Pesadelo é estar embaixo de um desabamento, ouvir o movimento das pessoas procurando por você, tentar gritar e a voz não sair ou ninguém escutar. Pesadelo é um anjo aparecer na sua frente, trazendo alguma mensagem que salvará a sua vida, você vê a boca dele articular as palavras e não conseguir entender ou ouvir. Pesadelo é estar náufrago em alto-mar, nadar, nadar e nadar, e quase ao chegar à praia sentir a câimbra subir pelas suas pernas e desmaiar de dor, afundar quase no raso e morrer. Pesadelo é estar pendurado na beira de um abismo, já sem forças de se segurar e, ao chegar o socorro e lhe estender a mão, escapar e você despencar no infinito.

O pesadelo de Césio Flávio Caldas Brandão e Anísio Ferreira de Souza é como um desses, assim, sem misericórdia. É acordar um dia com a polícia na sua porta, levando-o preso, algemado, olhar para trás e ver sua família tão estupefata quanto você, enquanto diz a eles: “Calma, deve ser um engano, tudo vai se esclarecer”. É ser jogado em uma cela, ajoelhar e rezar para que alguém venha e diga: “Calma, o advogado já vem vindo, vamos desfazer esse engano”. É não ter as respostas certas e assistir à situação se avolumar, se complicar, circunstância depois de circunstância. É andar em círculos para explicar o que não fez, sem ter como provar o que fez. É ser arrastado pelos corredores da lei assim, aos trambolhões, desacreditado, vendo a mentira dos outros crescer sem fim, sem lógica, crível aos olhos de quem não lhe conhece, marchando duro e pisando nos detalhes que você tenta aclarar.

Pesadelo é ver seus amados lhe olharem com dúvida, seus filhos serem xingados na escola, sua mulher ser arrastada na lama de uma mentira que, como uma imensa parede de tijolos, vai sendo erguida entre você e o mundo lá fora. As pessoas lhe atiram na cara teorias e estão tão convictas que até você mesmo se pergunta: “Será que enlouqueci? Será que fiz e não sei? Como isso pode estar acontecendo?”.

Pesadelo é querer acordar, se debater e não conseguir, tentar puxar o ar que não vem. É assistir à sua chegada a um julgamento popular e ver os ônibus parados na porta, cartazes erguidos pela sua condenação, encarnações do bem pedindo a sua cabeça aos gritos e, antes que você possa se explicar, a leitura da sentença lançada em alto-falantes, condenando-o pelos anos que restam ao anonimato de um porão escuro e cheio de formigas. Esquecido.

E então você se ajoelha e reza para que, depois de tudo ter falhado, apareça o verdadeiro culpado, o verdadeiro algoz, única forma de acreditarem em você. E seus joelhos já estão sangrando de tanto pedir por um milagre, quase impossível de acontecer, e você se arrasta ainda acreditando que, quem sabe, a mesma polícia que não funcionou nada para você, funcione exemplarmente e encontre o autor dos crimes que você não cometeu. E por mais impossível que esse final feliz fosse possível, aparece a notícia de que ele foi encontrado e contou, ponto a ponto, a verdade de seus crimes. Sim, o real assassino deu detalhes de onde encontrou cada menino, das roupas que vestiam, da conversa que manteve com eles, de como mutilou e arrumou seus corpos mortos, de que rituais usou, suas últimas palavras. Sim, o assassino foi condenado, ficou tudo provado, a verdade resgatada. Pronto, que felicidade, agora sim a verdade apareceu, agora todos vão saber a injustiça que cometeram, os anos que você perdeu, os amores que deixou passar, seus filhos que não viu crescer, mas não faz mal, porque finalmente todos ouvirão e saberão, e você vai poder de novo participar da vida, vai erguer a cabeça, vai reencontrar os poucos amigos que lhe restaram, vai pescar, vai sentir o vento bater em seu rosto em liberdade. Vai sorrir, se puder se lembrar como se faz. Vai ser reconhecido como inocente, palavra doce agora em seus lábios. E vai reencontrar a fé, em Deus e no homem, dentro de você.

