“Dilma está prisioneira do curto prazo”

 

Foto: Reprodução/ Facebook/ Marcio Pochmann
Foto: Reprodução/ Facebook/ Marcio Pochmann

O modelo de democracia instaurado no País há 30 anos, a partir de uma transição feita pelo alto, abriu espaço para um sistema político fisiológico e manteve no Estado a mesma estrutura pesada, patrimonialista. Sem a implementação das reformas necessárias, como a do sistema tributário, que taxa fundamentalmente o pobre, esse modelo chegou ao limite: “Isso estourou na mão da presidenta Dilma”. É o que defende o economista Marcio Pochmann, professor titular do Instituto de Economia da Universidade de Campinas e presidente da Fundação Perseu Abramo, que é vinculada ao PT.

Na opinião do economista, desde que assumiu o segundo mandato, Dilma Rousseff governa para o curto prazo. “Cada dia é um dia. Ela foi eleita para governar quatro anos e até agora só falou em ajuste. O povo não sabe o que vai ter no ano que vem. A presidenta precisa governar para a sociedade, não para o Congresso”, afirma o economista, lembrando que Juscelino Kubitschek enfrentou situação similar na Presidência. “Como não tinha base no Congresso e havia um problema de ajuste fiscal que o impedia de governar, Juscelino construiu a sua maioria política fora das instituições tradicionais”.

Brasileiros – Em ensaio recente, o senhor escreveu que o Brasil entrou no século 21 com um tripé inédito em sua história, composto por democracia, expansão da economia e políticas sociais. O que mudou?

Marcio Pochmann – Estamos diante do esgotamento do ciclo democrático que se abriu a partir da transição da ditadura, feita pelo alto. Havia um projeto de sair da ditadura por meio de uma eleição direta para presidente da República. Essa proposição foi frustrada. Tivemos uma transição que nos traz até hoje uma série de vícios oriundos do regime militar.

Que tipo de vício? A partir da posse de José Sarney, em 1985?

Sarney, essa personalidade da história da política brasileira. Em 1979, ele havia sido presidente da Arena. Em 1980, ele saiu da Arena e fundou o PDS. Estávamos diante do sistema bipartidário, Arena e MDB. Passamos a um sistema multipartidário, que levou a termos hoje 35 partidos, a maior parte fisiológica.

Por que houve essa fragmentação?

Não fizemos uma transição que permitisse a constituição de um sistema assentado em partidos ideológicos. O sistema político foi consti­tuído em grande medida por personalidades ligadas à ditadura, que participaram da transição.

O vínculo com a ditadura continuou forte?

O principal elemento foi o próprio Sarney, que se deslocou de presidente do partido da ditadura para a Presidência do País, de 1985 a 1990. Depois, ele se tornou presidente do Senado, durante três gestões, 1995/1997, 2003/2005, 2009/2013. Na Nova República, montou-se um sistema político fisiológico, financiado fundamentalmente pelo setor privado.

Agora, 30 anos depois da transição, o senhor fala que houve um esgotamento daquele ciclo. Na sua opinião, o que vem pela frente?

O esgotamento é do modelo de democracia. Estamos também diante de uma profunda crise da relação entre o Estado e o mercado. Um sinal disso é a situação da Petrobras, um problema com equivalentes nas administrações municipais, estaduais e federal. E a relação do Orçamento com o setor privado. Isso porque não fizemos uma reforma do Estado.

Esse modelo está entrando em colapso?

Sim. Todos os presidentes da democracia, de Sarney para cá, sabiam dessa situação. Sabiam que o sistema partidário era fisiológico, tanto que o Centrão se constituiu com Sarney e vem até hoje. Sabiam também que a relação entre Estado e mercado era muito complicada. Só que ninguém fez nada para mudar. Isso estourou na mão da presidenta Dilma.

O que deveria ter sido feito?

Em 1982, o próprio PMDB divulgou o programa Esperança e Mudança. Esse documento, preparado por intelectuais vinculados à época ao partido, estabelecia as condições necessárias para uma transição democrática, mas praticamente nada foi feito. O que salvou foi a Constituição de 1988. Faço parte de um grupo de intelectuais que acabou de divulgar outro documento na mesma linha, Por um Brasil Justo e Democrático. Como não fizemos nenhuma reforma nos últimos 30 anos, levamos às últimas consequências o sistema político fragmentado, a relação do Estado com o mercado.

Que outras ideias do Esperança e Mudança estão no documento?

A reforma tributária. Permanece o sistema tributário regressivo, constituído em 1966, que tributa fundamentalmente os pobres. Os ricos estão quase imunes. Também não mexemos na questão fundiária. Tem ainda a questão do Estado.

Como a máquina do Estado precisa ser reformada?

De um lado, temos um Estado pesado, patrimonialista. De outro lado, temos um Estado que opera na forma de caixinhas. Há uma diversidade de áreas que não dialogam entre si, que olham o indivíduo na sua parcialidade, não na sua totalidade. Faz, por exemplo, ações para a educação, que não dialogam com o problema da saúde, do desemprego.

