Das Bibliotecas do Povo às Public Library

“Bibliotecas do Povo” na França revolucionária (1789), “Bibliotecas Públicas” nos Estados Unidos após a Independência (1779), eis um exemplo no qual a nomenclatura não se apresenta como um problema menor. Os modelos são contemporâneos, porém, diversos na forma e no espírito que os regem.

As bibliotecas do povo se avolumaram com maior ímpeto no espaço francês, entre 1792 e 1794, quando as coleções de religiosos e de nobres se tornaram um bem público por força e vontade populares. Durante o Império muitas destas instituições se converteram em importantes bibliotecas municipais. Sabe-se, aliás, que Napoleão Bonaparte era dado aos prazeres da leitura, tendo ele mesmo criado uma rede de bibliotecas para uso pessoal.

Diferente foi o modelo praticado nos Estados Unidos, também ele fruto do Iluminismo. Nesse caso, a public library  ganhou força após a Independência, como uma estratégia de Estado que buscava promover a instalação de uma rede de bibliotecas por todo o território, desde os principais centros aos vilarejos mais longínquos, com a finalidade de padronizar o uso da língua inglesa e, por conseguinte, unificar a nação. Benjamin Franklin foi seu maior entusiasta.

Afinal, os intelectuais ilustrados eram amigos das bibliotecas (e dos livros!). Gabinetes ou clubs literários já eram conhecidos no Velho Mundo desde as primeiras décadas do Setecentos. Mas, agora, tratava-se de pensar essas instituições como o produto de uma nova civilização que nascia após as revoluções d’além-mar e os movimentos emancipacionistas que pululavam por essas partes do continente. Tratava-se, enfim, de dar um passo adiante rumo ao progresso.

Ocorre que o Brasil demorou a se tornar uma república. Suas elites, no entanto, esforçaram-se para acompanhar as tendências observadas alhures. Às Bibliotecas do Povo, preferiram, evidentemente, o eufemismo norte-americano: Biblioteca Pública – mas não para todos.

Assim foi inaugurada, em 1825, a primeira Biblioteca Pública de São Paulo. Antes, foram oficialmente abertas as bibliotecas públicas da Bahia, em 1811, e a do Rio de Janeiro, em 1814. A primeira foi organizada com recursos particulares, nos moldes dos gabinetes de leitura. No segundo caso, o acervo viera de Lisboa, como parte de todo o aparato trazido pela família real durante sua transferência para o Brasil, em 1808. Temos notícias de outra biblioteca fundada na cidade de São João Del Rei, em 1827, por iniciativa de Batista Caetano de Almeida, que tornou pública sua valiosa coleção particular.

De modo geral, essas primeiras bibliotecas, denominadas públicas por força da moda, representaram uma curiosa simbiose entre a tradição e a inovação. Entre religiosos e de antigas leis (já caducadas), resguardaram-se nas estantes edições contemporâneas, não raro de cariz sedicioso, via de regra, filosofia e pornografia. Eram, finalmente, as Luzes que se descortinavam nos desvãos daqueles corredores empoeirados para o deleite de uma fina camada de leitores naquele Brasil escravista, analfabeto, patriarcal.

*Professora da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo. Autora, entre outros títulos, de O Império dos Livros. Instituições e Práticas de Leitura na São Paulo Oitocentista, Edusp/Fapesp, 2011 (vencedor do Prêmio Sérgio Buarque de Holanda – Melhor Ensaio Social 2011, da Fundação Biblioteca Nacional). Editora da Revista Livro, do Núcleo de Estudos do Livro e da Edição (Pró-Reitoria de Cultura e Extensão Universitária – USP).


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