“Levei anos para aprender, e só fui aprender nos anos da ditadura, que ter medo não é apenas tremer de medo ou baixar a cabeça – obediente e resignado -, ou dizer ‘sim’ quando quiséramos dizer ‘não’.
Há outro medo, muito mais profundo, que disfarça e não mostra o medo que tem, exatamente porque teme tanto, que tem medo de aparentar medo. É o medo que engendra a omissão, o não importar-se com o que ocorra, ou o não assumir-se em nada.
É um medo-fuga. E é, talvez, o único medo essencialmente perigoso, porque, estando próximo à covardia nos torna cínicos e, como tal, nos destroça.”
(Trecho do livro Memórias do Esquecimento – Os Segredos dos Porões da Ditadura, do jornalista e escritor Flávio Tavares. Flávio foi preso e torturado no Brasil e no Uruguai e conta em sua obra as atrocidades sofridas.)
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Vamos contar a história de pessoas que souberam superar o medo descrito por Flávio Tavares. Dois uruguaios que foram sequestrados, e só não foram assassinados como os outros 180 compatriotas – muitos deles jogados no Rio da Prata – porque o crime estava acontecendo em Porto Alegre e foi alertado para a imprensa que o denunciou. Sequestrados e torturados, Lilian Celiberti, então com 29 anos, e Universindo Diaz Rodrigues, com 27, juntamente com as crianças Camilo, na época com 8 anos, e Francesca, com 3, escaparam da morte para contar suas histórias no livro O Sequestro dos Uruguaios, do repórter Luiz Cláudio Cunha, que recebeu um telefonema em uma tarde de fechamento da edição da revista Veja, em Porto Alegre, no dia 17 de novembro de 1978, denunciando o sequestro. Juntamente com o repórter fotográfico João Batista Scalco, o editor foi ao local e teve uma pistola apontada para sua cabeça e de lá saiu para denunciar mais um terrível capítulo assinado pela Operação Condor, uma rede de cooperação montada pelas ditaduras militares da América do Sul, no intuito de não só trocar conhecimento, intercâmbio de métodos “modernos” de tortura, como também permitir a invasão de território para o sequestro de refugiados.
Morando atualmente em Montevidéu, de onde concederam entrevista para a Brasileiros, Lilian e Universindo continuam tocando a vida com o orgulho de terem colocado a sobrevivência em jogo na busca de uma sociedade mais justa.
UMA VIDA DEDICADA À MILITÂNCIA |
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Sangue frio para pensar nos filhos e também na causa política foi o que Lilian Celiberti precisou ter durante a sessão de tortura nas mãos dos carrascos uruguaios que a sequestraram com Camilo, então com 8 anos, e Francesca, com 3, além de Universindo Diaz. Com toda a liberdade concedida pelos pais para se envolver em questões políticas, Lilian começou a militar aos 16 anos. Em 1968, com 18 anos, já militava no grêmio estudantil. Três anos depois, casada com Hugo Cassariego e com o filho Camilo de 10 meses, a professora do primário foi detida pela primeira vez. “Tínhamos uma situação de semiclandestinidade, não éramos clandestinos, mas sim a organização a que pertencíamos naquele momento, a Federação Anarquista Uruguaia. Detiveram-nos em 1971, processaram meu marido e o mandaram para o cárcere de Punta Carretas. E então, fui viver com meus pais, que me davam todo o apoio.”
Entrou sem medo, com o passaporte oficial. Mas o medo voltou à tona com o sequestro em Porto Alegre. Medo e dor: “Começaram a me torturar imediatamente em uma delegacia, até descobrirem meu endereço em um bolso e me levarem ao apartamento, quando detiveram meus filhos e Universindo”. De lá, foi levada ao Uruguai, onde armou a “ratoeira”, como afirma o jornalista Luiz Cláudio Cunha no livro O Sequestro dos Uruguaios. |
Brasileiros – Universindo, no papel de historiador, conte-nos um pouco sobre as tendências políticas uruguaias.
