Desafios entre as voçorocas

Com um pano velho nas mãos, o sertanejo retira os últimos vestígios de orvalho, deixados durante a madrugada sobre o para-brisa da caminhonete. Na caçamba, além de parte da família, carrega toda a produção de sua pequena propriedade, que será comercializada em mercados públicos e feiras a quilômetros dali. O personagem em questão é Joaquim Ferreira, o Umbilino, como prefere ser chamado o pequeno produtor rural de Gilbués, município localizado a 750 km de Teresina, capital do Piauí. Ele vive em sua propriedade de 110 hectares, no bairro de Enseada, onde produz quase todas as hortaliças comercializadas na região. Suas terras estão localizadas em uma área de vazante, com água o ano todo, dádiva possível graças a uma pequena lagoa existente dentro da propriedade. Com a esposa Osmandina e alguns de seus nove filhos, Umbilino entra no caminhão e se prepara para percorrer os 35 km que o separa do centro da cidade, onde irá vender sua produção no galpão do pequeno mercado municipal – na verdade, um estábulo coberto. Lá, cerca de 30 famílias de agricultores e magarefes (vendedores de carnes) aportam em todas as madrugadas de sábado.

No trajeto até o mercado, o cenário que se avista não é dos mais motivadores. Ali, a terra é uma imensidão árida e ruborizada, não plana, revolvida aos montes, como ondas vermelhas, cortada no cerne até expor seu subsolo. A visão que Joaquim tem, ao se retirar de suas terras férteis e irrigadas, é a mesma da grande maioria dos sertanejos menos afortunados que ele, que fazem de suas janelas molduras para uma paisagem arrasada e seca, que adentra suas plantações e quintais. O processo erosivo de degradação dos solos que se abate sobre Gilbués e outras seis cidades do cerrado piauiense é um problema antigo, afeta a população há mais de seis décadas. Muito já se falou sobre o processo de desertificação nessas terras, mas o tema ainda é tabu na região, evitado ao máximo durante as conversas entre os moradores locais.
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Gilbués, ao lado de Monte Alegre, Corrente e Barreiras, é o maior núcleo de desertificação do Brasil, com um processo degradante que atinge 770 mil hectares, em 7.780 km2. É como se toda a região metropolitana da Grande São Paulo fosse tomada por erosões imensas.

Apesar desse triste cenário, pesquisas recentes mostram que há, sim, riquezas a explorar na região e que o processo degradativo “pode ser controlado e até revertido nestas áreas”, como atesta Adeodato Salviano, engenheiro agrônomo com doutorado em ciência dos solos pela Universidade de São Paulo (USP). Ele é membro-fundador da Fundação Agente, que desenvolve atividades de natureza científica, técnica e educativa nas áreas da agronomia e meio ambiente, e há seis anos acompanha de perto o processo de desertificação de Gilbués. Segundo Salviano, amostras pontuais do subsolo da região apontaram altos índices de minerais e macronutrientes, como fósforo, cálcio e magnésio, interessantes à agronomia. “O problema está na primeira camada da terra, chamada de solo, e que compreende entre 1 m e 1,5 m de profundidade. Ela é extremamente fragmentada e arenosa, retendo pouca água e quase nenhum material orgânico”, explica. Isso causa a falta de liga no solo, deixando-o exposto às ações externas, como as fortes chuvas que acabam por varrer as terras, abrindo fendas que, aos poucos, se transformam em enormes voçorocas, os enormes buracos com até 15 m de profundidade.

O solo é pobre em matéria orgânica, restos vegetais e animais, mas pode ser trabalhado, pois tem recuperação muito fácil devido ao subsolo rico. “Seria preciso introduzir capim, cana ou algodão, entre outras culturas, para aumentar a matéria orgânica do solo. Revegetar as áreas é fator essencial para a recuperação da capacidade de retenção hídrica, maior problema encontrado no solo da região”, explica Salviano. Ele aponta que o simples reflorestamento, em poucos anos, afetaria o nivelamento do terreno, recuperando as áreas esburacadas, pois as voçorocas são frágeis e naturalmente tendem a nivelar-se.

Mas não é só a aparente fragilidade do solo que garante o avanço do processo de degradação. Para atingir o atual estágio de erosão, o solo da região contou com a ação do homem. Durante décadas se desmatou, poluiu e queimou as terras da região, para uso em toda sorte de atividades, mas principalmente a pecuária extensiva, a agricultura familiar e o garimpo de diamantes. Sem contar as enxurradas que caem num curto período do ano, entre os meses de janeiro e abril, e que chegam a medir 1.400 mm, o equivalente a toda a água que atinge a cidade de São Paulo em um ano inteiro.

