Dia de festa no mar

Quem já esteve em Salvador em fevereiro sabe que ali se celebra uma grande festa, imortalizada nos versos de Caymmi: “Dia 2 de fevereiro/dia de festa no mar…/Eu quero ser o primeiro/a salvar Iemanjá!“. Nessa data, toda a área próxima à Colônia Z1 dos pescadores do Rio Vermelho, ao lado da Casa do Peso e da pequena igreja de Santana, é tomada por milhares de pessoas que festejam Nossa Senhora dos Navegantes, levando presentes para a Mãe d’Água, a quem pedem a bênção e proteção.

Flores, perfume de alfazema, sabonetes, pentes e espelhos, bijuterias e até bonecas enchem grandes balaios de palha e barquinhos artesanais, tudo para ser oferecido à vaidosa moça que é Rainha do Mar… Os pescadores da colônia preparam-lhe o presente principal, talvez a escultura de uma coroa rodeada de flores ou a estátua de uma sereia negra encomendada a um artista local… Desde a madrugada, os balaios recebem as oferendas que, depois, serão conduzidas em um cortejo de centenas de barcos até alto-mar, para que ali sejam “arriadas” para Iemanjá. Se tudo afunda nas águas, é sinal de que Mamãe Sereia aceitou os presentes e dará a todos pesca abundante e bom tempo, no sentido próprio ou figurado das palavras… Explodem os fogos, os vivas e as saudações rituais, enquanto os berimbaus dos capoeiras e o samba de roda do Recôncavo fazem a alegria da festa de largo que toma o lugar.

Um turista se espantará com essa profusão tão brasileira de símbolos que misturam deuses africanos e devoção cristã. Pois na Bahia também se festeja Iemanjá com Nossa Senhora da Conceição da Praia, padroeira de Salvador, celebrada em 8 de dezembro, na bela igreja da Cidade Baixa. É então que os pescadores da Pedra Furada, ali bem próximo do Bonfim, organizam a festa para oferecer seu presente à Rainha do Mar. Também no Rio de Janeiro, Santos, Recife, Porto Alegre, Pelotas ou João Pessoa celebra-se Iemanjá em dia de outras festas de Nossa Senhora ou a 31 de dezembro, quando se levam flores ao mar e se pulam sete ondas, para deixar para trás os males do ano que finda e atrair prosperidade para o que se inicia. Nada há de estranho, porém, nessas confluências devotas, que revelam marcas profundas de nossa história. O sincretismo foi apenas o modo pelo qual índios e africanos, reduzidos à escravidão, buscaram entender, a partir de referências de suas próprias culturas, uma fé que lhes foi imposta na violência da colonização. Daí ser Nossa Senhora – dos Navegantes, da Conceição, das Candeias – identificada às Iabás dos cultos nagô, em especial Oxum e Iemanjá. São identificações que variam, dependendo das circunstâncias locais e distintas tradições que produziram a fusão dessas imagens. Mas um mesmo imaginário de longa duração histórica aproxima dessas divindades representações arcaicas da Virgem, associada à água de lagos, rios, mar, ao brilho do sol ou ao clarão da Lua Cheia, na figura da Senhora rodeada de luz ou coroada de estrelas. Esta é a imagem da Iemanjá saída das águas, longos cabelos negros, túnica que revela um corpo sensual e, ainda assim, semelhante à Nossa Senhora das Graças, em suas suaves feições de mulher branca, mãos espalmadas a derramar raios de luz, bênção de estrelas. Um sincretismo que se acentua em outra versão das religiões de matriz africana, a Umbanda, que já nasce da intenção de produzir fusões – afro, católicas, kardecistas – em uma religiosidade propriamente brasileira. Iemanjá-sereia é também a Mãe d’Água ou a Yara das lendas da Amazônia. Inaê, como também é chamada, provavelmente reflete a imagem de uma cabocla do rio, e Janaína, outro nome seu, dispensaria etimologias africanas, referindo-se a um imaginário ibérico de Anjanas, da Cantábria, e Janas, portuguesas, pequenas fadas dos rios ou dos bosques transformadas em Dona Janaína.

