“É preciso ter um nariz tão longo quanto a tromba de um elefante para farejar os fatos de todos os ângulos”, Dalai Lama dá o recado a aproximadamente 50 jornalistas que participam da sua entrevista coletiva em São Paulo. “É importante que a reportagem seja honesta, principalmente se tratando de um País democrático e de crescimento rápido como o Brasil. Sempre existem pessoas mal-intencionadas e oportunistas”, alerta Sua Santidade. O líder espiritual do Tibete esteve no Brasil durante três dias para uma série de palestras: uma para empresários, outra para cientistas e duas abertas ao público, uma das quais (Construindo Pensamentos Positivos) conferimos de perto.

Sob a mira de uma multidão de fotógrafos amontoados em um cercadinho em frente a uma das fileiras de cadeiras destinadas a jornalistas, o prêmio Nobel da Paz, que anunciou deixar o comando político do Tibete em março deste ano, passando a dedicar-se somente a levar seus ensinamentos budistas aos quatro cantos do planeta, Dalai Lama é bombardeado com perguntas sobre o futuro da humanidade e questões ambientais. “Não sou especializado nisso, mas os governos têm demonstrado mais entusiasmo para lidar com a situação ecológica. Com exceção de países como a China em que os interesses nacionais são mais importantes que os globais”, cutuca o governo que o perseguiu e com o qual ainda trava o embate para obter a autonomia da região do Tibete.

Outra pergunta e a entrevista envereda para o terreno espiritual. “A verdadeira prática religiosa é quando você implementa seus valores nos atos cotidianos. Prestando atenção à sua mente, quando percebe que a raiva está prestes a explodir, você se lembra de que é uma pessoa que tem uma crença e não deixa ela tomar conta”, diz e move sua manta bordô. O ato involuntário atiça os fotógrafos que, por uma imagem única do sábio, avançam sobre a fronteira do cercadinho. Especialmente um deles, uma mulher de jaqueta amarela, bloqueia completamente a nossa visão. Nós, os repórteres atrás dela, sentimos raiva. Enquanto isso, Sua Santidade começa a discorrer sobre as diferenças e semelhanças entre as religiões. “Todas têm o mesmo objetivo, que é o amor, a compaixão e o perdão”, explica. Uma expectadora, com o novo livro do Dalai Lama nas mãos Towards the True Kinship of Faiths (algo como “em busca da verdadeira relação entre as religiões”), que trata justamente desse assunto, se dirige a ele. “Agora, estou fazendo propaganda de meu novo livro!”, diz ele, erguendo a obra e quebrando o gelo. Todos sorriem. Um dos assessores informa que o livro ainda não foi traduzido para o português, e Sua Santidade brinca: “Então, o dinheiro de vocês não será gasto”. Dalai Lama encerra a coletiva e um tumulto se instala. Todos querem se aproximar dele, mesmo sem um objetivo claro. Pegar um pouco de sua luz.

Lugar certo
Nosso segundo encontro com Dalai Lama acontece no dia seguinte. Chego 40 minutos antes do início marcado para a palestra Construindo Pensamentos Positivos, no World Trade Center paulistano, na Marginal Pinheiros. Apenas dois elevadores levam ao 5o andar, onde será realizado o evento – não há acesso por escadas. O público é de cerca de três mil pessoas.

No saguão, centros budistas vendem em banquinhas livros, incensos, malas (colar de contas para meditação), tankas (peça de tecido com imagem de Buda para visualização) e até anjinhos feitos por refugiados do Tibete. Os monges têm acesso às cadeiras VIPs, que ocupam as primeiras fileiras do Golden Hall. Pergunto onde é a área reservada à imprensa e, após discussão entre os organizadores, sou informada de que não há. Preciso disputar cadeiras com o público. Consigo um lugar na penúltima fila, onde o áudio não chega com tanta clareza, mas me esforço para entender ao menos a tradução – um tradutor, diga-se de passagem, extraordinário, que tornava o discurso do Dalai Lama ainda mais elegante. Aproveito a introdução da palestra, na qual o discurso de Sua Santidade se repetia ao da coletiva (… todas as religiões falam de compaixão, perdão…) para ir ao banheiro. Peço para a minha vizinha de banco guardar o lugar para mim e deixo meu bloquinho. Volto rapidamente e encontro meu lugar ocupado. Ela faz uma expressão do tipo “Pois é…”. Penso em desistir, caminho em direção à porta, quando sou interceptada por um homem. “Você é a Deborah da Brasileiros? Gostaria de dar esse livro para você e outro para o Hélio (diretor da revista)”, diz ele. Agradeço e digo que estou indo embora. Ele indaga, surpreso. “Mas por quê?”. Explico meu drama. O assessor de imprensa, que se apresenta, responde com convicção: “Qualquer problema é pequeno perto do privilégio de estar diante dessa pessoa”, e aponta para o Dalai Lama no palco. “Por que você não se senta no chão, como todo mundo?”, sugere. Aceito. Vamos por um dos corredores e encontro um espaço entre o público que chegou mais tarde. Sento-me no mármore gelado e, por causa da quantidade de gente, só consigo enxergar Sua Santidade pelo telão, como em um show de rock. Paciência. Aquieto minha mente para conseguir trabalhar. Instantes depois, tenho a brilhante ideia de usar os livros presenteados pelo assessor como assento. E começo a ouvir confortavelmente a apresentação. “Todos os animais têm a experiência da felicidade, ela é necessária para a sobrevivência da espécie…”, diz o líder espiritual que, ao procurar um copo para tomar água, encontra uma taça de vinho e brinca: “Um pouco de vinho, isso sim é bom”, e finge que está bebendo, com a taça vazia. A plateia ri. “A mente continua sendo um desafio para a ciência. Foi descrito um procedimento em que cientistas mediram a pressão arterial de pessoas que, após treinamento de compaixão, o nível de estresse diminuiu. Houve melhora de relacionamento social, a vida da pessoa se tornou mais feliz”, diz o tradutor, enquanto Dalai Lama, que usava uma viseira vermelha para proteger os olhos dos holofotes, atropela sua fala para pedir que coloquem uma cadeirante que estava assistindo à palestra ao lado da área VIP, mais próxima do palco. “Você se sente bem aí?, pergunta o religioso.” A plateia se encanta.

Uma hora de apresentação e Dalai Lama começa a discorrer sobre a doutrina budista, sua origem e diferentes vertentes. Para isso, deixa o inglês de lado e fala em sua língua mãe. Quem traduz para o inglês é um assistente, monge tibetano também. Em certo momento, perante tantas palavras técnicas, o tradutor brasileiro, antes de passar o discurso para o público, tira uma dúvida com o assistente de Dalai Lama. Enquanto isso, o líder espiritual comenta com humor: “Complicado, né?”. A plateia dá gargalhadas.

“Para falar da mente, uso um paralelo com a água. A natureza dela é pura, mas, muitas vezes, quando se mistura com outros elementos, como o barro, fica turva. Mas, por mais suja que fique, sua natureza é límpida”, diz ele para um público ávido por uma receita de felicidade. Lembra que os livros sagrados existem para ser lidos e não para decorar estantes e afirma ser contra o sectarismo no budismo. Ainda faltando meia hora para o fim da apresentação, Dalai Lama dá uma mensagem que gera impacto: “Tenho de pegar meu voo para Frankfurt”. Ouve-se um “ahhh” coletivo. Todos foram conquistados por seu carisma, simplicidade e sabedoria. Mas muitos já começam a sair. Temem pegar novamente o elevador congestionado.


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