José Luiz Passos, pernambucano, nascido em Catende, 1971, é autor de estudos críticos sobre Mário de Andrade e Machado de Assis, entre outros. Publicou, pela Alfaguara, os romances Nosso grão mais fino (2009) e O sonâmbulo amador (2012), vencedor do prestigioso Portugal Telecom em 2013.
Sujeito de grão portentoso, José Luiz, escritor de força e disseminador da escrita, formou-se em ciências sociais na UFPE e foi fazer mestrado em sociologia na Unicamp. Logo estava na Universidade da Califórnia, em Los Angeles, onde é professor titular de literatura brasileira, depois de concluir o PhD, em 1998.
Sua obra, ainda pequena, é farta e de qualidade reconhecida. O verbo intenso estreita-se com a limpeza narrativa e desafia os diálogos. Busca no sonho, entremeando-se com a vigília, o sujeito e sua densidade de ser. Seus personagens, aparentemente tênues, são rijos, recheados de argila. As cidades em que se ajuntam na linha do tempo ficam ao fundo, desfocadas. A questão não é o meio urbano ou rural, mas as agruras, a memória, o vão aço da existência.
Nesta entrevista, feita por e-mail, ele é direto, esclarecedor:
Como se dá seu roteiro de Recife aos EUA, e a que se deve ?
Saí do Recife em 1995 para fazer um mestrado na Unicamp, em Sociologia. Lá, durante meu primeiro ano, fui aluno de Octávio Ianni e Marisa Lajolo. Entrei em contato com alguns professores nos Estados Unidos e na Europa. Estimulado por professores da UFPE e da Unicamp, além de Randal Johnson, da UCLA, solicitei ingresso no doutorado de algumas universidades estrangeiras. Optei pela UCLA e vim para cá em setembro de 1995. Concluí o PhD em 1998 e fui contratado como professor de literatura brasileira e portuguesa pela Universidade da Califórnia em Berkeley, onde ensinei até 2007, quando a UCLA me fez uma oferta para que eu voltasse e ajudasse a montar o Centro de Estudos Brasileiros aqui em Los Angeles. Então, em 2008 me mudei de volta para Los Angeles, e aqui estou.
Como foi, no começo, essa passagem da sociologia para a literatura?
Desde a minha graduação, em Ciências Sociais, na UFPE, escrevia pequenas narrativas, poemas etc. Mas só vim a publicar meu primeiro texto numa revista da pós-graduação em Berkeley. Segui escrevendo, montando pedaços de um romance que viria a ser Nosso grão mais fino, escrito entre 1999 e 2004, e publicado em 2009. De certa maneira, todos os contos e poemas anteriores foram condensados no primeiro romance. E a partir de 2006 comecei a trabalhar no segundo, O sonâmbulo amador, publicado em 2012. A Sociologia ainda me interessa muito. Sigo lendo e acompanhando um pouco dela. Mas desde o início, o que me interessava era a Sociologia da Literatura, então a transição para a crítica literária foi gradual e natural. Aliás, aqui nos departamentos de Letras, os estudos são bem interdisciplinares: sempre há bastante de Sociologia, História e Estudos Culturais no ensino e na pesquisa em Letras.
O sonâmbulo amador é um dos casos da nossa literatura em que a qualidade venceu o marketing. Ele foi lançado silenciosamente, aos poucos conquistando leitores, e por fim um dos maiores prêmios literários em língua portuguesa.
Fiquei feliz e surpreso com a repercussão do romance. Minha editora não faz alarde, não empurra as coisas em ninguém. Investe nos autores da casa, edita bem os livros, um a um, minuciosamente e sem cavilações nem efeitos pirotécnicos. É a mesma equipe; um grupo pequeno de pessoas dedicadas. A aposta que fazem é num leitor que busque uma narrativa ao mesmo tempo segura e original. (Claro, todos vão dizer que buscam a mesma coisa, mas sabemos que não é bem assim.) Jurandir, meu narrador, vem ganhando os leitores aos pouquinhos. Não é um livro que se leia rápido, de uma sentada só. O próprio ritmo da narrativa convida o leitor a entrar num pacto-tartaruga com o tempo. Jurandir remói as coisas. Esse vaivém na sua história pessoal pode espantar um leitor acostumado à exposição imediata de temas polêmicos, de bandeiras de um minuto atrás e cenas de grande impacto, plenamente inteligíveis, com todas as significações explicadas ao leitor. Mas Jurandir é o oposto disso. Não é cerveja na praia, é areia movediça. E, neste sentido, acho que encontra boa companhia no panorama atual da ficção brasileira.
