De olho no invisível

A paulistana Tatiana Blass, 30 anos, é uma artista eclética. Ela começou só com pintura, mas não se ateve a essa linguagem. No decorrer da última década, vem se dedicando, também, a escultura, fotografia, vídeo e instalações. O talento e a versatilidade reverteram em exposições individuais e prêmios, incluindo o Programa Aquisição do Centro Cultural de São Paulo (2003), o Marcantonio Villaça (2004) e o recém-conquistado no 14o Salão da Bahia. Sua arte também vem abrindo caminhos no exterior. Na Alemanha, Tatiana foi finalista do Nam June Paik Award e expôs no Wallraf-Richartz Museum, em Colônia. Na Espanha, suas obras mereceram um livro, publicado pela Dardo Magazine. Nos Estados Unidos, expôs na Pablo’s Birthday Gallery, em Nova York. Os críticos de arte costumam destacar seu domínio espacial, o uso direto de cores e o ágil tráfego entre linguagens, criando intercessões entre elas.

Brasileiros – Como começou a trabalhar como artista?
Tatiana Blass –
Desde criança fui a exposições, fiz cursos de arte e brincava de pintar e desenhar. O primeiro dinheirinho que ganhei, gastei em tintas e selos. Também fazia várias experiências com materiais, derretia velas, queimava Bombril, adicionava pontas de lápis, colocava nanquim e vidro para congelar e depois descongelar Enfim, era tudo uma brincadeira. Meu sonho era ser vendedora em uma papelaria. Afinal, sempre ouvi que era praticamente impossível viver de arte no Brasil. Sabia que a arte sempre estaria presente na minha vida, mas não como minha profissão.

Brasileiros – Quem foi importante na sua formação?
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T.B. -Muita gente. Já no segundo grau, tive aulas com Alex Cerveny e Sandra Cinto. Àquela altura, também estudei no Jogo Estúdio, com Augusto Sampaio e Silvio Dworecki. Depois, me graduei em Artes Plásticas na UNESP. Paralelamente, fiz diversos cursos com Rodrigo Naves, Rodrigo Andrade, José Resende, Edith Derdyk, Alberto Tassinari e, ainda, o importante curso de formação para educadores, da Bienal de São Paulo. Algo muito especial foi ter participado de um grupo de artistas, acompanhado por Paulo Monteiro. Levávamos nossos trabalhos e discutíamos abertamente com artistas e críticos que admirávamos.

Brasileiros – Suas experiências com diversos materiais apontavam para uma prática artística que não se fixaria em nenhum meio específico. Há algum em que se sinta mais à vontade?
T.B. –
Tudo partiu do desenho e, depois, da pintura. A pintura é meu trabalho quase diário, onde me sinto mais à vontade porque o erro é apenas uma camada, pode sempre ser revertido. O projeto está no próprio fazer, há uma solidão que me aconchega. A partir de 2004, comecei a aderir a diversas linguagens. Não foi um projeto predeterminado. Simplesmente passei a ter ideias para a utilização de outros materiais e linguagens. Mesmo com essa diversidade, acho que há um grande diálogo entre os trabalhos.

Brasileiros – Como isso acontece?
T.B. –
Algo em comum entre as obras é a tentativa de estabelecer relações apaziguadas entre os elementos, sem que para isso eu tenha de suprimir a identidade de cada um. O projeto é estabelecer uma convivência em que mesmo a estranheza não traga discordância. Outra aproximação entre as obras é a continuidade entre elementos, em que a presença invisível e imaterial se torne física e o intervalo não seja o vazio, mas uma interligação entre corpos.

Brasileiros – Essa proposta torna-se clara em Globo da Morte e Metade da Fala no Chão. Nestas obras o invisível se materializa. Como você chegou a elas?
T.B. –
Nas esculturas da série Metade da Fala no Chão, a ideia foi emudecer instrumentos musicais com um tubo de latão, que fecha a área por onde entra e sai o som. É como se o som estivesse preso dentro do instrumento e, assim, sua imaterialidade se tornasse física. Já em Globo da Morte, cortei uma moto em duas partes e posicionei uma parte na parede e outra no chão. Tubos de latão interligavam as peças afastadas. Uma das propostas foi criar um desenho de movimento invisível, como a própria velocidade.

Brasileiros – E os animais? Como eles entraram na sua arte?
T.B. –
Fiz alguns trabalhos com referência a figuras de animais e outros com os próprios animais. O primeiro deles, Páreo, de 2006, é uma escultura em mármore de patas de cavalo. Ficou exposta na escadaria do Paço das Artes na USP. As patas foram seccionadas, criando o nível entre os degraus. Depois, também fiz as patas em latão fundido e pintura automotiva. A proposta desses trabalhos veio muito da mesma intenção de criar uma presença do invisível, já que o corpo inteiro do cavalo era sugerido, apesar de ver apenas as patas. Mais tarde, realizei outros trabalhos que tinham a ver com a ideia de caça. Um deles, cujo título é justamente Caça, é uma estante com dois livros onde dispus a imagem de duas aves mergulhando em um lago. A cada página, a imagem está deslocada, mas há uma faixa dourada que fica sempre no mesmo lugar. Conforme se folheia os livros, essa faixa tenta “caçar” as aves.

Brasileiros – Em outras obras você recorreu a animais taxidermizados. Como foi isso?
T.B. –
Sim, também realizei algumas obras com faisões taxidermizados. A primeira delas, Cerco, de 2007, detém um duplo e dúbio movimento de fuga e captura. Ao mesmo tempo em que o faisão “puxa” o quadrado desenhado no chão, como se estivesse escapando de uma armadilha, também se pode ter a noção de que a armadilha conseguiu capturá-lo no momento em que levantava voo. Outra obra que produzi com faisões taxidermizados, já em 2008, chama-se Aquele que nos Contava as Horas, título de um poema de Paul Celan. São três esculturas com faisões esbugalhados na parede, parte feita em latão fundido, parte com as próprias aves. A ideia que busco discutir é a caça como uma violência domesticada. Como uma perseguição encenada, onde perseguido e perseguidor são, de maneira engraçada e ridícula, parte de um jogo com o perdedor previamente anunciado. Muito me interessa lidar com uma certa violência contida, quase escondida, quase aprisionada. O corte que aparece em vários de meus trabalhos ressalta essa ideia.

Brasileiros – Na sua mais recente exposição individual, Cão Cego, na capela do Museu de Arte Moderna da Bahia, o trabalho continua tendo por ênfase os animais. Desta vez, o que você buscou?
T.B. –
Apresentei duas esculturas em parafina e latão fundido, feitas a partir do molde de um cachorro morto e, também, as pinturas da série Teatro para Cachorros. Nessas pinturas aparecem cães e outras figuras como personagens de uma peça teatral. As obras trazem uma reflexão sobre a pintura como uma construção ficcional, em que o espaço ilusório da tela é somado ao espaço também ilusório do palco de teatro, criando uma encenação de uma narrativa em aberto. Essa foi a ideia.


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