Quando a funcionária da companhia aérea aproximou-se do microfone para anunciar o embarque do voo JJ3743 rumo a Congonhas, Paulo Cézar já estava há alguns minutos com o rosto praticamente colado no vidro que separa a sala da pista do aeroporto de São José do Rio Preto, interior de São Paulo.
Negro, altivo em pouco mais de 1,70 m, uma barriguinha – aceitável para a idade – destacada sob a camisa polo cinza por dentro da calça. Tênis grandão, desses bem confortáveis com pinta de skatista. A cabeça cuidadosamente raspada, todinha. Óculos escuros estilo aviador. Cavanhaque longo e bem branco. Depois de quase duas horas de espera na sala, certamente não passava despercebido ali.
Assim como não lhe passou despercebida a esperteza de um senhor de certa idade que, dando uma de joão-sem-braço, tomou-lhe a frente na fila e se tornou o primeiro passageiro a se dirigir para o avião. Paulo Cézar ficou “p” da vida. Na condição de número dois, caminhou até a aeronave, esbravejando em voz alta com inconfundível sotaque carioca.
– Mermão, tá maluco? Tá se achando esperto? Vai passando na frente dos outros como quem não quer nada… Tu é folgado, hein!? – Foram as palavras mais publicáveis ditas por ele, solenemente ignoradas pelo seu “rival”.
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Vinte e cinco anos depois de deixar o futebol, o campeão do mundo Paulo Cézar Lima, o Caju, simplesmente odeia ser o segundo.
– Leu minha coluna?
Se você falar com Paulo Cézar em uma terça-feira, fatalmente ouvirá essa pergunta. Nesse dia, é dele a última página do caderno de esportes do Jornal da Tarde. O texto é fiel à verve de Caju. Quase dá para ouvi-lo. PC usa seu espaço no jornal para louvar o brilhantismo de Neymares e Barcelonas. “Eu gosto de arte.” Sobram, também, críticas à burocracia do futebol atual, aos “comentaristas de ar condicionado”, aos técnicos gaúchos e às limitações do seu Botafogo do coração. E uma implacável campanha contra Ricardo Teixeira, presidente da Confederação Brasileira de Futebol. “Não suporto esse cara.”
Futebol e música na Barra
Aos 62 anos, Caju não para. Está longe da imagem de aposentado jogando dominó na praça. Aeroportos fazem parte do seu dia a dia. São Paulo, Rio de Janeiro, Florianópolis, Brasília. Vez ou outra, Paris, Marselha. Depois de uma semana de chuva e frio em Floripa, PC está em casa (apesar de morar em São Paulo há 11 anos, leia-se Rio de Janeiro).
Como de costume, Paulo Cézar acorda cedo. Às 7h30, já caminha na praia do Leblon, onde tem apartamento. O exercício aeróbico é disciplinadamente concluído com 250 abdominais. O prazer do domingo de sol e calor em sua cidade, só é interrompido pelo toque do celular. Do outro lado da linha, um produtor da Rádio Guaíba desesperado para encontrar alguém que tivesse jogado no Botafogo e no Grêmio, que se enfrentariam à tarde pelo Campeonato Brasileiro.
“Sem condições. Não dá para o cara te ligar do nada e falar: ‘A gente quer te colocar no ar agora e você tem três minutos para falar de Botafogo e Grêmio’. Por que não ligou no dia anterior? Tem gente muito mal preparada na imprensa”, arrematou Caju, mais tarde, à sombra de uma amendoeira no píer da Barra.
Naquele cenário paradisíaco do inverno carioca, o assunto não demora a cair no esperado: futebol. Paulo Cézar não tem meias palavras. “Outro dia, quase dei um soco na TV. O Mano Menezes dizia que a Copa América não é prioridade. Na seleção, tudo tem que ser prioridade, porra!”
Paulo Cézar tem toda pinta de boleirão. Mas, vai além. Fala espanhol e francês fluentemente e se vira no inglês. Conversa com destreza sobre política e música.
Com o consentimento da mãe biológica, foi adotado aos dez anos de idade por uma família com mais possibilidades de lhe dar uma vida melhor. Ficou com duas famílias e a chance, quase única, de conviver na sala de casa com astros da música latino-americana, como o chileno Lucho Gatica e o brasileiro Silvio Caldas, amigos pessoais de seu pai adotivo, o ex-jogador e técnico Marinho Rodrigues de Oliveira.
Fã de soul, Marvin Gaye, Stevie Wonder, coisa e tal, Caju se surpreendeu em 1980, quando Bob Marley desembarcou pela primeira vez no Brasil, anunciando: “Quero conhecer Paulo Cézar Lima, meu ídolo da seleção de 1970”.