Os sonhos de Jurandir compõem parte importante do livro. Na edição final você cortou vários deles, certo? Já pensou em algo como um caderno de sonhos de Jurandir?
É verdade. Escrevi O sonâmbulo amador entre 2006 e 2012. Os originais, na versão mais completa, passavam das quinhentas páginas. Precisei deixar de fora vários sonhos de Jurandir, além de um caderno que continha uma espécie de diário mais clássico, que ele escrevia para o médico, dr. Ênio. No final, optei por dar ao texto maior coesão. E escolhi os sonhos que se integravam à trama, sem no entanto oferecer nenhuma explicação ou ilustração dela. Curioso você me perguntar a respeito desse caderno. Recentemente, voltei a pensar nisso; se valeria a pena refundir o material cortado e fazer dele, por exemplos, um novela. Mas acho que não. Tirar leite das mesmas pedras não é ideia que me agrade. A vida de Jurandir já está contada, ali, no que há de mais essencial. E cortar é a alma da escrita, você tem razão. Aliás, passo mais tempo cortando e polindo os mesmos textos do que escrevendo coisas novas. Um bom romance é aquele que pode deixar boas partes de fora e, mesmo assim, sobreviver ao corte da matéria desconforme. A maturidade na escrita é saber quando parar e abrir a gaveta da tesoura.
Você se impôs um método de escrita relativamente rígido: produzindo primeiro os sonhos de Jurandir, depois, os eventos em sua vida presente, e seguindo, o enlace de ambos com as memórias e os textos que ele próprio buscava escrever.
Foram etapas bem diferentes. Passei um ano e meio só redigindo os sonhos, vários por dia, uns 120, sem me preocupar com o enredo. Também me impus uma restrição: não podiam ser sonhos meus. A parte mais difícil foi o começo, integrar tudo isso à trama e cortar o que não servia desde cedo. O momento de maior prazer foi chegar ao quarto caderno de Jurandir e planejar o desfecho. Àquela altura, os personagens já estavam de pé, delineados na minha cabeça e no papel. Já tinha diante de mim cenários inteiros para mergulhar dentro. É muito sedutor habitar essa fantasia sobre a vida dos outros, criada por você mesmo… Mas não consigo me imaginar mudando nada hoje em dia. Agora o romance tem vida própria.
Tanto em Nosso grão mais fino, quanto em O sonâmbulo amador há uma atenção especial ao diálogo. Que autores você admira ou se inspira para manter afiada a arte do diálogo? Ou você costuma ouvir as vozes das ruas?
Acho o diálogo algo difícil de se acertar de primeira. Invejo meus amigos que escrevem roteiros e peças. Em português, na época em que trabalhava no romance, lia muito Nelson Rodrigues. E, entre os daqui: Cormac McCarthy. Mas tem um detalhe. Não penso que o diálogo num romance deva ou mesmo possa ser exatamente igual à maneira como as pessoas realmente falam. O modo como as pessoas falam jamais é apanhado pela prosa no papel. O romance evoca ou alude a padrões que reconhecemos como correntes ou dialetais; familiares ou estranhos. E a oralidade na escrita é um artifício como qualquer outro. Ela tem uma missão e um lugar como oralidade representada na escrita. Ora, essa variedade não é cópia do real, mas representação dele. E toda representação é, de certo modo, um “falseamento” da coisa representada; é um modelo em escala diferente. Há momentos em que busquei um registro mais coloquial; outros, um tom mais burocrático, afim ao tipo de Jurandir: um funcionário sessentão, nascido no começo do século e prestes a se aposentar no final dos anos 1960. Ouço as vozes da rua, por assim dizer, para tirar ideias e tipos úteis às histórias que quero contar. Mas tento não copiar essas vozes. Se quisesse copiar, tais quais penso que são, seria melhor tentar o gênero do documentário, cuja aderência ao objeto retratado é (pelo mesmo em teoria) maior que a do romance de ficção.