Universindo Diaz Rodrigues – O Uruguai na primeira metade do século XX tinha uma sociedade pequena, mas muito atenta aos acontecimentos, devido à forte presença de imigrantes. Organizou-se por meio dos setores populares, da intelectualidade de esquerda e dos movimentos intelectuais universitários com uma cabeça aberta ao que se passava no mundo, por exemplo, as Guerras Mundiais e a Guerra Civil Espanhola. Historicamente, podemos dizer que no Uruguai existem quatro grandes vertentes político-ideológicas que atuam fundamentalmente: os anarquistas e suas variantes, os socialistas, o movimento social cristão e, a partir do século XX, os comunistas. Há ainda o “Batllismo” (nome dado a uma corrente do Partido Colorado inspirada em José Batlle y Ordóñes do início do século XX), que teve uma influência muito grande no Uruguai e impulsionou um conjunto importante de reformas, trazendo uma legislação social avançada e isso foi apoiado tanto pelos socialistas como pelos anarquistas. A Revolução Espanhola teve um grande impacto na sociedade uruguaia e muito uruguaio – que foi para as brigadas internacionais – sentiu como se fosse sua a derrota da revolução e dos republicanos.
Brasileiros – E sua família, como eram seus pais, irmãos?
U.D.R. – Meu pai era operário. Somos sete filhos, cinco homens e duas mulheres, da zona norte do Uruguai, Artiga, que faz limite com o Brasil, no Rio Grande do Sul. Essa é uma zona de criadores de gados no Uruguai. Do ponto de vista político e ideológico são muito mais conservadores, com muita influência dos partidos tradicionais, Partido Nacional, Partido Colorado, os setores de esquerda eram superminoritários, não passando de 4% ou 5% das votações. Minha família era colorado-batllista e vivíamos em um Uruguai que sempre teve uma sociedade bastante laica, retirando os crucifixos dos hospitais e dos órgãos públicos. Meu pai não se importava muito com sindicatos. Fui criado nesse ambiente conservador. Mas, quando veio a década de 1960, época dos Beatles e dos Rolling Stones, as lutas estudantis e a presença do chevarismo me influenciaram. Por exemplo, a Revolução Cubana teve muito impacto no Uruguai, levou à divisão entre anarquistas e socialistas, e o surgimento do Partido Comunista. A América Latina estava em convulsão pelas causas sociais e políticas e uma coisa importante que nos marcou muito no final dos anos 1950 foi a luta estudantil e do operariado. Dizia-se: “Operários e estudantes unidos e adiante”. Havia um vínculo muito forte pela construção de uma sociedade solidária, com justiça social e liberdade.
Brasileiros – E quando você se engajou mais na política?
U.D.R. – O ano de 1968 foi emblemático, eu fui morar em Salto, aos 17 anos, para terminar o pré-universitário. Salto, diferentemente de Artigas, era industrial e turística, com mais agitação, assembleias estudantis e sindicais, com presença maior de setores de esquerda. E aí comecei a me interessar pela questão política.
Brasileiros – Em seguida foi para Montevidéu?
U.D.R. – Fiquei em Salto em 1968 e 1969. Em 1970, aos 19 anos, fui para Montevidéu cursar Medicina. Estudei de 1970 a 1975, mas não concluí. Fui para a clandestinidade. Nessa época, o percentual de filhos de operários que entrava na universidade era mínimo. Geralmente, os filhos dos trabalhadores faziam ofícios, ou magistérios, ingressavam nas instituições públicas, nas prefeituras, ministérios ou na polícia e forças armadas. Por sorte, na minha família, ninguém seguiu o sacerdócio nem as forças armadas.
Brasileiros – E você começou a ser perseguido quando?
U.D.R. – Houve uma fuga de presos. Foram 111 presos, muitos deles tupamaros, inclusive o atual Presidente da República, José Mujica, que fugiram do presídio de Punta Carretas por um túnel em 6 de setembro de 1971. Aí, em 1972, as coisas se complicaram muito, houve uma ofensiva militar e, naquele momento, começamos a ocupar posições políticas. E então houve o golpe no Uruguai e passaram a censurar a imprensa. Isso foi imediatamente enfrentado pela Comissão Nacional dos Trabalhadores (CNT), que convocou uma greve geral. De 1964 a 1973, a CNT preparou pessoas para o confronto e chegou a hora, o Uruguai foi paralisado por esses trabalhadores e estudantes durante duas semanas. Então, começaram as perseguições, se incrementaram as detenções e a tortura. Em 1975, fui à Argentina porque estavam me caçando no Uruguai. Lá, participei da formação do Partido Protetor do Povo. Naquele momento, o partido era uma força importante, com presença dentro e fora do Uruguai. Em 1976, houve uma ação dos exércitos e das inteligências da América Latina com o objetivo de desarticular todos os opositores dos regimes ditatoriais, com presença no Chile, Paraguai, Uruguai e Brasil, depois rumaram para Equador e Bolívia. Então, começou a perseguição unificada na América Latina.
