Ninguém sabe como o menino conseguiu chegar ao campo. Dizem que está machucado e “doido”. Fala de morte o tempo todo. Quem conta essa história é Reinaldo Nascimento, o único brasileiro de um grupo de oito voluntários da associação alemã Freunde der Erziehungskunst Rudolf Steiner (Amigos da Arte de Educar de Rudolf Steiner), que atua em campos de refugiados em regiões de conflito e em locais que passaram por grandes desastres naturais.
Nascimento está em Zahko, no Iraque, há quase duas semanas. Está em missão em campos de refugiados para atender crianças e adolescentes vítimas de traumas da guerra.
Zahko fica a 80 km de Mossul, cidade capturada pelo Estado Islâmico em 2014, que é a peça mais importante no califado que o grupo terrorista tenta implantar com a ocupação e consequente eliminação de fronteiras de parte da Síria e do Iraque.
Campos de refugiados crescem aceleradamente na região. Entre as vítimas do conflito, milhares de crianças e adolescentes que sofrem opressões étnicas, vivenciam a guerra e são torturados.
Paulistano, Nascimento, de 38 anos, é cofundador da Associação da Pedagogia de Emergência no Brasil, um grupo organizado que capacita educadores que lidam com crianças e adolescentes em situação de vulnerabilidade social, muitas vezes traumatizadas pela violência da guerra não declarada das periferias das grandes cidades.
Zahko, 15 de novembro de 2016
A fumaça não para de chegar ao campo. Os olhos ardem. A boca seca, a garganta arranha e só fiquei duas horas no campo Chamishku. A molecada chega tossindo de manhã. Os professores ficam “raspando” a garganta durante todo o seminário.
É impressionante como ainda nada foi feito. É impressionante como permitem a construção de um campo ao lado de um local assim.
Em três dias, voltarei para casa e, mesmo sabendo que o ar de São Paulo não é o melhor do mundo, sei que estarei melhor do que aqui. É uma loucura…
Hoje, fui convidado para passar um ano aqui. Deveria me sentir lisonjeado e me senti, mas depois de dois minutos fiquei pensando na loucura que esse convite na verdade é. Como passar um ano respirando um ar desses. Essas pessoas precisarão de médicos especialistas e não mais de pedagogos em poucos meses.
Mas o convite me foi feito para implementar e coordenar o trabalho com os jovens. Seu eu fosse pensar somente neles, aceitaria na hora. Todos os dias, eu me desespero com a situação desses jovens… Uma falta de perspectiva que assusta! Claro que muitos vão parar no Exército já que a única opção que lhes restam. Uma covardia!
…
O que salvou o meu dia e salvou mesmo foi a pequena Djoanna. Linda! Um sorriso enorme. Uma simpatia. Ela chegou toda arrumada com uma blusinha amarela. Quando me aproximei, vi que era um uniforme infantil da Seleção Brasileira. Usar camisas de times de futebol é muito comum entre as crianças e jovens daqui como no mundo inteiro.
Na segunda vez que estive no Iraque havia muitos jovens e crianças usando camisas com o nome do Ronaldinho Gaúcho. Isso fez com que meu nome passasse de Reinaldo para Ronaldinho. Hoje, é o Neymar que estampa as camisetas. Quando ficam sabendo que sou do Brasil, querem saber se conheço o Neymar, o Ronaldo ou o Ronaldinho. “Não. Só os conheço como vocês. Pela televisão.” Certo desapontamento em seus rostos. “Mas você é brasileiro!”
Um garoto me fez prometer que se, um dia, me encontrasse com um dos três, eu lhes entregasse um abraço.
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Hoje foi também o último dia de seminário para os 38 professores. Todos estavam superorgulhosos pelos certificados e esperam ansiosos pela nossa volta em janeiro e março. A maioria está sofrendo! Muitos estão doentes. Estômago, rins, dores de cabeça, diarreia e outros sofrem a dor de não poderem voltar para suas casas. De não saberem como estão suas filhas. Suas esposas…
Um senhor nos explicou que um garoto de 10 anos conseguiu fugir do Estado Islâmico. Chegou sozinho. Sem família. Ninguém entende como ele conseguiu chegar. O que eles sabem é que o garoto não está nada bem. Ele ficou nove meses com os terroristas. Está bem machucado e “doido”. Fala o tempo todo com seu melhor amigo invisível. Não consegue sair de casa. Não consegue dormir direito. Quando dorme, acorda do nada gritando e assustando os outros da casa. Fala de morte o tempo todo!
Estar na frente desses professores é algo grandioso! Hoje, pedi para Minka dar a palestra sozinha. Não tive coragem e nem força! Assumi toda a parte rítmica do seminário. Consegui realmente fazer com que todos “brincassem” e cantassem comigo por uns dez minutos. Alguns não conseguiam se mexer de tão duros que estão! Outros vieram me agradecer no final. “Oh, cabeludo, não sabia que poderia voltar a dar risadas como dei esses dias. Quando você chegou, três dias atrás, te achava mais louco do que eu, mas ontem a música que você me ensinou não saiu da minha cabeça e comecei a cantar para os meus filhos e eles me olharam com muita alegria e percebi que deixei de cantar há muito tempo!”
Obrigado pelas mensagens de apoio, de carinho, de coragem e de respeito. Obrigado mesmo!
Reinaldo Nascimento
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