Exatamente neste mês de março, a Escola do Teatro Bolshoi no Brasil, em Joinville, completa dez anos. É a única fora da Rússia. O Bolshoi, em Moscou, foi iniciado há 234 anos pelo príncipe Urussov e Michael Maddox e celebrizou-se como o melhor balé do globo. Por que o Brasil foi o escolhido para esse privilégio? E pensar que, em 1976, a ditadura militar proibiu apresentações do Bolshoi no País para evitar “propaganda comunista”…
Na gênese da escola brasileira está o Festival de Dança de Joinville. O evento se realiza desde a década de 1980 e reúne grupos de dança do mundo inteiro que se apresentam durante dez dias em praças, teatros, fábricas, hospitais e clubes da cidade catarinense. No Festival de 1996, durante a exibição do balé russo, o ex-prefeito de Joinville e atual governador do Estado, Luiz Henrique da Silveira, ficou lado a lado do diretor artístico do Bolshoi, Alexander Bogatyrev. Foi uma junção de planos ousados. Silveira queria colocar sua cidade no circuito artístico mundial; Bogatyrev sonhava em montar uma escola, fora da Rússia, com os ideais e métodos do histórico Teatro.
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Pronto. Pela divina providência – ou não -, no final daquela noite, além dos cumprimentos, os dois selaram o compromisso de seus desejos. Mesmo com a morte de Bogatyrev, em 1998, a ideia foi levada adiante.
O resultado é um projeto ambicioso. Com professores russos e brasileiros, a instituição procura diplomar bailarinos com a mesma qualidade artística aplicada na Rússia e tem, ainda, um segundo objetivo: formar artistas-cidadãos. A escola oferece cursos básicos de dança clássica ou contemporânea, com dois anos de duração. Mas o ensino profissionalizante exige oito anos de estudos. Para ingressar, não é necessário conhecimento anterior do assunto. Apenas talento, vocação e aplicação. Estuda-se por oito horas diárias, divididas entre as aulas do Bolshoi propriamente ditas e as do curso fundamental, frequentado pelos alunos em um colégio próximo.
À frente da Escola do Teatro Bolshoi no Brasil está o diretor e pianista Pavel Kazarian. Ele recebe a mim e a jornalista Silvia Reali trajando roupa esporte complementada por um foulard. Estender a mão a esse jovem diretor de 31 anos foi criar uma ponte de um universo a outro. Durante 50 minutos, sem convenção nem banalidade, ele nos conta todo o conceito de uma tradição russa reconhecida há pelo menos dois séculos. Kazarian abre uma visão educacional, e mais: mostra que o Brasil pode adicionar identidade à dança.
Num dado momento, porém, paguei o mico com a pergunta: “O que diferencia o bailarino brasileiro do russo?”. A expressão de Kazarian ganhou uma torcedura de boca. Com um sorriso irônico, ele tascou sem dó: “Olha aqui, o brasileiro não deve perguntar o que eles têm de diferente. Nossa tradição no balé vem de mais de 230 anos. E antes disso nos alimentamos da cultura clássica da dança com os franceses e, depois, com os italianos. O brasileiro não é melhor, nem pior. Eles têm de mostrar segurança, têm de achar que são bons. Os brasileiros já são conhecidos no exterior. Veja o caso de Marcelo Gomes, considerado um dos melhores bailarinos do mundo”.
Kazarian acredita que uma das primazias dos alunos brasileiros é o contacto com a capoeira. Isso mesmo. “Quem pratica capoeira já leva vantagem sobre os outros alunos”, diz. “Ela dá flexibilidade, ginga, tem um impulso que permite saltar mais alto e fazer movimentos que nenhum outro faz. O ideal seria ter dez escolas de capoeira para cada uma de balé. Isso sem contar os ritmos do Candomblé e do Carnaval”. Ele completa, com bom humor: “Engraçado, nós, russos, não perguntamos o que diferencia o jogador de futebol de nosso país dos jogadores brasileiros”.
