Anderson Lopes é um rapaz de 19 anos, alto, esguio e reservado. Talento precoce da dança, tornou-se uma real promessa do balé clássico brasileiro. Conquistou mais de 50 prêmios, em nove anos. Depois de vencer mais de uma centena de concorrentes em uma seletiva no Brasil, participará, em março, do Youth America Grand Prix, em Nova York, na categoria sênior, da maior competição de estudantes de balé do mundo. Uma façanha. Há quem saia da disputa com bolsas concedidas por renomadas companhias ou valiosos contratos. Tudo isso ganha ainda mais peso quando se sabe das origens e da luta de Anderson. Ele é filho de um vigia noturno (funcionário da Prefeitura de São Paulo) e mora em Pirituba, na periferia de São Paulo, onde enfrentou preconceitos devido à sua escolha. Dono de um giro desenvolto e rápido, um dos movimentos mais difíceis do balé, teve de rodopiar muito, também, na vida.
O garoto despertou para a dança aos cinco anos. Aos sete, começou a frequentar uma academia próxima de casa, levado pela prima, Michelle, que estudava balé. Tudo escondido do pai, Roberto. Um menino de sete anos pretender ser bailarino ainda é visto como mau presságio pela maioria dos pais. É assim, sobretudo, nos países machistas. E até em nações ricas. O filme inglês Billy Elliot (2000), de Stephen Daldry, trata disso. Narra a história de um menino que cursa balé à revelia do pai, que prefere vê-lo lutador de boxe.
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Anderson cresceu em uma família onde as manifestações de intolerância foram endossadas pelo clamor da sobrevivência. Os pais se separaram quando ele tinha cinco anos. Desde então, vive sozinho com Roberto. A rotina dos dois se resume ao isolamento de Anderson durante as noites, e à companhia sonolenta do pai durante os dias. Roberto tem mais uma filha de outro relacionamento; e a mãe, Tereza Maria, deu a Anderson outros cinco irmãos, que cresceram próximos a ele.
“Quando fiz o primeiro ano de balé, escondido, as aulas eram aos sábados”, conta. “Minha prima me pegava e dizia que me levaria só para passar o tempo, fazer companhia. Eu ia, tomava aulas. As roupas e as sapatilhas ficavam escondidas na casa de minha prima e, vez ou outra, eu levava pra casa, muito bem escondidas, pois queria treinar. Meu pai saía, eu me trancava no quarto, calçava as sapatilhas, colocava qualquer música, mesmo no rádio, e dançava sem parar. Houve uma apresentação de final de ano na academia. Meu pai foi. Só ali, no último dia, ele soube que eu havia passado um ano estudando balé. Assistiu, até gostou, mas ficou em dúvida.”
A professora Paula Gasparini – dona da academia que leva seu nome, em Pirituba – e uma tia de Anderson tentaram conversar com Roberto. Insistiram para que desse o aval para o menino continuar os estudos de balé. Roberto não permitiu. Anderson recorda: “Os amigos dele diziam, indignados: ‘Seu filho fazendo balé, imagina se pode?! Tinha de estar estudando futebol, isso, sim!’”.
Altivo, Anderson afirma que buscou forças para suportar os preconceitos. E foram muitos. Na escola, durante o recreio, os garotos gritavam: “Olha o bailarino, olha o bailarino!”. A chacota se transformava em um coro que ressoava no pátio – e era Anderson quem ia parar na diretoria. A mesma ladainha corria no bairro, mas o garoto estava convicto. Aos dez anos, retomou os estudos de dança. Por dois meses, escondido, pois nem a mãe aprovava. Os pais só cederam ao perceber que a escolha era irreversível. “Agora, não querem que eu pare.”
Pedi a Anderson, antes de encontrá-lo, que levasse fotos e material dos cursos e prêmios. Recebo uma gorda pasta, onde toda sua vida de bailarino está guardada. Examino fotos de Anderson bem garoto. Já se percebe o domínio dos movimentos. Fico intrigado com as notas dadas pelos professores. A média é de oito pontos por ano. Um aproveitamento respeitável. Para um talento como o dele, porém, por que não a nota 10? Uma explicação: nos boletins, os professores relatam frequentes problemas de assiduidade e comportamento. Mas os professores apostavam no potencial de Anderson, embora o próprio garoto, na inconstância da adolescência e das condições financeiras, viesse a colocar em xeque sua vocação. Temia que o sonho fosse alto demais.
“Não tinha essa certeza para afirmar que sou bom. Uma das crises ocorreu aos 16 anos. Estava cansado. Via meus amigos saindo, se divertindo, e eu sempre indo para a academia. Acabei relaxando. Passei a faltar, a perder o horário das aulas. Dançar bem requer disciplina, ensaio. A base é a repetição. São, no mínimo, vinte horas semanais, de segunda a sábado.”
