra a EAV Parque Lage e a Casa França-Brasil) dava prosseguimento à programação planejada usando os recursos que haviam sido repassados no primeiro semestre e a receita própria – advinda sobretudo do aluguel para eventos fechados e outros com ingressos pagos. No final de dezembro, com a falta do repasse governamental, a dívida chegava a cerca de R$ 1 milhão, e 70 funcionários eram colocados em aviso prévio – 30 dos quais foram efetivamente demitidos no começo de 2016. A situação na Oca Lage não é, entretanto, um caso isolado e se inscreve num contexto turbulento no campo da cultura, que sob o signo da narrativa midiática de crise tem levado ao fechamento de diversas instituições.  Foi também no segundo semestre de 2015 que a turbulência política e econômica se aprofunda. Conduzida pela ruptura entre Poder Executivo e Legislativo, começava a dar contornos às atuais investidas contra nossas estruturas democráticas, marcadas principalmente pelo processo de impedimento presidencial hoje em curso.

Apresentado dentro da exposição Quarta-feira de Cinzas, parte do programa “Curador Visitante”, Mão no Fogo foi concebida especificamente para a gruta do Parque Lage. A obra convidava o público a percorrer o interior escuro cavernoso portando uma vela acesa que permitia a observação de uma coleção de recortes de jornais agarrados em pequenas lajes de concreto penduradas nas paredes. Matheus mobilizava com isso, em um só gesto, as quatro categorias descritas por Jacques Rancière como as principais estratégias estético-políticas da arte contemporânea: o jogo, o arquivo, o encontro e o mistério. Nos recortes de jornais, cenas de diferentes protestos com uso do fogo, criadas por um aparato de representação midiática que é produtor de uma forma específica de ver e de uma certa noção do que é fazer política. À luz do contexto de incerteza e adversidade institucional e política em que foi produzido, o trabalho adquire novo significado. Naquele momento de agitação e hiperatividade passiva, entrar na gruta era aceitar o convite de Matheus para desapressar o passo, ficar um pouco mais com as imagens, se demorar um pouco mais com elas e delas extrair os gestos e outros significados para além daqueles dados de imediato. Na luz instável das velas, o significado desse arquivo de fotografias factuais e o gesto que as une – pessoas ateando fogo – oscilava, perdia sua referência e valor como informação. A própria memória e a certeza do que se via vacilavam junto com a intermitência da luz.

A proposição dava continuidade à pesquisa de Matheus em torno de gestos performados pelo público, gestos de acordo ou desacordo, de afetividade ou de violência: um beijar, um abraçar, um apertar de mãos, um tacar fogo. Se para o filósofo italiano Giorgio Agamben cada único gesto torna-se um destino, para  Matheus, esse destino é forjado no calor de um embate em que cada gesto, de cada acordo, de cada aliança, se define como um ato de fé, um passo no escuro, em direção ao desconhecido. Para além da gestualidade representada nas imagens, a instalação tornava a gestualidade dos que a visitavam a condição de efetivação do trabalho, que só se completava através de sua performatividade, da redisposição dos corpos no espaço. No limite, esse jogo de claro e escuro, de ver e não ver, ser visto ou passar batido, implica uma redistribuição do visível e do sensível, dos afetos e das sensibilidades. É nesse sentido precisamente, para além de conteúdos específicos, que a arte é inerentemente política, porque é capaz de reconfigurar nossos hábitos sensoriais e gestuais, nossas formas de ver e de sentir, abrindo-os para novos usos potenciais. O que se torna evidente nessa operação é o dissenso, no sentido posto por Rancière, como uma diferença de sentidos que é a própria natureza da política e que só aparece no momento do conflito. Essa política enquanto dissenso é sempre do momento, tem um sujeito sempre precário, sempre à beira do desaparecimento, do sumiço, da normalização. O que Matheus faz em Mão no Fogo é, portanto, perturbar a formatação cega de nossos gestos, hábitos e percepções, criando um espaço, uma fenda, um evento-horizonte de onde o sujeito verdadeiramente político possa emergir.

Ecoando o pensamento de Agamben, o gesto surge como práxis pura, como o outro lado da mercadoria, “como comunicação de uma comunicabilidade”, pois este não tem propriamente nada a dizer, porque aquilo que mostra é o ser-na-linguagem do homem como pura medialidade”. O artista funda assim uma economia de gestos que mobiliza efemeridades, precariedades e intensidades, ao mesmo tempo que atualiza virtualidades e potências, rompendo, ainda que momentaneamente, com a sujeição dos corpos e dos sentidos à lógica da circulação frenética do espetáculo. Nesse pisar manso, nesse ver atento, nesse se deter, uma outra economia da afetividade se funda, uma economia do dispêndio, do gasto, da não acumulação.  


Em tempos de golpe, um golpe de graça

Quem entrava no enorme espaço central da Casa França Brasil no dia 12 de março, meses depois da Quarta-feira de Cinzas na EAV Parque Lage, se deparava com um salão quase todo vazio, salvo por uma instalação em uma pequena parte de suas porções laterais. Dessa vez, a intervenção de Matheus Rocha Pitta já se revelava à superfície. Entretanto, de igual maneira se relacionava com a parte subterrânea do lugar e, sobretudo, com o que não podemos ver, com o que alcançamos apenas com a fé.  