Você acaba de publicar Averrós, um conto, por um selo de literatura digital. Você produz contos com frequência? Pensa em publicar um volume de contos no futuro?
Adoro o gênero do conto. Mas confesso que tenho um pouco de medo dele, porque para mim o conto é uma tentativa no campo da perfeição: um passo em falso e a casa cai. Além disso, quando começo um projeto, gosto de mergulhar nele sem ter a certeza ou a visão de um fim. No conto isso não funciona bem. Você precisa saber exatamente onde está indo. O romance admite muita impureza e até erros, redundâncias, digressões, além das gordurinhas. Tudo isso é a morte na forma curta. Então, sim: admiro o conto, tenho alguns guardados e outros em andamento, mas não pratico o gênero com tanta frequência. Sinto vontade de publicar um volume com essas narrativas. Quando tiver o suficiente para encher um livro, vou tentar. Mas acho que o conto será, para mim, uma forma da maturidade; virá mais adiante. Por isso, um dos aspectos mais saudáveis das publicações digitais é que o autor pode ensaiar seus passos, aos poucos, e contar com a mão ou com os tomates do leitor, a fim acertar da próxima vez…
Há na literatura brasileira contemporânea uma marca comum, as temáticas urbanas e realistas. Seus dois romances seguem caminhos opostos?
Essa pergunta é difícil. Acho um pouco apressado dizer que o traço urbano e realista define a narrativa brasileira atual. Concordo: é uma temática ou um estilo bem visível hoje em dia. Mas se isso esgotasse nosso panorama, estariam de fora, por exemplo, os dois lindos romances de Carlos de Brito e Mello; a vigorosa estreia de Antonio Geraldo Figueiredo Ferreira; os primeiros romances – aliás, extraordinários – de mestres no conto, como João Anzanello Carrascoza e Chico Lopes; grande parte de Antonio Carlos Viana; as narrativas impressionantes de Ronaldo Correia de Brito; além de clássicos recentes, absolutamente incontornáveis, como Francisco J. C. Dantas e Raduan Nassar. Até mesmo em narradores incontestavelmente urbanos, de mão segura nesse estilo, como Beatriz Bracher e Sérgio Sant’Anna, é possível encontrar momentos em que a irrupção do espaço interiorano (através da carta provinciana, da memória do garimpo) retomam a relação entre o campo e a cidade, em seu potencial dramático, de radicalização da metamorfose. A quebra de um pacto entre a cidade e o campo é um aspecto fundamental da modernidade nas letras brasileiras. Está na simplicidade atônita e genial de Rubião, em Machado de Assis; no mea culpa do Joaquim Nabuco memorialista; na mudança de lado de Euclides da Cunha frente a Canudos. Está no sentido das viagens de Macunaíma, na redescoberta dos poemas acreanos de Mário de Andrade; é o principal motor do ciclo de 1930; atravessa Guimarães Rosa, ressurge em Macabea, de Clarice Lispector. O sujeito rural, a vida na província, a viagem ao campo têm servido para destacar, em narrativas de cinema e literatura, questões políticas centrais na organização da vida brasileira. Aliás, a questão indígena, o êxodo rural e o problema da ocupação da terra estão vivos hoje, tanto em reservas quanto nas cidades, em favelas e quartos de empregada, como mostraram tão bem Bernardo Carvalho, em Nove noites, Paulo Scott, em Habitante irreal, e Kleber Mendonça Filho, no filme O som ao redor. Vale lembrar que não só as vozes de Ariano Suassuna, mas também as de Luiz Ruffato e Marcelino Freire têm forte ligação com essa diáspora do campo e da província, que constitui grande parte do cenário marginal das cidades. Lembremos de onde vem o nome “favela”, por exemplo… E em muitas das obras que destaquei aqui, campo e cidade se misturam num tom que beira o surrealismo brutal e ameaça a representação meramente realista de tipos exclusivamente citadinos. Isso