Brasileiros – E como você chegou ao Brasil?
U.D.R. – Somente em 1978 fui para o Brasil. Antes, passei pelos Estados Unidos e Suécia. As coisas estavam insuportáveis para os latino-americanos, torturavam e matavam um número impressionante de pessoas. Em 1976, estive em um ato nas Nações Unidas. Algumas pessoas me propuseram ficar, mas eu não ficaria nos Estados Unidos nem em sonho. Depois de voltar para a Argentina, fui para a Suécia em 1977, para um acampamento de imigrantes no sul do país. O governo sueco nos tratou muito bem, como cidadãos do mundo. No meio do bosque, andávamos de bicicleta, íamos de um acampamento para outro Havia muitos chilenos e argentinos. Fomos porque não podíamos ficar aqui, com dor, com tristeza.
Brasileiros – Um tratamento humanitário.
U.D.R. – Sim. Eles ofereciam oportunidade para todos se integrarem na sociedade. Para mim, por exemplo, ofereceram uma bolsa para continuar meus estudos de Medicina e então fui para Estocolmo para aprender sueco. Instalaram-me em um apartamento, me deram todo o apoio psicológico e um carinho tremendo. Todavia, eu já estava com ideia de voltar para a América do Sul, uma ideia fixa. Fui ainda para Paris, onde trabalhei com exilados; fui para a Espanha, viajei alguns meses. No total, fiquei uns nove meses na Europa. Mas quis voltar. Sou uma pessoa de esquerda, não estava ali para estudar e ganhar dinheiro, queria militar pelos uruguaios.
Valeu a pena? Universindo acredita que a democraciaatual se deve à luta coletiva travada na década de 1970 |
Brasileiros – O que falou mais alto?
U.D.R. – A angústia. Nesses anos, as pessoas estavam todas preocupadas, angustiadas com os mortos, os desaparecidos, com a luta. Então, com um grupo de companheiros, decidi voltar para a América do Sul. Como, logicamente, não podíamos voltar para o Uruguai, pois tínhamos de nos manter seguros, fomos para o Brasil. Nessa época, em 1978, o Brasil estava vivendo um processo de abertura democrática. Viemos em um grupo pequeno do Partido pela Vitória do Povo (PVP), com documentos falsos.
Brasileiros – Era uma participação armada?
U.D.R. – Não, essa não era a nossa posição. Chegamos ao Rio com a intenção de passarmos despercebidos e conhecer um pouco, não conhecíamos ninguém. Depois, fomos para São Paulo, onde encontrei Lilian, e, posteriormente, viemos para Porto Alegre.
Brasileiros – E continuaram militando?
U.D.R. – Sim. Mantínhamos contato permanente com os companheiros da Europa e do Brasil e pedimos, caso alguma coisa saísse errada, que eles fizessem algo por nós, para que não ficássemos em uma situação semelhante à dos companheiros na Argentina, que estavam mortos ou desaparecidos. Enviamos uma lista com o nome de pessoas que conhecíamos, incluindo jornalistas e advogados. Aluguei um apartamento com a Lilian e as duas crianças dela, Camilo e Francesca, em Porto Alegre. Mantivemos contato com os uruguaios que viviam aqui com seus familiares, com estudantes, sindicalistas e jornalistas, mas minha família não sabia do meu paradeiro.
Brasileiros – E então aconteceu o sequestro?
U.D.R. – Sim. Em um domingo, dia 12 de novembro. Lilian foi a um encontro na rodoviária e foi presa lá. Eu ouvi um “Você está preso” no momento em que saía com os filhos de Lilian para assistir a um jogo do Internacional, no Beira-Rio, por volta das duas horas da tarde. Eram policiais brasileiros e uruguaios, militares e civis que queriam saber quatro coisas: onde estavam os outros uruguaios no Brasil, começando por Hugo Cores; quais os contatos brasileiros; quem eram os uruguaios no exterior; e onde era feito o jornal clandestino Companheiro no Brasil. Não contei nada do que queriam.
Brasileiros – Isso sob tortura?