E qual não é o seu espanto quando o silêncio se perpetua, nada acontece, ninguém vem até sua cela resgatá-lo, ninguém diz nada. Você grita e as pessoas não escutam, o silêncio atordoa, confunde, nocauteia. E, com sua última energia, você conta novamente sua história, se agarra no acreditar. Conta tudo de novo, dessa vez em palavras escritas, em papéis jurídicos feitos por advogado mais que respeitado, santo anjo que o atendeu de graça apenas para ver exercido o direito de um simples indivíduo. Dessa vez será ele ouvido, porque é profissional de respeito, não foi duvidado, não foi condenado, tem o saber, vai ser ouvido porque os juízes são justos, especiais, eles não ouviram antes, mas certamente lerão.

E já sem forças, recebe a notícia de que seu pedido para ser novamente julgado foi negado. Sim, você já nem pedia mais que fosse decretada sua sumária inocência, só pedia para que a turba tivesse a chance de julgá-lo outra vez, agora levando em conta as palavras do verdadeiro assassino. Não diz a lei, no art. 621, inciso III, primeira parte, do Código de Processo Penal, que é legítima a revisão dos processos findos quando, após decisão final, forem descobertas novas provas de inocência do condenado? Afinal, os sete jurados que o consideraram culpado sequer imaginavam que havia um assassino que morou na sua cidade, à época dos crimes, que prosseguiram acontecendo em outro Estado no local onde ele fixou nova residência. Os sete jurados que o condenaram também deveriam ter a chance, mesmo que representados por outros, de rever o caso todo. Esse é o direito de qualquer ser humano, que a Lei seja seguida, que seus direitos sejam mantidos. Está no Código Penal, não está?

E então entra a sua família pela porta da cadeia, em visita fora de hora, e ele os espera cheio de esperança, sorrindo por dentro, porque não pode, pela lógica e pela lei, haver outro resultado. E seus joelhos dobram ao perceber os rostos de quem ama transpirando desespero. Seu pedido de revisão criminal foi negado, com argumentos jurídicos que mantêm camuflados os erros anteriores que esses “profissionais infalíveis” não querem admitir ou expor. E seu caso novamente vai criar teias de aranha à sua volta. Todos têm assuntos novos e nobres para cuidar, antes de mexer em espinheiros perigosos. E a voz do povo nem vai lembrar.

Césio Flávio Caldas Brandão e Anísio Ferreira de Souza foram condenados a 56 anos de prisão em setembro de 2003, pelo assassinato de alguns dos meninos emasculados do Pará. Sempre juraram inocência. Em dezembro de 2003, Francisco das Chagas Rodrigues de Brito foi preso e confessou ter cometido aqueles crimes, além de outros 30, totalizando 42 meninos assassinados e emasculados, no Pará e no Maranhão, e de três crianças mutiladas que sobreviveram ao impensável. Os outros condenados por esses crimes no Pará, Amaílton Madeira Gomes e Carlos Alberto Santos de Lima, já morreram, com o rótulo de assassinos pregados no peito. Césio e Anísio? Estão até hoje presos, aguardando um dia que nunca virá. O que posso dizer? Que a luta tem de continuar, não apenas por eles, mas por nós mesmos, pela garantia de nossos direitos neste País.

Nós, repletos de liberdade e banhados pelo Sol de cada dia, ficaremos aqui fora discutindo filosofias, leis, direitos e deveres, garantias legais e erros distribuídos a granel pelo nosso sistema de justiça cheio de mazelas.

O tempo passa inexoravelmente, deixando suas marcas como que tatuadas na pele. Isolados, perdidos, cheios de desesperança, solidão, tristeza, desespero e revolta, Césio e Anísio vão descansar no chão imundo de suas celas nojentas, deixando que as formigas entrem por seus ouvidos antes mesmo que morram.


Comentários

2 respostas para “Desesperança”

  1. Avatar de Laercio Pachêco
    Laercio Pachêco

    Cresci aprendendo que na justiça o vale são provas e que a justiça é justa, e agora o que devo pensar, em que devo acreditar, como devo agir, em que devo confiar…o que devo fazer?

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