Depois de duas semanas de trabalho com crianças e adolescentes que vivem em campos de refugiados em Zahko, no Iraque, o brasileiro Reinaldo Nascimento se despede do grupo de voluntários que, como ele, fazem parte da associação alemã Freunde der Erziehungskunst Rudolf Steiner (Amigos da Arte de Educar de Rudolf Steiner), e dos amigos que fez durante esta temporada no país.
Esta foi a quarta vez que Nascimento esteve no Iraque para conviver com jovens que passaram por traumas psíquicos e ensinar cidadãos locais a trabalhar com a Pedagogia de Emergência – por meio de brincadeiras e atividades artísticas, como desenhar, cantar e dançar, eles possam expressar seus sentimentos sem, necessariamente, falar a respeito deles.
Apesar de essa equipe ter ficado em Zahko, a 80 km de Mossul, a associação Amigos da Arte de Educar, que conta com cerca de 400 voluntários, também atua e em locais que passam por grandes catástrofes naturais.
Mossul é a terceira maior cidade iraquiana depois de Bagdá e Basra, que foi capturada pelo Estado Islâmico em 2014. É a peça mais importante no califado que o grupo terrorista tenta implantar com a ocupação e consequente eliminação de fronteiras de parte da Síria e do Iraque.
A tentativa de retomada do controle da cidade por uma coalizão de forças oficiais iraquianas vindas de Bagdá, de soldados do Curdistão baseados em Erbil e de milícias xiitas apoiadas pelo Irã, com o apoio aéreo e logístico norte-americano, faz da cidade o palco de uma guerra sangrenta.
Campos de refugiados, a poucos quilômetros de Mossul, crescem aceleradamente. Entre as vítimas do conflito, milhares de crianças e adolescentes que sofrem opressões étnicas, vivenciam a guerra e são torturadas. Algumas são usadas como soldados.
Cofundador da Associação da Pedagogia de Emergência no Brasil, que capacita educadores que atuam no Brasil para lidar com crianças em situação de vulnerabilidade social, Reinaldo Nascimento, 38 anos, escreve hoje o último relato do diário Pedagogia de Emergência em Zahko
O retorno para São Paulo
Mochilas e malas prontas. Coletes e capacetes embaixo dos nossos assentos. Tudo preparado. Café tomado, dentes escovados. Hora de se despedir do pessoal do hotel que durante duas semanas realmente se tornam integrantes da nossa família. Alguns nos dizem que todas as suas orações será para que a nossa viagem seja tranquila e para que o reencontro com as nossas famílias seja bonito!
Mas a despedida mesmo foi a de ontem. Todos nos reunimos num hotel para um jantar e para dançarmos. Como esse povo dança!
Tempo para conversar com mais algumas pessoas. Muitos de nossos colegas, como já escrevi, vivem nos campos. Muitos se esforçam para continuar a vida. Como também escrevi antes, alguns estão voltando para a escola. Outros tentando a universidade. Outros, porém, estão perdidos. Para alguns, ter que deixar suas casas, suas terras, suas criações foi duro demais.
Aleah é uma querida. Sempre buscando o melhor para as crianças. Está sempre querendo aprender mais para que eu as crianças tenhamos o melhor. Mas ela mesma não está conseguindo se cuidar. Eu a observo durante as rodas de conversa e muitas vezes ela deixa a nossa terra. Realmente some. Dissociação. E quando volta, muitas vezes desmaia.
Ontem, sentamos juntos e ela começou a me bombardear de perguntas: Por que falo alemão? Por que deixo o meu país para trabalhar voluntariamente com as crianças do Iraque? Por que e mais por quê? Tentei responder com calma. Num certo momento, ela me diz que odeia o Iraque, que odeia a cidade onde nasceu, que odeia o campo e tem muitas dificuldades com sua família. Gostaria muito de ir embora e nunca mais voltar ao Iraque.
Eu sei que muitos, no Curdistão-Iraque. gostariam de ir embora. Muitos sonham com os Estados Unidos da América. Mas poucos têm coragem de assumir isso. Aleah não conseguiu terminar os estudos e sente falta do aprendizado. Sente falta de ter uma vida “normal”.
Passei muitas vezes pelo campo. Tudo mudou nesses dois anos. Há de tudo. Feira, lojas de roupas, de celular, locais para tomar chá. Muitos moradores desses campos conseguiram trabalho nas cidades próximas. Muitos poderiam voltar para suas cidades, pois em algumas delas o Exército conseguiu expulsar o Estado Islâmico. No entanto, a maioria tem medo de que tudo possa acontecer novamente. As histórias que as pessoas contam sobre o que o Estado Islâmico é capaz de fazer são realmente de arrepiar.
Só pude prometer a Aleah de que a ajudaria com os estudos, caso ela queira voltar. A Pedagogia de Emergência tem apoiado muito os colegas que querem terminar a escola. Seja com a flexibilidade no horário de trabalho, com matérias, etc.
Ashia ainda não voltou ao trabalho e fiquei sabendo que ela ainda está sofrendo com a perda dos sobrinhos. Ela também sabe que pode contar com o nosso time!
Abraços, muitos beijos, muitas fotos… Mais abraços, mais beijos, mais fotos. Selfies sem fim!
…
Amanheci com a garganta, a cabeça e o peito doendo! E quase não tenho voz. Estou gripado! O caminho para o aeroporto foi tranquilo. Como não tenho voz, pude apreciar as montanhas, os vilarejos, o contraste entre riqueza e a miséria extrema. Eu me sentia em casa!
O difícil era ver as placas indicando a cidade de Mossul. O que será dessa cidade, das crianças? Como será que está Manah?
…
O controle no aeroporto foi pesado. Como há poucos viajantes e pouco o que fazer, eles aproveitam para mexer nas mochilas. Tenho certeza de que fui controlado somente por ser brasileiro. Até o chefe da policia veio pegar na minha mão e dizer que adorava o meu país. Mesmos sem voz, perguntei o que ele tanto adorava. Ele só conseguiu dizer “tudo”. Mais um aperto de mão e antes que ele me pedisse para fazer selfie com ele, fui para o meu portão.
Aqui no avião, está tudo tranquilo. Poucos passageiros. Como na ida, a maioria é jornalista ou pessoas de organizações de ajuda humanitária.
Muita turbulência. Daqui a pouco chegaremos a Viena e de lá me despedirei do time. Alfred continuará para Zurique, Charlote vai para Munique, Gabi vai para Stuttgart, Minka e Elisa vão para Hambugo e junto com a Raphaela vou para Karlsruhe para guardar todos os materiais.
Depois embarco para São Paulo e de lá torcer para que as coisas no Iraque tenham um rumo melhor do que se apresenta hoje! Hoje, a situação para milhões de pessoas é de incerteza e insegurança. Crise financeira, crise existencial.
Quero agradecer à revista Brasileiros por ter me feito o convite para escrever este diário. Nem sempre foi uma tarefa fácil para mim. A verdade é que não foi uma tarefa fácil para mim. Mas consegui e estou orgulhoso. Como vocês perceberam, não sou jornalista.
Obrigado pelas mensagens, pelas perguntas, pelo o apoio e se você leu até aqui, feche os olhos por alguns segundos e pense no sorriso de uma criança!
Um forte abraço e tudo de bom!
Reinaldo Nascimento
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