E os programas que possibilitaram ascensão social nos últimos anos?

Alteraram muito pouco. Há duas iniciativas. Uma é o programa Territórios de Cidadania, que foi pensado como o espaço para integração de políticas. Não avançou muito. Outro esforço é o próprio Bolsa Família. São medidas importantes, mas insuficientes. Como a presidenta já falou, a tentativa de enfrentar a pobreza está apenas no começo. Vou comparar com a Dinamarca, usando dados das Nações Unidas, para dar um exemplo do tipo de Estado que nós temos.

Com a Dinamarca?

Há dois tipos de medidas de desigualdade. Uma que se chama desigualdade primária da renda. É a medida da desigualdade sem a presença do Estado, sem o gasto público. É a desigualdade na renda que as pessoas recebem nas atividades do mercado, seja como empresário, seja como trabalhador, funcionário público ou autônomo. A referência é o Índice de Gini (parâmetro internacional para medir desigualdade e concentração de renda, desenvolvido pelo estatístico italiano Corrado Gini). Ele varia de zero a um. Quanto mais próximo de um, mais desigual. Quanto mais próximo de zero, menos desigual. Bom, o Índice de Gini na desigualdade da renda primária na Dinamarca é 0,54, maior que o do Brasil. O do Brasil é 0,51. É quase inacreditável a Dinamarca ser mais desigual que nós.

O que muda essa história?

A desigualdade na renda secundária. É a medida do que se tem após a presença do Estado, na forma da tributação e nos gastos que ele faz. Isso porque o Estado arrecada e distribui recursos.

Inclui educação e saúde?

Isso. Escola, saúde, política de transferência de renda, previdência, o diabo a quatro. No Brasil, a desigualdade na distribuição primária é 0,51 e a secundária, 0,49. Depois da presença do Estado, melhora um pouquinho, de 0,51, para 0,49. Na Dinamarca, a medida de desigualdade na distribuição de renda primária é 0,54, é maior do no Brasil, mas a desigualdade na renda secundária é 0,27.

É a intervenção do Estado que promove a igualdade?

Promove ou reduz. A Escandinávia é uma das regiões menos desiguais do mundo. E o capitalismo deles é tão desigual quanto o nosso. O que faz a diferença é o Estado. No Brasil, temos um Estado que a democracia permitiu fazer política para os de baixo. Melhorou a previdência, melhorou o SUS. Melhorou é modo de dizer, mas ao comparar o que se tinha de saúde na ditadura e o que se passou a ter agora é um avanço inegável. Enfim, melhorou, mas não mexeu no Ministério dos Ricos.

O que é mexer no Ministério dos Ricos?

Não mexeu no Ministério da Fazenda, que faz a política social dos ricos. O Ministério da Fazenda é forte para cobrar imposto dos pobres e é uma mãe para os ricos. Não mexeu nada na Receita Federal. Talvez o que vou dizer seja uma razão importante para que a CPMF não volte. Dados de quando ela existia mostram que, de cada três pessoas que circularam grandes quantias no sistema financeiro nacional, apenas uma declarou Imposto de Renda. A sonegação do Brasil equivale a 10% do PIB.
E os outros dois terços?
Simplesmente não declararam Imposto de Renda. Isso porque, no Brasil, sonegação não é crime. A pessoa pode pagar uma multa e sai limpinha. Vai fazer isso nos Estados Unidos…

Por que esse modelo que veio de alguma forma funcionando nos últimos 30 anos se deteriorou agora? Teve algum gatilho?

A meu modo de ver, teve sim. O regime militar tinha uma carga tributária de 24% do PIB. Os governos da democracia chegaram a até 36% do PIB. São 12 pontos percentuais a mais. Para onde foi essa carga tributária? Uma parte foi para pagar o serviço da dívida pública. O governo militar tinha um custo da dívida pública de 1,7% do PIB, que foi para 8% do PIB.

E a outra parte?

Foi para a questão social, para os programas de transferência de renda. Aumentou-se a carga tributária sem tributar os ricos e sem constranger os sonegadores. Isso foi levado ao limite, especialmente porque nós estamos vivendo uma fase de semiestagnação do capitalismo brasileiro. Entre 1945 e 1980, a economia brasileira cresceu 6,7% ao ano. De 1981 a 2015, considerando que em 2015 o PIB tenha sido decrescente, a expansão média da economia brasileira foi de 2% ao ano. Tivemos recessão nos anos 1980 e nos anos 1992. Agora em 2015 temos outra e não sabemos onde vai parar.

O que distingue a atual recessão das duas anteriores?