U.D.R. – Sim. Eles nos levaram a uma delegacia, me tiraram as roupas e me jogaram no chão. Depois, fui para o pau de arara, do meio da tarde até a meia-noite. Perguntavam-me e jogavam água fria. A Lilian também foi muito torturada, mas também não disse nada. Na mesma noite, fomos levados de volta ao Uruguai. Passando a fronteira, já de manhãzinha, começaram a nos torturar novamente, com as crianças nas proximidades. Até que a Lilian lhes disse que na sexta-feira haveria uma reunião na casa de Porto Alegre e que, se liberassem seus filhos, ela entregaria os companheiros. Eles gostaram disso, pois queriam prender principalmente Hugo Cores. Me levaram com as crianças para Montevidéu e voltaram para Porto Alegre com Lilian. As crianças seriam entregues para os avós, mas demoraram para fazer isso. Fui para um centro de detenção, onde fui torturado e fiquei até o dia 6 de dezembro de 1978. Depois, fui para uma penitenciária, onde fiquei preso até 1983.
Brasileiros – E quanto à Lilian?
U.D.R. – Só bem depois fiquei sabendo que a Lilian armou o encontro e citou uma senha por telefone para um companheiro para alertar que não comparecessem, pois estava detida. E assim Hugo Cores, de São Paulo, avisou o jornalista Luiz Cláudio Cunha, da Veja, em Porto Alegre, que estava havendo um sequestro na Rua Botafogo, 621, apartamento 110, bairro Menino Deus. Só depois que a notícia saiu na imprensa é que entregaram as crianças para os avós. Lilian foi levada de volta ao Uruguai, onde também ficou presa até 1983. Luiz Cláudio Cunha conta tudo isso em seu livro. Uma obra maravilhosa. Ele escreve muito bem, é um poeta, um amigo que nos salvou a vida.
Brasileiros – Você acha que sua luta valeu a pena?
U.D.R. – Acredito que é muito gratificante trabalhar pelo bem do coletivo. Hoje, a América Latina está melhor socialmente em razão das lutas empreendidas nas décadas de 1960 e 1970. E isso que temos hoje, um clima de liberdade, está relacionado com a luta pessoal e coletiva que tivemos. Acredito realmente que valeu a pena. Hoje sou historiador, trabalho na Biblioteca Nacional, tenho um filho também chamado Camilo, com 23 anos, cuja mãe, anarquista, ficou presa durante 13 anos. Eu e os companheiros e companheiras daquela época, sobreviventes, escrevemos livros, fazemos filmes para que não voltem mais tempos tão cruéis.
Brasileiros – E quanto aos torturadores?
U.D.R. – Nós mantivemos todos os esforços para prendê-los. No Uruguai, o presidente civil, Juan Maria Bordaberry, está preso, condenado a 30 anos por ter comandado o golpe, por tortura e desaparecimento de opositores ao regime.
Brasileiros – Vocês foram indenizados?
U.D.R. – Sim, no Brasil e no Uruguai, mas posso te falar, é muito difícil denunciar a polícia. Uma coisa é contar para a minha família que me torturaram e outra é falar para um tribunal que me torturaram e acusar fulano. Mas seguimos solidários na luta, para levarmos todos à cadeia. Os torturadores eram oficiais, pessoas que estavam muito satisfeitas com o que faziam.
Brasileiros – A prisão trouxe alguma sequela para você?
U.D.R. – Considerando o que passamos, estamos muito bem. Existem muitos companheiros que foram assassinados, outros ficaram mal psicologicamente, muitos tentaram o suicídio e alguns possuem lesões da tortura. Temos uma associação que tenta ajudar a todas essas pessoas.
Brasileiros – O que aconteceria se não fosse a intervenção da imprensa?
U.D.R. – Acredito que estaríamos mortos. Os militares teriam nos matado. Penso que estão arrependidos de não terem feito isso. Eu me recordo de um momento em que estávamos presos e um policial dizia: “Por que não matá-los?”. Uma vez que alguém figurava nos registros da inteligência, nunca mais saía dali vivo. Somos uma exceção, graças à imprensa. Uma coisa eu digo para você, não vivo de minha história. Estou conversando com você porque tinha de falar, mas bem ou mal estou estudando a história dos outros, dos uruguaios que lutam com dignidade.
Brasileiros – Você faz parte da história?
U.D.R. – Sim, sim, mas realmente o que importa muito para nós é que se esclareça e que cada um tente, dentro de suas possibilidades, conseguir uma sociedade livre e solidária.
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