As verdades que ele diz

Fotos Luiza Sigulem

Ao chegar ao apartamento de Marcelo Rubens Paiva, no bairro de Perdizes, zona oeste de São Paulo, sou recebido pelo escritor em pé. Suspenso por cintas fechadas ao redor de suas pernas, Marcelo se exercita em uma mesa especialmente desenvolvida para deficientes físicos. O ano era 1979, e o então estudante de Engenharia Agrícola da Unicamp viu seu destino mudar ao pular de um lago da cidade de Campinas, onde cursava o primeiro ano da faculdade. Com a queda, fraturou uma vértebra do pescoço e ficou paraplégico para o resto da vida.

Filho do ex-deputado federal socialista Rubens Paiva, cassado, exilado e morto pela ditadura militar em 1971, Marcelo encontrou no segundo grande trauma de sua história a chance de traçar novos caminhos e descobriu a vocação para uma nova profissão. Incentivado por Caio Graco Prado, dono da badalada editora Brasiliense, lançou em 1980 o livro Feliz Ano Velho, um retrato autobiográfico e emocionante sobre seu acidente e sua história de vida. O livro se tornou um enorme sucesso de vendas, sendo traduzido para diversos idiomas e se convertendo no livro mais vendido do Brasil na década de 80.

Trinta anos e muitas experiências depois, Marcelo lança neste mês de novembro As Verdades Que Ela Não Diz, décimo livro de sua carreira. Reunindo contos escritos ao longo dos últimos anos, o escritor se volta para um de seus temas favoritos: o universo feminino e suas nuances. Depois de trabalhar como apresentador de TV, roteirista, dramaturgo e diretor, Marcelo afirma que sua ambição é continuar fazendo exatamente o mesmo. Em entrevista à Brasileiros, o escritor relembra aspectos da sua trajetória e tece considerações sobre sua obra, sua história e, é claro, sua visão sobre as mulheres.

Se o salto dado há trinta anos foi fatal para suas pernas, ele também foi essencial para sua carreira e para o que se tornaria hoje: “um senhor de 53 anos que já passou por todas as experiências, que teve seus desencantos e que tem mais sabedoria para administrar melhor suas angústias pessoais”, como ele mesmo se descreve.

Trinta anos se passaram desde Feliz Ano Velho, um dos maiores sucessos editoriais do Brasil. Quais foram as mudanças mais importantes da sua vida neste período?
Naquela época eu tinha 23 anos de idade, era um garoto totalmente idealista, apaixonado por música, que achava que o mundo ia acabar numa guerra nuclear, como todo mundo achava, mas vivi intensamente os anos 80. Um mundo de muita libertação sexual, de costumes, drogas entrando na vida das pessoas com muita intensidade. O Marcelo de hoje é um senhor de 53 anos de idade, que tem uma carreira mais estabelecida no jornalismo, fez um pouco de tudo, já viajou. E esse vive numa época completamente diferente, uma época em que caiu o muro de Berlin, o mundo não é mais dividido em dois blocos, em que os sonhos e as utopias foram por água abaixo, um mundo muito mais individualista, as pessoas são muito mais egocêntricas, a sociedade brasileira ficou muito mais conservadora. São dois homens diretamente opostos. Um era um cara inseguro, que não compreendia muito bem a vida, não compreendia quase nada as mulheres, o amor e agora é um homem que já passou por todas as experiências, que teve seus desencantos e que tem mais sabedoria para administrar melhor suas angústias pessoais.

Em uma entrevista você revelou que foi impulsionado a se tornar escritor graças ao Caio Graco Prado, amigo de sua família que na época comandava a editora Brasiliense. Acredita que teria enveredado por essa carreira sem este incentivo dele?
Acho que não. Eu tinha sempre esse pé na literatura, mas não desse jeito oficial, como uma carreira a ser seguida. Eu sempre fazia letras de música, poemas, escrevia contos, mas era muito mais por uma vontade de me expressar e porque eu gostava de escrever do que planejando uma vida literária. Naquela época jovens de 20 anos não escreviam livro, quem escrevia os livros eram os grandes sábios da cultura brasileira. O jovem só ia começar a escrever depois de fazer seus 40 anos, até mesmo fora do Brasil. O Jack Kerouac demorou oito anos pra emplacar o On The Road. Imagine eu, que era um moleque, um estudante do 1º ano da ECA. Só que o Caio Graco estava exatamente mudando esse estereotipo, esse paradigma de que a literatura pertencia só a poucas mentes sábias e estava renovando seu leque de escritores, dando apoio a uma nova geração de autores que estava espalhada por aí. Descobriu o Reinaldo Moraes, descobriu o Caio Fernando Abreu, a Ana Cristina César. Ele tinha esse olhar atento com o que estava acontecendo em volta, e sabia que a literatura brasileira estava precisando de uma renovação depois de anos de ditadura militar.