Descolado que só, PC ciceroneou o astro jamaicano. Leblon, Pão de Açúcar, futebolzinho com Chico Buarque: “Demos uma porrada no Politheama”. Apresentou o Rio para Marley e foi apresentado a suas músicas. Ficou fã e amigo. “Meses depois, ele morreu. Já estava com câncer e eu não sabia. Foi uma pancada”, lamenta-se Caju.
Sempre antenado com moda e comportamento, Paulo Cézar Lima ganhou o apelido que entrou para a história depois de um torneio disputado pelo Botafogo, em Los Angeles. Caju, que estava ansioso para ver de perto o estilo de vida dos negros americanos, conheceu a famosa Sunset Boulevard por intermédio do cantor Sergio Mendes, que fazia muito sucesso entre os gringos.
“Aí, meu irmão, eu fiquei louco. Aqueles negros de patins, patinete, tape deck na orelha, calça boca de sino, cabelo colorido de vermelho, amarelo… No mesmo dia, entrei num salão e falei: pode pintar.” Na volta ao Brasil, o tom acaju do black power fez com que a imprensa paulista trocasse Lima por Caju no nome artístico de Paulo Cézar. Além do cabelo avermelhado e do apelido, o movimento dos Panteras Negras americanos ajudou a formar a consciência daquele que nunca foi um negro “sim, senhor”, como ele mesmo define. “O exemplo de união e força dos negros americanos eu nunca vi no Brasil”, lamenta PC. “Quantos são os jornalistas negros?” Ele mesmo responde à provocação, contando nos dedos: “Abel Neto, PC Vasconcellos, Heraldo Pereira, Zileide Silva, Dulcineia Novaes… Para um País de mais da metade de negros?”
Os caminhos tortuosos da aposentadoria
Paulo Cézar encontra-se em plena atividade. Entre palestras e comentários, não passa pela sua cabeça a palavra “aposentadoria”. Mas, um dia, ele já se viu cara a cara com ela. Depois de uma saída conturbada do Grêmio, no fim de 1983 – “Eu durmo bem todos os dias. Tem gente lá que não dorme” -, PC resolveu voltar à França, onde já era ídolo pelos feitos da década anterior no Olympique de Marseille. Jogou mais dois anos e resolveu parar. Era hora de viver a vida.
Entre artistas e estilistas, Caju se jogou nos balneários franceses. E entre iates e festas cinematográficas, aquele que não tomava bebida alcoólica conheceu os prazeres do champanhe. Virava os dias. Tombava em um sono sem descanso. Abria os olhos. Mergulho na piscina. Champanhe e mais festa. De repente, ela estava ali. Farta. Oferecendo-se branquinha em bandejas de prata, a cocaína entrou em sua vida. “Foi uma coisa que eu quis, ninguém me forçou a nada. Curti minha vida com meu dinheiro.” Foram mais de 15 anos de uso incontrolável de drogas. Gordo, inchado, disforme, Caju ouvia dos médicos os prognósticos mais assustadores. Infarto, derrame, paralisia, morte. O fim parecia próximo.
Com ajuda dos amigos, lutou pela vida. E foi a convite de um dos mais próximos deles que Paulo Cézar começou a se ver livre das drogas de vez. Em 2000, celebrou o Ano Novo com a família de Afonso Celso Garcia Reis – o Afonsinho de Botafogo, Santos, Flamengo. Aquela virada de ano foi definitiva na vida de Paulo Cézar Caju.
Adeus ano velho, feliz vida nova
Vestindo uma polo cor de rosa com a gola levantada a la Neymar, Paulo Cézar Caju fazia uma palestra sobre preconceito racial para os empregados de uma usina hidrelétrica, quando uma moça na plateia pediu a palavra. Negra, os cabelos bem presos em um rabo de cavalo no alto da cabeça, bonita em um vestido azul com uma echarpe rosa, a garota se apresentou e, cheia de sorrisos, elogiou.
– Muito bonita a sua história…
– Você também é muito bonita! – PC interrompeu com gentileza.
Murmurinhos insinuantes tomaram o auditório. Caju entrou na brincadeira, mostrando a aliança.
– Eu sou casado! E muito bem casado!
– Ah, que pena… Eu sou divorciada! – disparou ela, para risada geral.
Não é apenas modo de dizer. Paulo Cézar é realmente BEM casado. E mesmo que ele prefira manter a esposa longe dos holofotes e entrevistas, a quantidade de vezes que fala o nome de Ana em um bate-papo explica por que a palavra BEM merece caixa alta.
Não fosse por Ana, PC talvez não estivesse se divertindo e divertindo a plateia no auditório da usina. Ela, irmã do também ex-jogador Afonsinho, é a maior responsável pela transformação do campeão do mundo.
