Diário de um artista do mundo

São Petesburgo, Rússia (julho 2004)
Numa cidade repleta de cúpulas cobertas de ouro, a mesquita de dois minaretes e um gigantesco domo de azulejos azuis, à Bukahra, é um símbolo não só de uma almejada ou pretensa tolerância religiosa como um marco da vastidão do império czarista. Cheguei ao cruzador Aurora pelo outro lado do rio, e me preparei psicológico-emocionalmente para visitar uma parte do século XX e reverenciar criticamente uma de suas realidades complexas mais determinantes. Para meu espanto, as pessoas entram sem cerimônia tombadilho adentro, não há bilhetes de entrada ou controle de pessoas: simbolicamente a Revolução ainda pertence a todos. O cruzador obviamente não se move mais, flutua muito bem agastado por gigantescas pinças de aço presas à margem, todo o resto original, todos os bronzes muito bem polidos, tudo extremamente limpo. A maioria absoluta dos visitantes desta relíquia naval são russos homenageando a sua própria história.

Sicília, Itália (setembro 2007)
Sobrevoando a ilha nota-se um solo agreste, seco, marron-cinza, onde a grande quantidade de reservatórios de água tipo açude do Nordeste deixa evidente a estiagem a que a geografia local está castigada. Já em terra, na região de Catânia, surpreende que quase a totalidade do campo possível esteja cultivado, o que torna ainda mais contrastante a existência de inúmeras casas abandonadas e com janelas muradas no meio das plantações. Enigmas. Algumas horas depois a água mediterrânea se afirma como sedução irresistível, apresentando um tal quilate de pureza que até as almas mais perversas como quiçá a minha, suplicam para aí serem lavadas. Clamores. Taormina vive de uma fama que não condiz com sua realidade. Cidade turística no pior sentido que o século XX produziu, suas parcas ruínas não justificam o preço dos sorvetes que aí se toma. O teatro grego, sim num sítio estupendo, deve ter sido a tragédia dos atores da Antiguidade Clássica tal o potencial de distração que o panorama implica, tornando qualquer encenação supérflua e desnecessária. Quanto ao renome de meca gay, nem mesmo o mais perseverante dos desejos é suficiente para encontrar inexistentes bares ou endereços de putaria.

Riga, Letônia (junho 2009)
No grande mercadão que existe no antigo campo de pouso do Zeppelin, vende-se de tudo e mais alguma coisa, a exemplo de roupas, tapetes, legumes, shampoo, objetos de jardinagem, papel higiênico, melancias, alpiste ou peixe. Apesar da abundância e variedade da oferta, tem-se no entanto a impressão de algo pobre, mofado e chego a ficar na dúvida se os sapatos oferecidos nas toscas prateleiras já não foram usados por alguém. A miséria pós-comunista é visível e palpável no triste espetáculo de mulheres velhas enfileiradas uma ao lado da outra, cada uma vendendo o que tem ou o que sobrou de dias melhores : anáguas, estolas de pele já rotas, casacos, relógios. Como essas pessoas não têm quiosques, nem provavelmente eira nem beira, ficam de pé com a mercadoria e a oferecem com as mãos erguidas, num gesto evidente de mendicância. Ao lado desta feira livre, o edifício da Academia de Ciências também começa a cair aos pedaços, mas eu deixo claro que não tenho nenhuma simpatia por esses marcos exportados da arquitetura stalinista, propositadamente repetindo nos Estados satélites, com formas retrógradas construídas na Moscou dos anos 1950.

Trieste, Itália (setembro 2009)
Trieste: non-place or cross-roads? A cidade encravada na montanha, banhada pelo Adriático, à vista da Eslovênia e da Croácia, não é nenhum nem outro, muito pelo contrário: um mosaico torto de povos e culturas que por aqui passaram e calcaram em sua atmosfera a aura do impalpável e uma nostalgia de exílio perdido. A sua história-estória já começa com névoas lendárias e fabulosas, uma delas dizendo que Trieste foi fundada por um filho de Noé, e outra, por um companheiro argonauta de Jasão. Tenho dúvidas da própria existência da arca bem como do velocino de ouro, e fico com o fato de que os romanos tinham aqui o entreposto comercial de Tergeste já em 178 AC. Invasões de godos, bizantinos e lombardos foram mudando a feição humana do lugar até 1202 quando os odiados venezianos se apossaram da possível rival. Para escapar a seu jugo os triestinos se ofereceram voluntariamente como vassalos à tutela austríaca, de longe sua mais marcante herança histórica: os Habsburgos aí reinaram de 1382 a 1918.


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