Dias de loucura na Sérvia

Nas ruas de Guca em agosto de 2013/ Foto: Rodrigo Daud Skeff
Nas ruas de Guca, em agosto de 2013/ Foto: Rodrigo Daud Skeff

Antes de seguir para Guca (pronuncia-se Gutcha) – cidade que sedia o mais importante festival de música dos Bálcãs do mundo –, em uma troca de e-mails com um sérvio que me receberia em Belgrado, ele escreveu: “Vou te pegar no aeroporto e precisamos sair para comer e beber bastante. Você vai para Guca, precisa treinar”. Não era a primeira vez que eu ouvia algo do tipo. Todos os relatos sobre o festival – chamado também de Woodstock dos Bálcãs – me alertavam para dias intensos, com excessos gastronômicos e alcoólicos, muita música e dança, e pouco sono. O próprio site oficial do festival anuncia: “Guca – Madness made in Serbia” (loucura feita na Sérvia, em tradução livre).

Não era mentira. Guca é uma pacata cidade de dois mil habitantes no interior da Sérvia – antigo território iugoslavo –, que durante os seis dias do festival anual recebe mais de meio milhão de visitantes. Claro que da primeira assembleia de trompetes, em 1961, até os dias de hoje, passando pelas guerras que devastaram a região, o evento mudou muito de cara e tamanho. Nos últimos anos, com a pacificação e a difusão da cultura da região pelo mundo, passou a atrair milhares de turistas, principalmente europeus.

Pois foi nessa Guca, lotada de visitantes sedentos para ouvir os sons típicos de trompetes e tubas, que cheguei, em agosto de 2013, sendo logo recebido com uma slivovica na casa do senhor Milan (além dos campings, os moradores da cidade alugam quartos na época do festival). Slivovica, importante dizer, é a bebida típica da Sérvia, uma espécie de cachaça feita de ameixa, responsável por desabrochar boas amizades, mas que pode ter efeitos impiedosos nos iniciantes. Na cidade, entre barracas, bares e restaurantes – que expõem na entrada porcos e cordeiros assados inteiros –, dezenas de bandas de metais e percussões circulam durante todo o dia, tocando sob temperaturas de quase 40ºC.

Rodrigo Daud Skeff
Vista da janela de uma casa em Guca/ Foto: Rodrigo Daud Skeff

Em meio aos excessos e euforia das ruas, concentração e seriedade predominam em um pequeno palco, que abriga o tradicional campeonato de brass bands (bandas de metais), com um júri de especialistas atentos aos mínimos detalhes de precisão, afinação, dinâmica e agilidade dos instrumentistas. Os grupos que ali se apresentam vêm de diferentes cidades da Sérvia e de países vizinhos em busca de consagração e de um futuro profissional próspero. É parte imperdível do festival, mas que muitos deixam passar.  

No fim da tarde, uma multidão se reúne no grande palco, em um “estádio” com capacidade para mais de dez mil pessoas. É ali que tocam os grandes nomes da música balcânica, como Goran Bregovic (com sua Banda para Casamentos e Funerais), Boban e Marko Markovic, entre outros. Uma verdadeira catarse coletiva segue até a madrugada e, para os últimos boêmios, tem continuidade em uma pequena praça da cidade. Praça com um único marco que a identifica: uma grande estátua de um homem tocando trompete, na qual, a qualquer hora do dia, há sempre um bêbado pendurado ou alguém com uma bandeira da Sérvia.

Apesar da intensidade e dos excessos – de bebida, comida, música e dança –, não presenciei nenhuma briga ou confusão em quatro dias na cidade. Algo surpreendente em um evento desse porte, ainda mais em uma região onde nacionalismos exacerbados se fazem sentir pelas ruas. Em Guca, o efeito contagiante da música dos Bálcãs vem em clima de festa e harmonia, o que me lembrou de uma resposta de Bregovic quando o entrevistei em 2010: “Venho da fronteira entre católicos, cristãos ortodoxos e muçulmanos. Mas no lugar que me interessa, na alma, a música não é dividida em entidades geográficas. Há apenas música boa e ruim”.

(Leia aqui matéria sobre o Festival de Dança e Música dos Bálcãs, que acontece em São Paulo entre 23/4 e 7/5)

E assista abaixo vídeo de Andrei Moyssiadis filmado em Guca em 2010:



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