Kazarian está certo, pois, ao contrário do que se poderia esperar, os professores se encantam com o elemento surpresa que os jovens bailarinos brasileiros proporcionam. O importante para a escola é estar aberta a influências e inspirações diferentes de nossos novos artistas, embora na base vigore sempre o Método Vaganova, repassado pelos professores russos. É o que faz a diferença entre esta escola de balé e as demais.
Esse método, criado no início do século XX pela bailarina russa Agrippina Vaganova, busca o aprendizado de forma gradual, enfatizando a consciência corporal do aluno em cada movimento. Entre as particularidades está a ênfase para que se dance com o corpo inteiro, ao invés de executar movimentos mecânicos. O resultado: artistas que deslumbram o público tanto por sua graça quanto por sua bravura. Entre os bailarinos formados pelo Método Vaganova estão Rudolf Nureyev, Mikhail Baryshnikov, Nathalya Makarova, Galina Ulanova, Marina Semyonova, Vladimir Vasiliev, Ekaterina Maximova e as atuais estrelas do balé mundial Svetlana Zakharova, Maria Alexandrova, Nikolai Tsiska-ridze, Yuri Klevtsov e Natalia Osipova.
Uma nova página na dança se abriu para o Brasil, e Kazarian explica porque o Bolshoi aqui é uma realidade. “Estou neste país há oito anos. Vim para ficar três meses. Gostei e fui ficando. Os brasileiros têm essa mania de falar que não levam nada a sério, que é tudo só na brincadeira…” Ele interrompe a frase com uma exclamação que soa como “uma ova!”. Depois, completa: “A meninada entra na escola normalmente com nove anos e alguns saem com 20. Nossa disciplina é rigorosa e não me lembro de casos de insubordinação. É incrível como eles são responsáveis e maduros para a idade”. Em outras palavras, Kazarian afirma que perseverança, definitivamente, é a característica mais evidente desses jovens.
O Brasil causa afeições muito fortes ao diretor russo. “A mistura de etnias e culturas me impressionou, as pessoas se tocam, dançam juntas, talvez porque nos países frios fiquemos fechados em casa, o que dificulta a ‘movimentação’. Não estamos nos aventurando no desconhecido; conhecemos o que é real. Nos últimos anos, o País cresceu muito, evoluiu, e nesse contexto o Bolshoi tem importância, pois nosso projeto é de inclusão social. Desta maneira, também fazemos parte desse crescimento.”
Para ir diretamente ao ponto: a Escola é uma entidade sem fins lucrativos. Dos 227 alunos, só oito arcam com a mensalidade de 555 reais e 10% pagam de 50 a 100 reais. Portanto, quase a totalidade tem os estudos financiados por empresas ou pessoas físicas que patrocinam a instituição. O Brasil está representado por alunos de 17 Estados, e o que me surpreendeu: a maioria veio de famílias carentes e de risco social.
Um olhar vê, outro sente
O olhar curioso de quem passa pelos corredores da escola certamente flagrará pelos visores das portas das salas de aula jovens de 9 a 18 anos, atentos às explicações dos professores. Entre os mestres está Galia Kravchenko, viúva de Bogatyrev. Ela poderia trabalhar apenas como supervisora. Mas, não. Deu continuidade ao sonho do marido e leciona dança clássica feminina. As aulas são ministradas mais por gestos e passos que por palavras. A simples visão dos pequenos bailarinos já desperta a sensação de que se verá um belo espetáculo. Só que o espetáculo maior começou muito antes.
Quem primeiro entra em cena é outra figura exponencial da escola: Sylvana Albuquerque. Fisioterapeuta, ex-bailarina formada pelo Bolshoi brasileiro, ela sai garimpando talentos pelos fundões do Brasil, sem trampolinar favorecimentos. Quer captar a pureza artística dos candidatos. “Não temos uma bola de cristal, precisamos ser muito cautelosos”, diz. “O Bolshoi é um caminho, mas não o único. Quando não aprovamos uma criança, não significa que ela não pode dançar. Só não se adequa às exigências do Bolshoi.”