dito, claro, concordo: a maioria do que se publica hoje em dia se passa nas cidades. Acontece que em literatura, as grandes exceções mudam as regras do jogo. No meu caso, o que posso dizer é que nunca tive a intenção de escrever um romance-tese, sobre o campo ou sobre o mundo rural, que comprovasse qualquer teoria nem estudo sociológico da região. Mas, aos poucos, lendo e ensinando Joaquim Nabuco, Graciliano Ramos, José Lins do Rego e Osman Lins, entre outros, me veio a sensação de que a representação da sociedade patriarcal, como lugar ou objeto para o qual converge a mirada crítica ou o sentimento nostálgico, traduzia uma visão parcial do fenômeno. A velha supermoderna indústria falida (têxtil ou sucroalcooleira) produz, ela também, um repositório de mitos sobre a idade de ouro, sobre o fausto, sobre a queda, sobre a degradação do caráter no tempo presente. E essas relações de compadrio e favor ainda nos definem mesmo nas grandes cidades. Então, por que isto anda fora do panorama literário, se é algo que nos toca? Busquei retratar aspectos desse mundo; meus personagens transitam entre o agreste pernambucano e a região metropolitana do Recife. Mas quis que a ênfase dos romances recaísse numa tentativa de recuperação do passado através do reencantamento de paixões e traumas adormecidos, que julgamos superados ou invisíveis. O tema é velho. As vozes são outras. Espero que o resultado seja novo.
O escritor e sua divulgação… eventos e mídias?
Pois é… Conversei sobre isso, hoje mesmo, com João Paulo Cuenca, que está visitando Los Angeles esta semana. Por um lado, isso tudo é sinal de uma maior profissionalização da atividade literária no Brasil: mais agentes, mais feiras, festivais e bienais, mais canais de comunicação, mais oficinas e minicursos, mais espaço para se dar entrevistas, mais interesse da mídia impressa e digital, mais apoio do governo federal e dos governos estaduais para eventos de literatura etc. Mas isso resulta em melhores escritores? Em mais escritores? Em mais leitura ou mais leitores? Confesso que não sei. Sou pouco otimista a respeito disso. Do ponto de vista do autor, o que acontece hoje em dia é uma superexposição dele, ou dela, e de suas opiniões. Ocupar espaço nesses canais e nas mídias sociais virou parte do jogo. É claro que é importante ouvir o escritor. Porém, melhor seria, acho eu, mais espaço dedicado à publicação de literatura e de resenhas longas, detalhadas. Esta própria entrevista, que estou escrevendo neste instante, me tomou várias horas; na realidade, me tomou alguns dias. Eu poderia ter escrito um conto em vez de me dedicar à entrevista, não poderia? Então, uso esse nosso rito de contato como um exemplo bem rasteiro da contradição que quero apontar. Esta entrevista me dá espaço e, ao mesmo tempo, me tira um conto. Ela me promove e mata a minha literatura. A mercantilização da tarefa, do papel, das opiniões e da persona do escritor resulta nisso. Ocorre que escrever literatura deveria ser, em parte, o contrário disso: um espaço que resiste à tipificação, à produção serializada de perfis. Literatura não se faz repercutindo pautas…
A literatura como desafio é…
Ela é feita no confronto de uma consciência com questões que têm relevância coletiva e plena urgência individual. Ela existe como a linguagem absolutamente singular de alguém que pensa seu mundo, em busca de chegar ao mundo de um outro. Essa literatura da qual estou falando se alimenta e ao mesmo tempo sacia demônios difíceis de se evitar, na companhia dos quais o autor escreve correndo o risco, inclusive, de ser derrotado por eles, de não alcançar nada que valha a pena ser compartilhado e, menos ainda, repercutido pelos infinitos eventos e canais de hoje em dia.
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