De olhos bem abertos

É sábado, faltam quatro dias para a abertura de Funciones de una Variable, a primeira retrospectiva da brasileira Jac Leirner no México. Em uma das salas da construção contemporânea que abriga o Museo Tamayo, na capital, a artista mexe no tablet para mostrar, via Skype, alguns dos arranjos que compõem Corpus Delicti (1993), uma de suas grandes séries incluídas na mostra: a bancada com cinzeiros roubados de aviões ao longo de anos e conectados por fios; a guirlanda de sacos de enjoo; e os tapetes de bordo, organizados para fazer perfeito sentido cromático, sobre os quais está deitada. Exausta da montagem – colocar suas obras em pé envolve um grau de rigor obsessivo que só perde para o processo de criá-las –, parece feliz.

Para começar com o conceito da retrospectiva, que, além de reunir séries referenciais, torna públicos trabalhos nunca vistos, o site specific X-Man, em que níveis de precisão vermelhos são arranjados em torno de uma pequena caixa de luz, de cor idêntica de uma parede do museu, é um exemplo. Outro são os poemas escritos entre 1979 e 1982, antes de qualquer trabalho oficialmente artístico, antes da faculdade de artes plásticas, antes da banda punk OKCT . Datilografados, eles remetem à poesia concreta, como quando pontos finais de intensidades diversas constroem paredes em torno de um único verso, mas também a Mallarmé, a Rimbaud, a Ezra Pound. “Eu era apaixonada por poesia”, conta. “E era apaixonada por Lewis Carroll.”

O título da mostra foi emprestado de um dos poemas, que articula termos e conceitos matemáticos em versos, como “Funções de uma variável/monotonamente crescente/definição de tempo/um lugar geométrico real./Análise de movimento/declividade tangente/secante, constante/quantidade/diferenciação/máximo e mínimo relativos/pontos de inflexão”.

A curadora Julieta Gonzalez viu na poesia da artista muito mais do que uma curiosidade inédita. “Para ela, é desses poemas que meu trabalho se desdobra, e não da arte construtiva, da arte povera, de Duchamp”, diz Jac.

Na perspectiva de Gonzalez, curadora-chefe do museu mexicano e curadora de arte latino-americana da Tate Modern, de 2009 a 2012, os poemas antecipam operações que seriam chave na obra da artista: a repetição, o acúmulo do que é ao mesmo tempo genérico e único e a sobreposição das leituras visual e textual, algo que Moacir dos Anjos, curador da retrospectiva Jac Leirner (Estação Pinacoteca, 2011), chamou de “paradoxo da distância”. “Vistos de longe, os trabalhos são usualmente planos de linhas ou campos de cores que se sobressaem e se impõem ao olhar. Quando observados de perto, destacam-se as inscrições, os textos, as marcas que revelam a origem e os empregos anteriores de cada material”, ele explica em fala intitulada, não por acaso, Jac Leirner e o Sorriso do Gato.

Intimidade
A obsessão de reter materiais corriqueiros,“irrisórios”, interrompendo sua passagem contínua pela vida para dar-lhes forma e lugar, é exemplificada na mostra mexicana por algumas das séries que tornaram Jac Leirner uma das artistas brasileiras mais conhecidas no circuito internacional, a partir do fim dos anos 1980. 

De Nomes, instalação composta por sacolas de lojas de museus, a Os Cem (1987), em que notas de 100 cruzeiros são laboriosamente retiradas de circulação e rearranjadas em esculturas ou painéis, que frisam seu papel como suporte para intervenções anônimas.

Séries recentes, também expostas no México, mostram a recorrência do impulso de acumular para criar sentido, ainda que varie forma ou método. “Finalmente, descobri o prazer das compras”, diz a artista sobre os trabalhos em que alinha, a partir de um eixo vertical, réguas de 40 tons diferentes, compradas uma a uma, ao longo de cinco anos, em diferentes países.

Se ao guardar maços de cigarros ou cinzeiros de avião a artista estava colecionando, na verdade, tempo, as réguas – como os extensores, os níveis de precisão e as fitas adesivas, matérias-primas de outras instalações presentes na exposição – falam de uma relação de intimidade. “São materiais que usei ao longo de minha história como artista e que sempre amei. Eles me serviram, e agora sinto que estou servindo a eles”, diz Jac. “Mas o que faço, ali, é o que faço geralmente. Estou potencializando plasticamente pequenas presenças com as quais lidamos e que não levamos em conta.”

A composição com etiquetas das quase 500 obras do acervo do Tamayo – balizada pelo volume de texto de cada uma e marcada pela precisão habitual – aponta na mesma direção metalinguística, ecoando o gesto simbólico que restaura algo a um lugar honroso.

“Todo o museu está nessa parede”, diz. A encarnação presente do conceito da obra não é a primeira; antes, ela fez o mesmo com parte da coleção do MoMA , em Nova York, e do Walker Art Center, em Minneapolis.

Pílulas
A relativa economia de elementos que caracteriza séries mais recentes em relação às predecessoras, os comentários que tematizam a relação com a história ou o ofício da arte ou os trabalhos que nascem de partos mais rápidos do que é costumeiro para a artista, como X-Man, não constituem direções novas e preponderantes. Na prática de Jac, projetos maiores e de maturação lenta convivem com outros mais rápidos, que se impõem aos ciclos repetitivos e dão a ela algo para fazer enquanto pensa e seu trabalho é 90% reflexão, e apenas 10% ação.

Um bom exemplo são as composições que tem feito com suas vitaminas e remédios: a cada 15 dias, antes de organizá-los nas caixinhas que orientam o consumo diário, ou a qualquer outra hora, cede às possibilidades plásticas de suas cores e formas, criando arranjos que então fotografa e publica em seu Instagram. Descobriu o aplicativo depois de certa resistência – diz ter “problema com imagens de segunda mão”. Agora, adora “ver o que outros artistas estão pensando e articulando”.

Um livro de artista e uma exposição na Inglaterra, além de duas novas séries da cepa das grandes, estão em seu horizonte imediato. Segura da relação com seu trabalho e do domínio conceitual que tem sobre ele, diz que relações, como as que estabeleceu com Julieta e Moacir, a alimentam. “As galerias põem o trabalho no mundo, mas os curadores pensam, reinventam a obra a partir da experiência deles. Já sofri muito por falta disso. Sou uma pessoa carente”, ri, séria. “Mas aos trancos e barrancos, cresci.”


Comentários

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Esse site utiliza o Akismet para reduzir spam. Aprenda como seus dados de comentários são processados.