Como você vê seu papel nesta geração dos anos 80? Você imaginava que o livro se tornaria o grande sucesso que foi?
Não, não imaginava. Como é que um cara que narra sua história numa UTI pode ser a voz da juventude? Você imagina que a voz da juventude era a Blitz, os caras surfando, lindos e com corpos bronzeados. Eu era um garoto tímido que fazia faculdade, freqüentava uma boate punk no centro da cidade, tinha uns amigos que eram uns losers. Então isso virar um fenômeno de massas é surpreendente. E foi muito difícil lidar com isso, porque eu tinha 20 poucos anos. Eu não queria ser ídolo de ninguém, então eu fiquei meio perturbado durante um tempo. Até porque eu não tenho a menor vocação pra liderança política, eu só queria cuidar da minha vida. Já era tão difícil eu cuidar da minha vida, não queria ser líder. Pode ser uma falta de modéstia minha, mas acho que essa insegurança, esse meu jeito de ser, que representasse algo para as pessoas, e não o Evandro Mesquita, com aquele jeito expansivo, bonito, com garotas lindas na praia. Eu morria de inveja do Evandro Mesquita, eu queria ser ele, não o Marcelo Paiva.(risos)

Após Feliz Ano Velho você se dedicou a escrever livros ficcionais, afastando-se um pouco da literatura em primeira pessoa consagrada na história de seu acidente. O que o fez tomar esta decisão?
Pode ser que eu ficasse muito tempo preso numa egotrip que não fosse muito saudável. Pode ser também que esgotasse, se eu ficasse falando de mim mesmo o tempo todo uma hora não ia ter mais o que falar. Pode ser até uma forma de me preservar, porque eu fiquei no foco das lentes durante muito tempo, então de repente me escondendo atrás de personagens ficcionais eu me sentisse menos exposto. Tenho uma peça de teatro minha, que é o No Retrovisor, que fala de um deficiente físico 20 anos depois do acidente dele. Então ela mostra um deficiente físico mais inserido, mais bem resolvido, diferentemente do Feliz Ano Velho, quando eu era um moleque que estava vivendo ainda a reabilitação física, ao mesmo tempo em que estava vivendo os anos 80. Eu podia ter falado de mim 20 anos depois, mas eu preferi inventar esse outro personagem e falar através dele de tudo o que eu vivi nesse tempo. Mas por outro lado eu me arrependo um pouco de ter ido só para a ficção. Eu estava vivendo no olho do furacão e não tinha noção disso. Agora com distância é que penso que estava lá no dia das Diretas Já, eu estava lá no dia que a Legião Urbana tocou pela primeira vez em São Paulo, várias coisas que aconteceram e que hoje são momentos da história político-cultural do Brasil.

Em As Verdades Que Ela Não Diz você se dedica a retratar o universo feminino com suas principais características e nuances. Como você enxerga o papel das mulheres em suas obras, e como cria seus personagens femininos?
Eu sou aquele tipo de homem que tem muita amiga mulher. É uma característica minha desde a adolescência, talvez porque eu tenho quatro irmãs, então tenho muita facilidade de convívio com garotas. Fico amigo de ex-mulheres, ex-namoradas, e me fascina esse mundo feminino, porque é diferente, é mais perturbado. Pode ser um preconceito, uma análise superficial, mas eu acho que o mundo das mulheres tem muitas contradições. Tem o papel que ela quer exercer e o papel que ela exerce. A mulher é mãe, a gente não é mãe. Não só ser mãe do seu filho, mas ser mãe dos amigos, ter esse espírito de cuidar, de tratar, coisa que nós homens não temos. E por outro lado a mulher também quer o mercado de trabalho com os mesmos salários, com os mesmos direitos.

Elas também têm outros interesses, todos os sentimentos de tesão, de atração, mas que por outro lado enquanto que pro homem isso é incentivado, pra mulher isso é reprimido. São personagens muito ricos exatamente porque elas têm mais contradições, mas isso está mudando. Estamos vivendo uma revolução, e por isso é interessante escrever sobre isso. A curva dramática da mulher é muito maior que a do homem, em relação ao amor, paixão. Se o cara foi abandonado, ele enche a cara e compõe dez músicas de fossa, mas a mulher quando é abandonada se reconstrói toda, pinta o cabelo, muda o jeito de se vestir, frequenta outra parte da cidade, fica muito mais radical.