Conta ele que, ao espocar dos fogos do Réveillon de 2000, agarrou-a na praia e tascou-lhe um beijaço daqueles. “E acho que ela gostou…”, diverte-se. Gostou, mas deixou claro desde o início que não queria um viciado convivendo com seus filhos. PC entendeu o recado. Vendeu um imóvel em Búzios e se empenhou na recuperação. Há 11 anos, vive com Ana em São Paulo. Sem uma gota de álcool nem um grama de pó.
Carioca da gema em São Paulo
Competitivo, inteligente, ansioso, esperto, polêmico, vaidoso, firme em suas opiniões. Daqueles que não fogem de uma boa discussão. Engraçado, mesmo quando não tem a intenção de ser. Rigoroso e pontual em seus compromissos. E espera que os outros também sejam. Paulo Cézar é um produto fiel de tudo o que viveu.
Em meados dos anos 1950, o menino Paulo Cézar saía logo cedo de sua casa, em uma área pobre de Botafogo. Com os amigos, arriscava-se pegando o bonde em movimento para ir à escola. Sem dinheiro e com malandragem de sobra, sentavam-se lá no fundo. O tempo que o trocador demorava cobrando os passageiros da frente era o tempo certinho para PC e sua turma saltarem – sem pagar, é claro – na rua da Passagem.
Ali, como resistir aos maravilhosos pães doces da padaria do Seu Vítor? Paulo Cézar, invariavelmente, passava a mão em um deles e corria. Até que um dia o português o pegou com a boca na botija. E, enquanto torcia sua orelha, deu-lhe uma lição e um emprego: o menino faria as entregas da padaria de bicicleta. E comeria o pão doce que quisesse. “Ele me mostrou: ‘o caminho é esse’. Foi um aprendizado e um divertimento”, lembra com saudade.
Saboreando os pães doces e salgados do coffee break de uma de suas palestras, PC foi surpreendido por um grupo de senhores engraçadinhos.
– Caju, diz aí: em 70, o Zagallo não mandava nada, né? Só jogava as camisas pra cima…
– O Zagallo já era bicampeão do mundo, sabia tudo de futebol. Não fode, porra! – cortou Paulo Cézar, já dando o assunto por encerrado.
PC é amigo dos amigos. A defesa ao mestre Zagallo não foi à toa. O Velho Lobo lhe proporcionou a oportunidade de disputar sua primeira Copa do Mundo. Aos 20 anos, Caju fez parte simplesmente da melhor seleção de todos os tempos.
Hoje em dia, é difícil achar alguém que tenha algo a reparar na seleção de 1970. Mas, às vésperas do mundial do México, o time de Zagallo era muito contestado. Em São Paulo, a imprensa e a torcida tinham um alvo preferido: Paulo Cézar Lima. “São Paulo me odiava e eu odiava São Paulo.”
Era o avião pousar no aeroporto de Congonhas para o roteiro de sempre começar. Caju era xingado do desembarque até a porta do quarto do hotel, de onde não saía nem para comer. Só para jogar e ir embora. Nas entrevistas, ele não deixava por menos. Reclamava da cidade, do clima, da falta de teto para o avião decolar e o levar para longe dali…
Um Brasil x Bulgária, em 26 de abril de 1970, no Morumbi, resume a relação Caju-São Paulo. Jogo amarrado. Sobrou para quem? PC via a bola viajando em sua direção, acompanhada de um estádio inteiro de vaias. “No intervalo, tirei a camisa e falei: ‘quero pegar o Electra e ir embora daqui’! Não tinha condições.” Caju acabou ficando em campo até o fim daquele inesquecível, pelo menos para ele, 0 a 0.
Palestra terminada. Um dos diretores da empresa pede a palavra.
– Eu estava lá no Morumbi, te vaiando.
Quarenta anos depois, a confissão vem envolta em risadas. O diretor prossegue.
– Eu era mais um dos paulistas que odiavam você. E, hoje, eu lhe peço desculpas. Conheci sua história e mudei completamente de opinião.
Não foi a primeira vez que Paulo Cézar Caju ouviu algo do tipo. Certamente, tampouco foi a última. PC já se reconciliou com a terra que odiava mutuamente. Hoje, gosta de São Paulo. Com restrições, é claro. Reclama do trânsito, apesar de não dirigir. Acha bairrista a imprensa local. E não morre de amores pelo clima. Mas, gosta. Mesmo assim, Paulo Cézar Lima é muito carioca. E sabe bem como curtir esse fato. Tira onda, como dizem seus conterrâneos. Passando uns dias no Rio durante o maluco inverno brasileiro, mata de inveja quem está na fria terra da garoa, ao desligar o telefone:
– Deixa eu ir, que vou dar um mergulho. Abraço!
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