Sylvana leva ao extremo a essência do seu ofício de caça talentos. Observar o biótipo da criança, a rotação externa do quadril, o pezinho chapliniano e o arco do pé são questões anatômicas, mas de importância idêntica ao da motivação, da consciência corporal e da sensibilidade. As seleções são feitas muito mais por apresentações lúdicas que por concurso de danças. Ninguém precisa estar familiarizado com o balé. “É nesse momento que observamos a criatividade das crianças”, conta. “Ao não promover concursos tentamos, também, evitar nivelar os alunos pela classe social. Concursos, afinal, são mais elitizados. Este é o nosso modelo.”
Muitos alunos viviam em um “miserê” de dar dó e nunca sonharam em ser bailarinos. É o caso de Tamara, que morava na periferia de Teresina, no Piauí, numa casa de taipa, em que a pia era um pneu de carro cortado ao meio. Sylvana recorda: “Em uma apresentação, vi que aquela menina tinha excelente potencial, além dos requisitos físicos necessários, mas no dia da escolha ela não apareceu. Aflita, perguntei por ela e me disseram que a mãe não a deixara vir porque Tamara tinha tarefas domésticas a cumprir. Fui buscar a garota e a encontrei lavando louça. Hoje, ela brilha nos palcos e sempre que me vê repete: ‘Ah, se você não tivesse ido me buscar!’”.
Maria Aparecida, a merendeira, reforça a inclusão social desses jovens quando relata que perdeu a conta de quantos meninos e meninas ensinou a comer, a usar garfo e faca. Sylvana continua: “Uma vez escolhi um garoto chamado Geovan. Triste, me chamou de lado para dizer que havia um problema que temia que o desclassificasse: ‘Tenho seis dedos em cada pé. Posso fazer o teste?’”. Sylvana conta que precisou se esforçar para conter a emoção e assegurou ao garoto que os dedos a mais lhe dariam a maior sorte do mundo.
Não desista de seus sonhos
Para que os alunos se sintam em casa, a Escola do Teatro Bolshoi, em parceria com os governos dos respectivos Estados, criou a “Casa da Paraíba”, “do Piauí”, “da Bahia”, e outras. Nelas, é obrigatória a presença de uma “mãe social” – em geral, a mãe de um dos alunos com o mesmo sotaque, o mesmo jeito de ser e o mesmo tempero na cozinha. E, como mãezona, controla tudo, desde o namoro até as lições de casa do colégio. Há também casos extremos e exemplares de pais que deixam tudo para viver em função do sonho do filho e se transferem para Joinville.Sylvana também fala com emoção de Mariana Gomes, a mineirinha que chegou ao Bolshoi aos 14 anos. “Mais do que o biótipo, foi a garra daquela menina que impressionou a todos. Tinha uma força de vontade incrível e a certeza de que queria ser bailarina. Encontrou dificuldades; encontrou e superou. Cinco anos depois, foi estagiar no Balé Bolshoi de Moscou. Hoje, contratada, é a única sul-americana a integrar o elenco.”
Exportar talentos é outra qualidade da escola. Dois arrumaram as malas e partiram para o Mazowsze (o Balé Nacional da Polônia), três estão no Austrian Ballet, um na Ópera de Viena, outros no American Ballet (em São Francisco), no Boston Ballet, e dezenas deles fazem parte das companhias de dança de São Paulo, Rio e Minas.
Mas que ninguém se iluda. Para chegar a esse ponto é preciso ralar muito. “Vale a pena”, ressalta a futura bailarina Bruna, de 18 anos. “É um presente estar aqui, porque você cresce muito e aprende a ter perspectiva.”
“Dançar é viver”, afirmava a grande bailarina e coreógrafa americana Isadora Duncan (1877-1927). Mariana Drummond, uma aluna de 13 anos, sabe disso muito bem. Diz ela: “Meu maior desejo é expor a alma quando danço.”
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