Dias em Manhattan com Paula Gaitán

East Village, Manhattan, 3 da tarde. A cineasta e artista plástica Paula Gaitán está atrasada para uma das muitas entrevistas com jornalistas que cobrem o Festival de Tribeca. Paula parece não ter pressa nem muita paciência para as estrelas do cinema. Enquanto a maioria dos diretores disputa um lugar nas recepções, festas, almoços, na luta para emplacar seus filmes no mercado norte-americano ou tirar uma foto ao lado de Robert De Niro, o “dono” do festival, Paula conversa calmamente com um velho chinês que vende animais feitos de papel na calçada da Rua 13.

Depois de alguns minutos, decide-se por um pequeno pássaro de cores diversas. Os dias de Paula em Nova York evocam outros dias, passados com o marido Glauber Rocha na cidade portuguesa de Sintra, há 27 anos. É a memória desses dias que a traz a Nova York. “Quem já viu algum filme de Glauber Rocha?”, pergunta o curador, Jon Gartenberg, à platéia de maioria norte-americana que lota a primeira sessão de Diário de Sintra (Days in Sintra), de Paula Gaitán, no Festival de Tribeca. Gartenberg, responsável pelos filmes avant-garde e experimentais da mostra, avisa aos espectadores: “Este não é um documentário típico. É uma evocação poética, um filme cheio de texturas, muito corajoso. E não é preciso saber quem é Glauber Rocha para sair do cinema emocionado”.
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Paula anda pelas ruas de Nova York, quem sabe pelas mesmas ruas por onde Glauber Rocha caminhou na década de 1970, quando morou na cidade. Nova York mudou e Paula também. “No filme nunca apareço de frente, estou sempre de costas, estou vendo esse momento das nossas vidas através de uma janela. Eu só observo, à espera daquilo que está por vir, à espera do tempo perdido, à espera de me reencontrar naquela menina de 27 anos, com aquelas duas crianças, apaixonada por aquele homem. Não é racional, acho que o filme toca qualquer mulher, qualquer homem, pois trata daquilo que se esvai em nossas vidas. Eu não sou mais a mesma Paula. Sintra contém um mistério, uma névoa, uma neblina, que agora com a distância do tempo pude olhar.”

Paula Gaitán viveu cinco anos com Glauber Rocha, os últimos cinco anos de vida do cineasta que entrou para a história como sinônimo do cinema novo. Os últimos seis meses da vida do casal foram passados em Sintra, Portugal, com os dois filhos, Eryk (que nasceu durante as filmagens de A Idade da Terra, de 1980, último filme de Glauber Rocha) e Ava (nascida durante a montagem do filme). O ano era 1981. Um dia depois de chegar ao Brasil, Glauber Rocha morreria. E dos tempos em Sintra restariam imagens em super-8 e memórias. “Retorno ao passado extinto, real, imaginário, à estranheza, ao vazio, ao amanhecer…” Essas são as primeiras palavras pronunciadas por Paula Gaitán em Diário de Sintra.

Paula trabalha com a memória involuntária, inconsciente. Cita o francês Gilles Deleuze e seu Proust e os Signos para explicar o que tentou explorar no filme. “Em geral as pessoas tentam lembrar de tudo o que aconteceu, dos detalhes, e não do percurso; eu trabalho com a memória não-linear, a memória fragmentada, seus silêncios, vazios, reminiscências que dão espaço para a ficção. O filme não é sobre o Glauber, mas através, a partir do Glauber, do meu companheiro. É uma reflexão, nasceu da minha própria necessidade psicanalítica, é cheio de signos, de pegadas, o que me interessa é a memória que se reinventa a cada momento. Uma imagem leva à outra.”

Tempo perdido, tempo redescoberto
As imagens em super-8 filmadas em 1981 por Paula mostram o pai Glauber Rocha na praia, na cama, na casa em Sintra, no jardim, com os filhos. Imagens de um Portugal em que a família viveu. Paula levou 25 anos para tomar coragem e voltar a Sintra. “Tinha muita dificuldade de trabalhar com algo tão pessoal. Meu filho Eryk já tinha feito um filme em 2002 (Rocha que Voa) sobre os tempos de Glauber em Cuba. Quando cheguei à casa, hoje abandonada, entrava e saía. Foi como um flash do passado. Foi uma barra. Eu tive de ter muita disciplina durante as filmagens.”

Quem espera ver um documentário com entrevistas com parentes e amigos de Glauber sobre o tempo em Sintra pode se preparar para outro tipo de viagem. As fotos de Glauber são como pegadas, pistas que nos levam a Sintra, elas estão nos galhos de árvores, no caminho das montanhas, nas águas do mar. “Meu movimento foi inverso, costuro um longo percurso, chego lentamente a Sintra.” Em vez de entrevistas com os filhos Eryk e Ava, as fotos são mostradas a portugueses que Paula encontra pelo caminho, gente simples, pescadores, camponeses… “Cada um reconhece o Glauber como um deles, um camponês, um pescador, um ator”, explica Paula. “Glauber sempre se sentiu parte do coletivo, nunca se sentiu parte de uma elite, ele se sentia muito próximo das raízes brasileira e portuguesa.