Uma pequena volta por Gilbués é o suficiente para o visitante observar também a incompreensão e a falta de consciência da população para questões básicas de educação ambiental. As ruas costumam ficar repletas de lixo, amontoado em frente às casas e comércios, às vezes durante dias, à espera de um dos velhos caminhões de carroceria aberta que a prefeitura usa para a coleta pública.

Outro hábito é a queima de lixo nos quintais das casas, sempre à noite. Em muitas manhãs, é comum acordar e se deparar com camas e sofás cobertos de cinzas. “Meu filho, quando chove forte, a água vem desaforada, invade a casa e, se não cuidarmos, leva tudo. Antes não tinha isso, agora até o lixo dos vizinhos entra dentro da minha casa”, conta Ildarci Borges, moradora do bairro Santo Antônio. No seu quintal já é visível a formação de um declive, característica primeira para a formação das voçorocas. Apesar dos indícios claros de que algo não vai bem, boa parcela da população é relutante em aceitar a existência do problema. “Voçorocas? Ah, essas coisas já existiam mesmo antes de eu nascer. Brinquei muito no meio desses buracos quando era ainda uma criança”, diz Turene Mascarenhas, 78 anos vividos nessas terras. Ex-comerciante, Mascarenhas conta que durante muitos anos foi de caminhão até Brasília, onde comprava mercadorias para serem revendidas em Gilbués. Segundo ele, a paisagem já era a mesma, sempre seca e desolada, com os “buracos a perder de vista”.

Mascarenhas se lembra de que em outros tempos a população vivia quase que exclusivamente do garimpo de diamantes. Um ou outro cidadão se fixava à terra, vivendo de pequenas plantações e criação de gado. Após décadas de extração, o garimpo minguou, devido à escassez de diamantes em pequenas profundidades, o que impossibilita sua extração por métodos simples, como os aplicados pelos garimpeiros da região. Desde então, as famílias passaram a adotar a pecuária e a agricultura de base como fonte de renda. Apesar da dificuldade de extração, o garimpo ainda é o lampejo idílico que alimenta a mente do homem do cerrado. A atividade é explorada há seis décadas, e talvez por este motivo tenha criado em alguns a associação com o processo de degradação. “Isso é uma ideia errônea, pois as escavações do garimpo, apesar de agressivas, são muito pontuais e não são extensas o bastante para justificar a situação encontrada na região”, explica Salviano.

Atualmente, o garimpo não representa muito para a economia da região, pois não movimenta o comércio de maneira significativa, nem gera empregos de forma substancial. Muito diferente do que era nos tempos áureos do garimpo, quando milhares de pessoas chegaram a essas terras com o brilho do diamante nos olhos. “O cascalho dava na flor da terra, era só passar a mão e lavar para encontrar as pedrinhas. Quando chovia, era possível ver os diamantes brilhando no chão, no meio da lama”, lembra Herculano Martins de Sousa, o Cula, 85 anos, que veio da Bahia nos anos 1940, tornando-se um dos primeiros garimpeiros da região. “Mas, em algumas situações, a gente tinha de cavar fundo, até 12 m, para encontrar o cascalho e, às vezes, morria muita gente”, conta.

Nos olhos do velho garimpeiro, de voz rija, aperto de mão forte e lucidez de pensamento, pode-se notar mais que a tristeza pela perda dos amigos. Existe uma clausura emocional que é comum aos demais moradores do povoado Boqueirão, antigo eldorado de baianos e migrantes de toda parte, que hoje em nada lembra a pujança de outrora. Havia em Gilbués e no Boqueirão uma estrutura completa de cidade média, bem diferente do que é hoje. Existiam muitos restaurantes, bares, discotecas, hotéis e pousadas, além de um comércio bastante movimentado. José Fernandes, o garimpeiro Ivo, 88 anos, conta que levava uma vida de festas, mulheres e bebedeiras. O saldo de toda essa luxúria foram nove filhos, dos quais somente cinco foram legitimados. Ivo diz que nunca soube ganhar e acumular dinheiro. “Quem lucrava com o garimpo eram os faisqueiros, atravessadores que chegavam a obter 600% de lucro, revendendo os diamantes comprados no garimpo, direto das mãos dos garimpeiros.” Enquanto fala, Ivo aponta para a terra e diz que o maior diamante que encontrou tinha “4,8 quilates”. “O maior que vi alguém achar tinha 14 quilates, parecia uma pitomba”, relembra.

Para velhos garimpeiros, como Cula e Ivo, o destino reservou a mesma e já conhecida sorte do povoado Boqueirão – uma vida isolada e medida em dias empoeirados, tocada com sofreguidão e assistindo da varanda a partida dos moradores mais jovens. Situação não muito diferente é a vivida pelos moradores de Vaqueta, a 6 km de Gilbués. Às portas do povoado, o visitante é recebido por uma enorme voçoroca na estrada, em frente à única igreja do local. No último incidente grave, a caminhonete utilizada no transporte de estudantes chegou a tombar uma das rodas sobre a cratera. “Não morreu ninguém porque Deus não deixou”, diz o produtor rural Manoel Rodrigues, 75 anos, outro velho sertanejo que ainda luta pela sobrevivência nestas terras. “Só tem promessas por essas bandas, mas nunca fizeram nada. E os buracos aumentam junto com as promessas, ninguém acredita mais em solução.”