Elas expressaram tentativa de mudar o modelo econômico. A de 1981 a 1983, no último governo militar, Delfim Netto ministro, é uma recessão para implantar um modelo exportador no Brasil. O Brasil tem uma dívida, faz acordo com o FMI. Para pagar essa dívida, tem que exportar mais do que importar. Teve problemas, mas, em todo caso, a recessão terminou sendo exitosa porque o Brasil fez um ajuste e, a partir de 1983, passou a ter um saldo comercial que não tinha antes.

Exporta basicamente commodities?

Não. Naquela época, entre 50% e 60% eram produtos manufaturados. No final do governo militar a indústria representava 34,5% do PIB brasileiro. Hoje ela representa 9%. Esse processo de desindustrialização é a razão central de a economia brasileira estar semiestagnada.

Tem vínculo com a crise dos anos 1990?

A recessão dos anos 1990 é novamente uma tentativa de mudar o modelo econômico, inserindo o Brasil na globalização financeira. Daí a desregulação, a abertura comercial, que é o ponto fundamental que leva à desindustrialização. Não apenas a indústria cai de participação no PIB e o emprego industrial cai em relação ao total, mas sobretudo o Brasil fica praticamente sem burguesia industrial. Nossos industriais viraram comerciantes. Eles compram fora e vendem internamente.

E a produção nacional?

O governo do presidente Lula aproveitou a expansão da economia internacional. Melhorou a exportação, teve saldo comercial, exterminou a dívida externa, etc. Ao mesmo tempo, fez ações para redistribuir a renda interna, melhorando o mercado de consumo para segmentos de baixa renda. Isso teve um impacto fantástico no mercado interno. As pessoas passaram a consumir. E a indústria brasileira tinha capacidade ociosa, já que passamos os anos 1980 e 1990 sem crescer.

O que acontece com essa capacidade ociosa?

Em 2005, 2006, ela foi se extinguindo. É então criado o PAC, o Plano de Aceleração do Crescimento, para atender esse ciclo de expansão pelo consumo. Bom, o PAC começou a funcionar em 2007, 2008. Veio a crise internacional. O PAC se transformou em um conjunto de políticas anticíclicas, estabelecidas de forma temporária, pois partiu-se do pressuposto de que o País estava diante de uma crise em “V.”

Como assim?

No primeiro braço do “V”, a economia cai, mas depois volta a crescer. Nesse espaço, cria-se uma ponte que seriam justamente as políticas anticíclicas, para evitar que a economia caia. O problema é que a crise internacional não se revelou uma crise em “V”. No pós-2008, o dinamismo é baixíssimo em todo o mundo. Nenhum país voltou a crescer. Estamos há sete anos nessa crise.

Qual a saída?

Precisa de maioria política, mas o primeiro passo é estancar a recessão, voltar a crescer. Para crescer, precisa liberar os investimentos públicos que estão trancados em nome do ajuste fiscal. O setor privado nacional não investe, com medo do que vai acontecer. Precisa liberar os investimentos, reduzir a taxa de juros. A presidenta está prisioneira do curtíssimo prazo imposto pela maioria que ela está tentando formar no Congresso. Guardadas as devidas proporções, um mineiro, um presidente ousado, Juscelino Kubitscheck, estava em uma situação parecida com a da presidenta Dilma.

Como?

Em 1956, na época em que ele assumiu o governo, não precisava ter a maioria dos votos. Juscelino foi eleito com 32% dos votos. Um terço do Congresso o apoiava, dois terços eram contra. E assumiu com a herança do governo Café Filho, que substituiu Getúlio Vargas depois do suicídio, e tinha feito um acordo com FMI. Esse acordo impunha um ajuste fiscal muito complicado para ele fazer o governo que imaginava. Como não tinha base no Congresso e havia o problema de ajuste fiscal que o impedia de governar, Juscelino construiu a sua maioria política fora das instituições tradicionais.

Os 50 anos em cinco?

Ele construiu o Plano de Metas com a sociedade. Os 50 anos em cinco. Construiu Brasília. Imagina construir uma capital, governando no Rio de Janeiro? É uma coisa fantástica. Sem falar que ele construiu o Plano de Metas fora do governo.

Se Dilma Rousseff não conquistar sustentação política similar, o impasse continua?

Ela está prisioneira do curto prazo. Cada dia é um dia. Ela foi eleita para governar durante quatro anos e até agora só falou em ajuste. Não disse nada sobre como quer deixar o Brasil em 2018. O povo não sabe o que vai ter no ano que vem, em 2016. A presidenta precisa governar para a sociedade, não para o Congresso.


Comentários

Uma resposta para ““Dilma está prisioneira do curto prazo””

  1. Avatar de Rogerio Faria
    Rogerio Faria

    Um bom texto, apenas com uma ressalva: JK com os seu arroubo desenvolvimentista pavimentou o caminho para a ditadura patrocinando gastos astronômicos. Ele fez também as suas pedaladas fiscais e se fosse hoje também poderia levar um “impeachment” por gastar mais que arrecadou. O custo de Brasilia foi um erro que nos custou a democracia.

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