A obra Golpe de Graça – que já havia sido exposta em São Paulo em 2012, no Pivô (Edifício Copan) – fora remontada com uma nova configuração para as especificidades do espaço, numa espécie de monumento às avessas. Entre pilhas de pedras portuguesas, tijolos, sacos de areias, restos de sinalização e andaimes enferrujados, encontravam-se um buraco, cabos e três monitores de vídeo. A instalação concretizava-se num pedaço de papelão em que se lia “uma moeda por um desejo”. Se a princípio remetia a uma barricada, logo se dava conta de que se tratava de uma espécie de fonte, dessas que convidam transeuntes a fazerem um pedido ao jogarem moedas como prova de confiança em sua realização. Nos televisores, via-se onde caía o que era lançado, tornando possível saber se era acertado ou não o fundo do poço.

Novamente, o artista provocava o público a performar um gesto, ativando o trabalho através de uma participação procedimentalmente simples, mas conceitualmente complexa. De partida, o trabalho comenta uma troca entre vetores de naturezas opostas, mas que facilmente se confundem entre seus papéis. É quando podemos perceber a transação entre bem material e afeto; entre valor financeiro e imaginação; entre liquidez financeira e prospecção. Essa ambiguidade – dos gestos, processos e palavras – é de importância fundamental para o conceito do projeto, que não torna gratuito o possível alcance da graça.

O momento que vivia a instituição não poderia ser mais propício para receber a obra. Encerrando um ciclo de gestão e curadoria, pairava a atmosfera de dúvida comum a períodos de dificuldade e transição. No dado contexto, o trabalho chamava a atenção especialmente por dois motivos. Primeiramente, expunha de forma plástica uma situação de óbvia precariedade, reunindo materiais e arranjos comuns à construção civil, mas que já se tornaram índices de confusão, debilidade e indefinição. Por toda a cidade do Rio de Janeiro, há sítios de obras públicas. Formados por valas abertas, uma enormidade de sujeira e disposições provisórias, parecem nunca encontrar seu ponto final, impondo o incômodo de um estado transitório que já se apresenta como permanente.    

Aqui, se o artista é capaz de se valer da adversidade como potência, tanto no que toca à força criativa quanto aos custos de produção de trabalhos (foi o próprio Matheus quem bancou os custos da exposição), não parece ser possível dizer o mesmo das instituições culturais. Aparelhos importantes estão fechando as portas e outros parecem operar por meios melindrosos, com um programa frágil e pouco articulado, falta de transparência e, não raro, apoiados em relações pouco confiáveis.

Não fossem suficientes os tantos disparadores com os quais o trabalho e sua relação com o lugar já nos põem de frente, sua remontagem ainda se deu no instante em que o termo “golpe” inundava as mídias tradicionais e redes sociais, tornando-se ponto nevrálgico e ícone máximo da conjuntura política do País. Diante das articulações tacanhas para transferir poder de um grupo político para outro solapando fundamentos do Estado Democrático de Direito, a ação ganha ainda nova agudez.


Não tem pão, nem satisfação 

Completando um ciclo de trabalhos na cidade do Rio de Janeiro, Matheus mostrou, do dia 9 de abril a 6 de maio, o projeto NO HAY PAN, no espaço da loja Frey Kalioubi – construído por padeiros e, mais tarde, usado como igreja, na Praça Tiradentes. O trabalho, que primeiro foi realizado em Milão, na galeria Gluck50, toma como ponto de partida duas pinturas renascentistas: O Milagre do Maná e Os Israelitas Juntando Maná. Segundo o episódio bíblico que lhes serve de objeto, maná era o pão produzido milagrosamente por Deus para alimentar o povo israelita durante sua fuga da escravidão no Egito e estada no deserto rumo à terra prometida. Se a concepção formal do projeto veio das escrituras cristãs e de suas representações clássicas, o título faz alusão direta ao slogan que marcou os protestos na Espanha em anos recentes. “No hay pan” (não há pão) traduzia o descontentamento coletivo com a corrupção, falta de emprego e outros problemas estruturais do país.

Ao transformar o lugar em uma pequena padaria, o artista remove o aspecto milagroso associado ao alimento em prol de uma trivialidade cotidiana, deixando visível, de uma maneira ou de outra, toda a estrutura de trabalho, produção e circulação. Se os hebreus comiam o pão enquanto estavam no deserto, então percebemos outro processo de inversão poética: Matheus insere o deserto dentro do pão, recheando-o com areia antes de o assar. Completando a obra, algumas pessoas são convidadas a performar o gesto de partilha em frente a uma câmera. O resultado são fotografias – que acompanham a instalação – em que vemos a seguinte sequência: mãos rompendo a massa, o escorrimento da areia e, por fim, o abandono dos pedaços do pão no chão. Como um ritual sem mitologia, o artista invoca novamente uma economia de gestos e o dispêndio como situação de troca. O alimento básico para a sobrevivência é desviado de seu uso e não é mais passível de matar a fome. Não há mistério nem função. De novo, apenas a práxis pura. Se os mitos têm como principal função modelar comportamentos, o rito de Matheus parece desconstruir comportamentos, hábitos e percepções.

No lugar da promessa, abre-se um vazio. No lugar da satisfação, uma descontinuidade. A partir da carga simbólica do alimento básico e seus desdobramentos no imaginário social coletivo, Matheus  equilibra o trabalho entre crônicas de um tempo remoto e de um tempo urgente para expor a fragilidade da condição humana e a aridez dos obstáculos cotidianos, devolvendo a toda e qualquer expectativa apenas a falta de conclusão.

 


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