De volta à senzala

Os médicos cubanos que dividiram o Brasil são portugueses, são espanhóis. São médicos argentinos, uruguaios, médicos brasileiros formados no exterior. Não são só médicos cubanos. E dividido o País já estava, diga-se, e pelo jeito assim continuará. 

A atual pancadaria ideológica que, com muita pressa e pouca calma, antecipa o ano eleitoral que nos espera, transformou todos eles em médicos cubanos. De maneira pejorativa. Como se isso tivesse cabimento. Foram chamados de escravos e sua vinda rotulada de ação eleitoreira. Só faltou mandá-los de volta para Cuba para  cortar cana, como diziam por aqui, durante a ditadura  militar, os nossos iracundos e perdigoteiros conservadores, que fizeram abjetos herdeiros. Ignora-se solenemente as necessidades das populações carentes que esses médicos irão atender. Isso, sim, importante. O resto é maldade e mesquinhez provincianas. Na melhor das hipóteses.

De Cuba, pode aquela blogueira. Menos mal que pode também Omara Portuondo e Buena Vista Social Club. Pode Bola de Nieve e Lecuona. Ainda bem. Mas médico não pode. Não pode agora, porque antes podia.

Em dezembro de 1998, um hospital inaugurado em 1995, em Arraias – “um município muito pobre com apenas 12.000 habitantes fincado no Estado do Tocantins” –, começou finalmente a funcionar porque a cidade conseguiu importar médicos “da ilha de Fidel”. Essa notícia, publicada com todo respeito e quase nenhuma ironia, saiu na revista Veja (sim, todo respeito e nenhuma ironia) de outubro de 1999, ano em que Fernando Henrique Cardoso era presidente.

Hélio Campos Mello

Já hoje, os ânimos insensatos liberam linchamentos morais. Desvairados e patológicos como os do Ceará e do Rio Grande do Norte que se tornaram emblemáticos de uma grosseria lamentável.

É constrangedor ver as médicas brasileiras brancas que aparecem vaiando seu colega de profissão negro, cubano, em Fortaleza. Ou o que disse e publicou a jornalista loura, de olhos verdes, de Natal. Leiam e vejam se não é de provocar vergonha alheia: “Me perdoem se for preconceito, mas essas médicas cubanas têm uma cara de empregada doméstica. Será que são médicas mesmo?”, escreveu a moça e publicou nestes territórios perigosos que são o Twitter e o Facebook. “Me perdoem?” Bem, eu não perdoo. E não tenho nenhum preconceito contra moças brancas, louras e de olhos verdes.

É bom lembrar, ou melhor, seria bom que as moças lembrassem o que o senhor aqui na poltrona desta página, fotografado em seu aniversário de 80 anos, em março de 1980, em Apipucos, no Recife, escreveu e publicou em 1933, em seu Casa-Grande & Senzala: “Todo brasileiro, mesmo o alvo, de cabelo louro, traz na alma, quando não na alma e no corpo – há muita gente de jenipapo ou mancha mongólica pelo Brasil – a sombra, ou pelo menos a pinta, do indígena ou do negro”.

E, já que falamos de Gilberto Freyre, nesta edição da Brasileiros estreamos um instigante, alentado e variado caderno sobre literatura. Para cuidar dele, trouxemos Daniel Benevides. Bom proveito. E menos preconceito.


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