“Se tem uma biblioteca com jardim, você tem tudo.” A passagem de Cicero (106 a.C.-43 a.C.) se situa em um contexto particularmente importante para a história da cultura romana. O próprio poeta organizara pelo menos duas coleções particulares. A primeira foi reduzida a brasas e a outra, ao que parece, sobreviveu ao seu patrono. É que as crises políticas e as guerras faziam sucumbir não apenas a energia dos homens, mas também seus livros.
Ocorre que Roma viveu nesse período um surto de bibliotecas. O modelo era Alexandria. Conhecemos a afeição especial que Julio Cesar (100 a.C.-44 a.C,) devotara a essa cidade brilhante, cravada às margens férteis do Nilo. Ele não ignorava a importância que a dinastia dos Ptolomeus devotara a esse projeto grandioso de conservar os melhores livros do mundo. Era conhecido o cuidado dos reis para com a coleção, as acomodações do edifício, seus bibliotecários e os gastos necessários para manter e fomentar as estantes (ou nichos) onde eram depositados os volumes. Da mesma forma, não se ignorava a generosidade com que remuneravam seus empregados e como recebiam os sábios com um lauto banquete.
Julio Cesar cobiçava Alexandria, o Museu, os livros e sua musa, Cleópatra (69 a.C.-30 a.C.). Mas não descuidava de Roma e de sua vida cultural. Pretendera implantar na capital latina uma biblioteca pública, seguindo o modelo alexandrino. Nomeara Cicero como mentor intelectual do projeto. A ideia vingaria mais tarde, noutra conjuntura. Pouco importa. Na verdade, salta aos olhos a preocupação de um homem belicoso, figura política de grande proa e de pretensões imperiais, com uma instituição destinada a prover os cidadãos de boa leitura. Pois era disso que se tratava. É certo que as bibliotecas gozavam nesse momento de uma aura elitizada, senão hedonista. Jardins e bibliotecas se compunham dentro das mansardas de romanos endinheirados. Dirá Seneca (4 a.C.-65 a.C.), não sem um grau de despeito, que bibliotecas e termas eram ornamentos requisitados entre os novos ricos, muitos deles analfabetos. Havia, contudo, espaço para recintos mais austeros, nos quais a leitura era um fim, embora ela não dispensasse um jardim e boas companhias. A moda pegou tanto que, às vésperas de sua queda, em 476, Roma contava com 29 bibliotecas públicas.
O número não surpreende mais do que a certeza da vitória dos livros, estes mesmos que periclitaram noutros tempos. Durante a Alta Idade Média, por exemplo, as invasões assolaram as cidades, seus homens e seus livros, relegando bibliotecas opulentas a coleções mirradas, encerradas em mosteiros distantes. A ação desses estadistas da Antiguidade espanta ainda mais diante da constatação de que cidades brasileiras ainda são desprovidas de bibliotecas. Pior, muitas fecham. Morrem de inanição. Ao dissertar sobre a natureza do papiro, Plinio, o ancião (23-69) lembra que o “papel é essencial para o desenvolvimento da civilização, ao menos para fixar suas lembranças”. De forma análoga, pode-se dizer que quando se fecham as portas de uma biblioteca, portas da civilização ficam cerradas. O que resta? O vazio da lembrança.
*Professora da Universidade de São Paulo. Autora de O Império dos Livros: Instituições e Práticas de Leituras na São Paulo Oitocentista (São Paulo: Edusp, Fapesp, 2011, 448 páginas). Prêmio Sérgio Buarque de Holanda da Fundação Biblioteca Nacional, 2011; Prêmio Jabuti, 2012; e Edições e Revoluções – Leituras Comunistas no Brasil e na França (Cotia: Ateliê Editorial, 2013, 334 páginas). Para ler mais, entre na página http://bibliomania-divercidades.blogspot.com.br/
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