Tantas imagens… Uma só ou muitas Iemanjás? Em Cuba, onde a devoção a Iemayá é tão popular quanto no Brasil, Lydia Cabrera esclarece que, havendo um só orixá, há, porém, múltiplos caminhos que revelam seus aspectos. Seus nomes falam de sutis qualidades das águas ou dos lugares onde elas se encontram, onda que avulta na tempestade, água escura de loca em fundo de mar, espelho d’água sereno de lagoa da floresta ou delicada espuma que se desmancha na praia. Sobre essas figuras se contarão mitos de um tempo em que os orixás transitavam entre Aiê e Orum, como ainda fazem quando os atabaques os chamam para dançar entre os mortais. E Iemanjá é divindade muito antiga nesse tempo da criação. Conta-se que, nos primórdios do mundo, ela gerou dez filhos que receberam nomes simbólicos e se tornaram orixás: Oxumaré, o arco-íris, aquele que se desloca com a chuva e retém o fogo em seus punhos; Xangô, o trovão, aquele que se destaca com a chuva e revela seus segredos… Assim também se multiplicaram as feições de Iemanjá; Yemowô, mulher de Oxalá; velha Assobá a fiar seu algodão; Iyá Ori, “mãe da cabeça do mundo”; Iyamassê, mãe de Xangô; Olossa, lagoa africana ou, na Bahia, a do Abaeté; Iemanjá Ogunté, esposa guerreira de Ogum Alagbedé; voluntariosa Assessu, mãe de Exu; jovem Assobá a fiar seu algodão; ou ainda, tal como Oxum Opará, a senhora de duas águas, onde o rio encontra o mar.

Sob tantas invocações, é difícil ver em Iemanjá apenas a Grande Mãe generosa que a todos acolhe. Generosa a ponto de criar Obaluaiê, quando Nanã o abandonou, por conta da varíola que devorava seu corpo frágil. Mas autoritária o bastante para mandar Ogum buscar Oxóssi na mata, quando Ossaim, que sabe o segredo das folhas, o enfeitiçou, inebriado pelo vinho de palma, e ele não mais quis abandonar seu convívio. O poderoso Ogum, senhor do ferro da espada e do arado, não conseguiu convencer Oxóssi a voltar, e então sua mãe o expulsou, punindo-o pelo fracasso, para, logo depois, arrependida, cair em prantos, derramando um lago de lágrimas que se juntaram às águas do mar… São enredos que vão tecendo histórias de deuses africanos, que só aprendemos aos poucos, ao ouvi-las contar e cantar nos terreiros…

Quanto à Iemanjá das águas do mar, esta não é sua face africana primeira. Pierre Verger, que tão bem conhecia os orixás, conta que, na África, eles sempre foram divindades territoriais, associados a lugares específicos, protetores do povo local. E Iemanjá se associa a um rio de mesmo nome, em antigo território do povo Egbá, entre Ifé e Ibadan, no Benin. Quando as guerras entre os nagôs levaram o povo Egbá a se mudar para a região de Abeokutá, para lá ele não pode transportar seu rio Iemanjá, mas levou seus objetos rituais para junto de outro rio, Ogum, que é a base territorial de seu culto na África e também de suas variações, sob as mais diversas invocações. A ligação com o mar vem de um mito específico dessa divindade a quem se saúda como “Odô Iya“, “mãe do rio”, e cujo nome – Yemojá, Yemaya, Iemanjá, derivado de “Yeyê Omo Ejá” que significa “mãe cujos filhos são peixes”, a sinalizar a abundância e a prosperidade que ela carrega.

Conta esse mito que Iemanjá, filha de Olokum, senhora do mar, se casou em Ifé com Olofim-Oduduá, a quem deu os dez filhos que se tornaram orixás, e foi por amamentá-los que viu seus seios imensos se tornarem flácidos e pendentes. Com o tempo, ela resolveu partir para a terra onde o sol se põe, em Abeokutá. Lá, sua beleza de mulher madura encantou o rei Erinlé, que resolveu desposá-la. Iemanjá aceitou, com a condição de que jamais mencionasse seus grandes seios caídos. E assim sucedeu, até que um dia o rei, voltando ao palácio embriagado, sem saber o que fazia, tropeçou em Iemanjá que, enraivecida, o chamou de bêbado inútil. E então ele a insultou, falando de seus grandes seios pendentes. Ofendida, Iemanjá decidiu fugir de volta para casa e, ao correr, derrubou uma pequena garrafa recebida de sua mãe, com a recomendação de quebrá-la caso se visse em perigo. Ao partir-se a garrafa, logo um rio se abriu aos seus pés, por onde Iemanjá poderia voltar para o reino de Olokum. Erinlé a perseguiu e, com seus poderes mágicos, passou a erguer montanhas para barrar o curso do rio, até que Iemanjá se lembrou de pedir auxílio a seu filho Xangô que desatou as cordas que amarravam as águas no céu e fez chover até que o rio chegasse quase ao topo da montanha. E então, tomando o raio de que é senhor, Xangô partiu ao meio a montanha, e pela fenda se escoou a torrente que levou embora Iemanjá. Desde então, ela não mais quis retornar à terra e é nas águas do mar que vive com Olokum.

Essa é a Iemanjá que se festeja no dia 2 de fevereiro. E se suas muitas histórias podem parecem contraditórias, é preciso não esquecer que elas são fragmentos de culturas estilhaçadas, fiapos de memória resgatados ao terror da escravidão, a nos lembrar do quanto a cultura brasileira deve sua riqueza a nossas heranças africanas.

*Maria Lucia Montes é antropóloga, com estudos em Cultura Afro-brasileira e lecionou na Universidade de São Paulo por 24 anos.

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