COMÉRCIO LOCAL
O pequeno mercado municipal do centro de Gilbués, onde os produtores chegam ainda de madrugada para vender suas mercadorias: frutas, hortaliças e carnes

Rodrigues conta que já teve metade de uma de suas plantações tomadas por erosões oriundas do riacho Sucuruiú, que é sazonal e só corre durante o período de chuvas. A microbacia do riacho Sucuruiú engloba boa parte das terras erodidas no município de Gilbués e tem sido alvo de um projeto de revitalização das terras, em uma parceria dos governos federal e estadual, e que conta com recursos da ordem de R$ 2,9 milhões. Segundo fontes da Secretaria de Meio Ambiente do Piauí, as verbas estão liberadas e o projeto foi pré-aprovado, aguardando somente questões técnicas para a aprovação e posterior licitação das obras, que preveem ações de educação para técnicas de manejo de solo, pesquisa e aplicação de culturas ideais à contenção das erosões, além da construção de um viveiro para reprodução de mudas.

Todas as etapas do projeto do governo são de caráter técnico e agrícola, não deixando indícios de uma aposta das autoridades na questão social do problema. Aliás, nem mesmo os políticos locais querem tocar nesse assunto, como se pôde observar nas últimas eleições para prefeito. Se os políticos locais não demonstram interesse pelo problema, cabe aos diretamente afetados a tarefa de alardear suas agruras, mas o preço a se pagar é alto. “Fui muito criticada depois de ter aparecido no programa de televisão. Disseram que eu tinha dito um monte de mentira. Mas eu sou uma mulher da roça e só falo a verdade”, relata Expedita Batista, de 71 anos, moradora de Campo Roçado, zona rural de Gilbués. Expedita refere-se a uma entrevista que deu para um programa de televisão exibido em rede nacional. Nas imagens, ela aparece de enxada na mão, trabalhando a terra ao lado de uma profunda erosão. Logo depois, aparece no fogão a lenha, cozinhando fava. A reportagem relata ainda o périplo percorrido por sua família Brasil afora, com boa parte dos dez filhos vivendo em São Paulo e outras capitais. “Pediram para eu fazer uma simulação de como seria o trabalho na roça, então peguei a enxada e fui mostrar como faz, mas eles filmaram e colocaram a imagem na TV. Na verdade, não tenho o hábito de pegar em enxada, participo mais da colheita, que é mais leve”, diz.

As afirmações de Expedita confirmam uma realidade, a constante visita de jornalistas que transformam sua breve passagem em previsões apocalípticas, como a extinção total da cidade em um prazo de dez anos, veiculada em uma reportagem impressa, fato que, segundo os populares, ajudou muito a espantar investimentos para a região. Até a ausência de operadoras de telefonia celular é justificada pela população como efeito das inúmeras matérias “especulativas”. Fato é que a revolta dos populares e a recusa em tocar no assunto só isola ainda mais a comunidade do problema.

Por outro lado, há aqueles que conseguem encarar o problema de frente e superar os obstáculos. É o caso de Honório Siqueira, um pequeno produtor da localidade Compra Fiado, distante 25 km de Gilbués. Ele resolveu abandonar a vida de comerciante na cidade e engajou-se na pequena propriedade de 12 hectares que adquiriu cinco anos atrás. Hoje, diz que está plenamente satisfeito pela opção que fez, só reclamando da falta de investimentos que facilitariam o escoamento de sua pequena produção, como a pavimentação da estrada em cascalho e a chegada da energia elétrica. Honório produz com facilidade mais de uma dúzia de artigos, como mamão, laranja, acerola, manga, buriti e feijão, colhidos da terra sem a necessidade de correções ou uso de técnicas mais sofisticadas de plantio. Com relação à água, toda a região é abastecida por um denso lençol freático, facilmente alcançado com a perfuração de poços, que chegam a apenas 20 m em algumas regiões. Com exemplos dentro da própria comunidade e a aceitação do problema por populares e autoridades, seria razoável dizer que o problema de Gilbués está mais ligado à questão humana que natural. O velho Turene, que passa os dias relembrando seus tempos de menino, encontra outro motivo para a degradação. “Noto que chove um pouco menos que nas décadas anteriores e que agora faz mais calor. Também venta mais. Mas tem uma vantagem nos fortes ventos, pois vez por outra uma moça de saias é surpreendida”, sorri.


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