Os conflitos chegaram ao ápice no começo de 2009. Anderson passou a morar com a mãe, que ficou doente. O orçamento, até então apertadíssimo, piorou. Motivos de sobra para desistir de vez. Anderson foi trabalhar como balconista de uma lan house. “No dia em que contei à Paula que tinha desistido, ela ficou muito triste. Cheguei em casa e desabei”, confessa. “Meu pai olhava e tentava me consolar: ‘Esquece. O balé não te deu futuro nenhum, não vai ser agora que vai dar’”.
Parecia o frustrante fim para um sonho. Até que despontou a última oportunidade no Festival Passo de Arte – promovido na cidade paulista de Indaiatuba -, um dos mais importantes de dança amadora do País. Seus vencedores, nas categorias principais, são credenciados a participar do YAGP, em Nova York, desde 2000 a maior competição internacional. Só a categoria principal, na que Anderson concorrerá como o único representante brasileiro, reúne 300 estudantes de balé clássico e dança contemporânea, de 30 países. Alguns dos melhores coreógrafos e dançarinos fazem o papel de olheiros, à caça de talentos.
“Resolvi tentar de novo, mas fiquei muito envergonhado em pedir para voltar à academia da Paula, que foi a pessoa mais importante em minha formação, pelo apoio profissional e pela amizade. Ela me pagou hotéis, passagens, alimentação, roupas, as taxas de inscrição e sempre se opôs à minha saída.”
A solução veio na figura de Eliana, professora de Paula, dona de uma academia de ginástica. Havia sete meses Anderson estava parado, longe do preparo ideal. “Passei a treinar com toda a intensidade um mês inteiro”, conta. “Eu seria o último a me apresentar no Passo de Arte. Não fazia a menor ideia de quando entraria no palco. Eu me aquecia, sentava e esperava, superansioso. Quando chegou minha vez, minutos antes do final, havia pouca gente na plateia. Tive muita sorte de me apresentar bem e ficar em primeiro lugar. Era mesmo a minha última chance.”
Evidentemente, Anderson terá de submeter-se a um treinamento rigoroso, com acompanhamento especializado, para poder vingar em Nova York, onde outros 52 bailarinos brasileiros participarão do YAGP, em categorias menos expressivas. Sua intenção era procurar a primeira pessoa que acreditou nele, Paula Gasparini. Não só por gratidão, mas também pela competência da professora. Havia, no entanto, uma série de desentendimentos. Anderson tinha abandonado a academia de Paula e, depois, voltou a praticar o balé longe dela. Sentia-se constrangido. A mãe de uma aluna, sabendo do problema, resolveu interceder e reaproximar Anderson e a professora. Paula recebeu o ex-pupilo de braços abertos.
É essa mesma mãe que dá seu testemunho sobre a rotina dos rapazes estudantes de dança na periferia. Mas pede que seu nome não seja publicado, para não prejudicar a filha, há dez anos aluna de balé. Diz ela: “Os meninos enfrentam muito mais dificuldades que as meninas. Vão desistindo por falta de recursos, compreensão e incentivo. Nos festivais, às vezes, atravessam o dia esperando a professora se manifestar para ver se terão ao menos um lanche. Até passam fome. Em muitas ocasiões, têm só o dinheiro da passagem e, em geral, vão aos eventos sozinhos. Raramente os familiares acompanham. A situação chega a ser humilhante.”
Também foi essa mesma mãe da estudante de balé quem procurou a Brasileiros para contar a história de Anderson. Ela está presente na entrevista e faz o apelo: “A expectativa mínima é de que ele consiga uma bolsa, mas, antes disso, terá de sobreviver em Nova York nos três dias da competição. Não tem dinheiro para isso. Vai precisar de patrocínio, evidentemente”.
Anderson observa a conversa com olhos atentos, calado, sem disfarçar uma leve expressão de temor e dúvida. Disperso o assunto, pergunto sobre seus ídolos e ele prontamente responde: “Em quem eu mais me espelho, hoje, é no Daniil Simkin (celebrado bailarino russo do American Ballet, de 19 anos). Gosto muito, pois tenho uma grande semelhança de estilo com ele. Uma bailarina que admiro, até hoje, é Cecilia Kerche (a primeira bailarina do Theatro Municipal do Rio de Janeiro). Foi a primeira grande profissional que me incentivou. Ela me abraçou, disse que eu tinha um grande futuro. Me deu até um cartão com um beijo. Eu tinha onze anos, fiquei em primeiro lugar nessa faixa etária no Passo de Arte e ganhei R$ 150 de prêmio”.
A lembrança do episódio e a con-firmação das profecias de Kerche parecem fisgá-lo de volta à realidade e as palavras finais atestam a ansiedade que vem vivendo: “Estou tenso, desde que tive a notícia. A expectativa é a de que eu vá. Não estou preocupado com nota, colocação. Quero, sim, conseguir uma bolsa, poder me manter lá fora e crescer na carreira.
Na dança do dia a dia, Anderson, aprendeu precocemente que as mais difíceis coreografias, muitas vezes, são aprendidas passo a passo.
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