E não há nada mais glauberiano do que ver esses portugueses reconhecerem Glauber como um deles. É como se Glauber estivesse nas entranhas do inconsciente coletivo, como se pudesse estar contido em todos os seres, em todos os estágios da vida. Glauber transbordava generosidade, beleza, ele podia ser o ator, o pescador, o camponês”, conclui Paula. Não há mesmo nada mais glauberiano. As imagens do presente e do passado se confundem como a ficção e a realidade. O presente também é filmado em super-8. O que é sonho? O que é presente? O que é passado? “A escolha do super-8 é coerente”, argumenta Paula.

“O super-8 guarda os vestígios do tempo, seus arranhões, seus fungos são como nossas rugas.” A voz de Paula e a voz de Glauber, em português, inglês, francês e espanhol, costuram a colcha de retalhos da memória de Paula Gaitán. Glauber fala de sonho: “Os sonhos são fantásticos, tem gente que sonha conscientemente, inconscientemente, não sonhar deve ser como a morte”. Fala do marxismo: “O marxismo está baseado no método dialético que proporciona a mobilidade do pensamento”. Fala da morte: “Eu não quero morrer porque tenho apenas 42 anos, e tenho muito por fazer. Eu me mexi muito e meu coração treme um pouco (…) não tenho medo da morte, tenho medo de uma morte estúpida, mas morrer do coração por causa de uma vida agitada e revolucionária (…) eu não vejo problema em morrer num processo revolucionário”. Fala de Deus: “O inconsciente é algo abstrato, impossível definir o inconsciente, é o incógnito, e este incógnito é o vazio, e o vazio é Deus”. “Do, ré, mi, fá, sol, lá, si, dó…”

Glauber canta com os filhos: “Do, ré, mi, fá, sol, lá, si, dó…” Das descobertas de Paula, talvez a mais impressionante sejam três segundos, os três segundos da última imagem do cineasta Glauber Rocha, da última viagem de Glauber, no avião no caminho de volta para o Brasil. “Não imaginávamos que no dia seguinte ele morreria, nem eu que o filmei durante o vôo lembrava dessa imagem”, divaga, pensativa.

Declaração de amor ao cinema
“Eu não sou uma especialista na obra de Glauber, fizemos muita pesquisa para o filme. Os pensamentos dele da época de Cuba eu não conhecia. Virei aluna, espero que tenha feito a lição direitinho”, sorri Paula. “Também não havia muitas imagens em super-8 do Glauber, por isso o filme é uma geografia do lugar, é como uma topografia da memória. São várias camadas, peles…a natureza, a casa, a família. Ontem me apresentaram a este diretor badalado, alemão, que está aqui no festival, Rosa von Praunheim. À noite acabei sonhando que esse diretor começava a falar mal do Glauber e eu o defendia dizendo que ele não entendia nada de Brasil, não sabia quem era o Glauber. Eu me peguei no sonho, aos berros, defendendo o Glauber. Era um sonho. Na vida real, escuto muita coisa absurda que falam dele, que estava louco, vulgarizam sua imagem. Ele que veio para dar luz.

Glauber escreveu tanto. Tem tantos textos ainda inéditos, desenhos, pinturas. Tanto a ser descoberto que abre tantas possibilidades de interpretação. Eu o vejo como o autor o artista, o filósofo, não só como cineasta. Assim como Godard e Eisenstein, Glauber desenvolveu em seus textos uma filosofia do cinema.” Nas quatro sessões de Diário de Sintra em Tribeca, Paula repetiu que o filme é uma declaração de amor ao cinema que ela ama, o cinema experimental norte-americano, e que sua inspiração vem dos mestres desse cinema: Stan Brakhage, Harry Smith, Jonas Mekas, Marie Menken, Ken Jacobs… O curador, Jon Gartenberg, brincou com a platéia ao lembrar que na primeira projeção do filme, a intérprete, tentando acompanhar a lista infindável de cineastas experimentais que Paula admira, se confundiu e traduziu em inglês que a cineasta considerava Glauber o seu Deus. Paula corrigiu rapidamente: “Não, não, meu Deus não é Glauber. Glauber era o meu companheiro, o homem que eu amava. Meu Deus é Stan Brakhage (cineasta norte-americano considerado um dos maiores diretores de cinema experimental do século XX)”. Risos inevitáveis na platéia.

Quinze minutos depois de o filme começar, Paula não agüenta, sai do cinema com lágrimas nos olhos. “Cada vez que vejo o filme me emociono mais, não sei o que está acontecendo.” Inevitável é que nós, espectadores “normais”, conhecedores ou não da obra e da importância de Glauber Rocha, nos emocionemos quando o filme termina e vemos Paula contendo o choro ao responder às perguntas da platéia. Nós, os leigos e normais, saímos do cinema com a inevitável sensação de que vimos um filme de amor, uma declaração de amor. “Eu acho que é de amor, mas não cabe a mim falar que é um filme de amor. Seria vaidoso, pretensioso, se eu me colocasse na primeira pessoa, não? Não sou dona desse amor, Glauber não me pertence. Mas, se as pessoas descobrem o amor, a emoção, não há nada mais importante, não é? É Paula, não há nada mais glauberiano.


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