Recentemente você afirmou que se arrependeu da decisão de deixar os projetos de Bicho de Sete Cabeças e Meu Nome Não É Johnny de lado. Em compensação, você esteve envolvido na produção de E Aí, Comeu?, que se tornou um grande sucesso de bilheteria. Pretende realizar mais projetos no cinema?
Pretendo. Eu estava ocupado e fui fazer outras coisas, e hoje me arrependo porque são projetos maravilhosos, são filmes que eu queria ter feito parte até o final, inclusive pra aprender, porque naquela época o cinema não era algo no qual eu estava investindo muito, eu estava mais adaptando os meus livros, as minhas peças. E agora que eu continuo adaptando, algumas coisas eu aprendi, mas queria aprender mais.

Estou estudando mais cinema, é um gênero que eu estou investindo muito. Acho que poderia ter aprendido muito com eles naquela época, e agora estou aprendendo com o Malu de Bicicleta, com o E Aí, Comeu?. Agora estou realmente vendo o que é cinema, o que é fazer um filme de alto orçamento e um de baixo orçamento. Você tem que escrever um roteiro que é possível de ser filmado, você não pode escrever uma loucura qualquer. E todos os tempos do cinema, o primeiro ato, segundo ato. E isso tudo eu poderia ter aprendido naquela época. Mas às vezes esses arrependimentos aparecem, e também fiz outras coisas legais das quais eu devo me orgulhar.

Além de escritor de peças você também é diretor. Como foi se adaptar este trabalho?
A surpresa positiva é que foi mais fácil do que eu imaginava. Outra surpresa é que demanda mais tempo do que eu imaginava. Você passa dois meses dormindo e acordando esse projeto, pensando na trilha, ouvindo sete mil músicas pra escolher uma frase musical numa determinada cena, pensando em várias cenas. Eu lembro que quando eu comecei a dirigir eu fui bastante esperto e peguei quatro atores que são diretores e autores pra trabalhar comigo. A Paula Cohen, o Hugo Possolo, o Mário Bortolotto e o Alex Gruli, cada um de um grupo, cada um com uma história diferente.

Mas são quatro gênios do teatro, então acho que eu fui meio safado nessa história assim, porque era uma forma de ver se eles me ajudavam, só que eles não me ajudavam [risos]. Então eu aprendi fazendo, vi que não é tão difícil e adorei. É algo que eu me dedicaria de corpo e alma, a ser diretor de teatro. Por um lado é fascinante, não é a toa que existe tanta gente envolvida com o teatro, mas por outro é uma coisa muito desgastante.

Você também se notabilizou por apresentar o programa Fanzine, na TV Cultura. Sente falta de fazer televisão?
Nem um pouco. Acho que é o tipo de coisa que eu jamais voltaria a fazer. Não tenho nem vontade de ir a um estúdio dar uma entrevista, quando mais fazer programa [risos]. Acho que televisão é algo que só pra escrever. E o engraçado é que eu sou formado em Rádio e TV pela ECA. Eu comecei trabalhando com o [Fernando] Meirelles, na produtora Olhar Eletrônico, que depois virou a O2. A gente fazia uns quadros pra TV Abril, tivemos dois programas. E esses dias eu estava conversando com ele e perguntei: ‘a gente fazia televisão por que a gente queria fazer cinema?’, e ele falou: ‘não, a gente fazia televisão porque a gente queria revolucionar a televisão brasileira’. E era verdade. Nos anos 80 muita gente foi fazer Rádio e TV, a gente queria bagunçar com a TV. Hoje em dia não precisa mais, a TV já está bagunçada.

Com As Verdades Que Ela Não Diz você chega ao décimo livro de sua carreira como escritor. Que ambições você tem hoje, aos 53 anos? O que ainda não conquistou e deseja alcançar?
Continuar escrevendo, continuar fazendo roteiro de cinema, continuar fazendo peça de teatro, continuar dirigindo. Acho que o que eu mais quero agora é fazer roteiro de cinema, estou bem dedicado, estudando bastante. Acho que estou estou no meio pra ficar. Comecei por acaso, adaptando meus livros, mas agora estou curtindo mexer com cinema. Mas também estou sentindo falta de escrever um romance, de dirigir uma peça. Acho que eu vou continuar essa minha vidinha ‘metida’, me metendo nesses gêneros.


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