Levantei muito cedo. Para sair da cama mesmo. Tomei um banho, aparei a barba e me vesti. Agasalhado. Já estávamos no meio do outono.
Na cozinha, meu cachorro esperava. Não sei se por mim ou pelas fatias de queijo que ganha todas as manhãs. Preparei um pão na chapa, passei um café bem forte e comi, com ele ali do lado. Dei um jeito na louça e fui para a varanda esperar. Não havia mais o que fazer. Haver havia, mas nada da mesma importância.
Fiquei deitado na rede, de olho na estrada bem ao longe. Pela poeira, eu veria qualquer movimentação. Os flamboyants floridos alaranjados balançavam com a brisa, e meu cachorro cochilava no capacho à beira da escada. Não sei se ele adivinha as coisas, nem que coisas, o fato é que, de vez em quando, ele se levantava, andava até a rede e olhava para mim. Não dizia nada, claro, mas pensava, suponho. Eu dava um agrado no cangote dele e ele voltava para o capacho. Foram bem umas três vezes.
Talvez em devaneio ou cochilo, me ausentei um pouco. Minutos. Pensei em ler alguma coisa, mas não estava para isso. Segui de olho no horizonte, nada de poeira, nada de barulho, só a copa dos flamboyants ondulando.
Fiquei ali a manhã inteira e nada. Meu cachorro foi dar uma volta e eu fui tomar outro café, para acordar um pouco. Belisquei meu queijo, acertei a ração do cachorro e completei a água. Liguei para a minha irmã. Voltei para a varanda, fiquei ali encostado na murada e, depois, fui sentar um pouco na escada. Fiquei lá um tempo e, por fim, voltei para a rede mesmo.
Continuei de olho na estrada e cochilei. Não sei por quanto tempo. Meu cachorro percebeu que eu havia despertado e veio, outra vez, olhar para mim. Eu não tinha o que dizer e cocei a barriga dele. Ele entendeu.
Levantei, me alonguei um pouco e liguei para os meus amigos. Desci até a porteira – um pequeno exercício – e voltei para a rede. Meu cachorro desceu a escada. Não escutei onde ele foi, deu uma sumida.
Quando começou a escurecer, a pernilongada caiu matando e eu acendi uma espiral, tomei outro café e voltei para varanda. Meu cachorro estava lá, enrodilhado no capacho. Dei uma cutucada nele, fui vestir uma malha mais grossa e voltei para a rede.
A noite já ia alta quando percebi uma luminosidade ao longe, no horizonte. Aquilo me inquietou. Levantei. Era farol de carro mesmo. Sumia e aparecia, vi que descia a serrinha. Meu cachorro percebeu a movimentação e olhou para mim. Já ouvíamos o barulho do motor. Eu disse o nome dela três vezes, ele se agitou muito. Latiu, latiu e disparou escada abaixo. Ficou lá latindo e pulando, louco, até que eu abri o portão.
Ela chegou alegre e agradou o bicho. Perguntou dele e de mim. Eu disse que estávamos muito bem. Havíamos sentido a falta dela. Ela sorriu e me agradou.
Ajudei a carregar as compras para a cozinha. Ela foi logo pondo água para ferver, fatiando umas azeitonas pretas e falando da estrada. Um perigo. Pediu que eu lavasse os tomates e o manjericão. Fui percebendo o carinho naqueles ingredientes e preparei umas torradas com manteiga e orégano. Abrimos o vinho. Ela estava alegre, feliz por estarmos ali desfrutando aqueles momentos. Eu também estava feliz, mas em disfarçada melancolia. Jantamos e depois fomos para a rede. Com a luz apagada, vimos estrelas e conversamos. Cansada, ela dormiu.
Eu não disse nada para ela. Que estive muito preocupado com a possibilidade de interferências do acaso no meu fado, nos meus desígnios, no meu destino. Não no meu próprio, diretamente. Mas no daqueles poucos aos quais minha vida está agarrada. Aos quais estou umbilicalmente ligado. Dos quais afetivamente não posso prescindir. Inclusive meu cachorro.
Na época, não atinei bem. Achei que aquilo tinha sido uma febre passageira. Mas, me enganei. Tem voltado de tempos em tempos, sobretudo nos meses frios. Pelo que dizem, não há cura para isso.
*Engenheiro civil, professor titular da Escola Politécnica da USP. Dedica-se também à literatura.
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