Se algo pode ser notado nesta 7ª Flip é a freqüência com que as relações entre o autor e a obra e o modo como o “eu” emana e se interpola nos processos criativos tem sido questionado. Imagina-se, portando, que não seria outro o centro da discussão tratando-se da mesa que já no título leva o cerne da discussão: O eu profundo e outros eus. Mediada por Joca Terron, poeta e prosador irreverente de careca lustrada e barba gruesa, quase um guerreiro nórdico, os eus em questão tratavam-se do mexicano Mario Bellatin e o catarinense Cristóvão Tezza, ambos íntegros no corte de suas roupas pretas, cada um a seu estilo. [nggallery id=14624] LEIA TAMBÉM:
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O último poemaAo apresentar as biografias, Joca fez questão de salientar Mario como um “convicto praticante de um gênero raro, que é a novela”, além de dizer que “o autor crê que o texto deve se sustentar por si mesmo e a intervenção do autor deve ser a menor possível”. Tezza, por sua vez, superexposto – e finalmente premiado – com a publicação do último romance, O Filho Eterno, foi lembrado em entrevista onde afirmou que só conseguiu dar cabo do livro quando alterou o narrador da primeira para a terceira pessoa. Isto porque seu livro aborda a história de um pai que tem um filho portador da síndrome de Down, e assim como seu protagonista, Tezza possui um filho com a mesma disfunção genética – uma trissomia do cromossomo 21.“El lector piensa que el escritor tiene que estar em cada línea de lo que escribe, pero eso no es cierto”, falou Bellatin sobre o fato de ser questionado muitas vezes a respeito de livros que já escreveu e simplesmente não se lembrar exatamente dos termos em questão. A escrita, para ele, deve ser sobreposta ao próprio autor para em determinado momento adquirir uma espécie de autonomia ôntica (no sentido de ser um universo em particular com propriedades singulares) que se dissocia do autor – o texto passa a existir e dizer por ele mesmo, numa dialética entre obra e leitor. Tal prerrogativa apresenta-se, inclusive, no projeto gráfico da edição de Flores, coleção de histórias desconexas justapostas por silêncios etéreos, num projeto gráfico da editora Cosac Naify que traz o livro como inacabado, qual um copião, uma mostra – ainda sem capa e lombada. “Yo quiero que el lector sienta que donde hay un silencio hubo algo”, a respeito dos “buracos negros” narrativos, tão expressivos quanto as próprias palavras e responsáveis por induzir o leitor fazendo da obra completa.Por sua vez, Tezza afirmou ter levado vinte anos para começar a escrever O Filho Eterno, pois o livro nasceu de uma questão pessoal e era preciso afastar-se para que fosse possível, com isenção, tratar o tema. “Sair do terreno da confissão para a literatura” foi parte do processo criativo, segundo uma percepção estética de que a obra não é a própria vida, justificando que o realismo – em seus vínculos naturalistas de descrição e representação imagéticas – é um campo sinuoso. Referiu-se a Fernando Pessoa, alegando que o prosador é um falsário natural – e não o poeta. “Para se fazer boa literatura, o autor tem que se transformar em seus personagens. Portanto, ele não fala com sinceridade, como o poeta, mas se desdobra em várias vozes”, pois o eu poético só existe na crença do mundo criado pelo poeta.Da concisão e experimentalismo de Bellatin ao fluxo narrativo domesticado e orgânico de Tezza, a prosa, nas mãos desses autores, leva a crer.


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