“Hoje, o principal instrumento da diplomacia brasileira é a FAB.” A frase, acompanhada por uma risada, foi dita pelo ministro das Relações Exteriores, Celso Amorim, durante uma longa conversa com jornalistas de Brasileiros, no fim do mês de março, em seu gabinete no Palácio do Itamaraty, em Brasília. A princípio ela pode parecer uma brincadeira do chanceler, mas, quando se percebe que, desde que assumiu o cargo, em janeiro de 2003, ele já fez mais de 210 viagens a outros países, em um corpo-a-corpo diplomático que a internet e o telefone não substituem, chega-se à conclusão de que um dos chanceleres brasileiros com mais tempo no cargo está dizendo a mais pura verdade.

Boa parte desses roteiros, como a viagem de preparação da I Cúpula América do Sul-Países Árabes, no primeiro semestre de 2005, são maratonas que deixam aqueles pacotes de turismo do tipo “se hoje é terça-feira, isso deve ser Luxemburgo” no chinelo. Na ocasião, Celso Amorim, a bordo de um Legacy da Embraer, esteve em dez países em exatos dez dias, alinhavando o encontro inédito entre árabes e sul-americanos que seria realizado depois em Brasília. “Teve um dia em que tomei café no Catar, almocei no Kuwait e jantei no Líbano”, lembra.
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Todos esses encontros, na verdade, eram reuniões formais com altos dirigentes dos governos locais, em que as refeições eram apenas para definir os horários. Aliás, se Amorim se queixa de alguma coisa, é dos almoços e jantares que são tradição na diplomacia. Frugal, o chanceler, que dorme seis horas por noite (da meia-noite às 6 da manhã, quando, seja em Brasília, seja em viagem, já está de pé, pronto para o trabalho), procura comer pouco nos jantares formais e manter a saúde, pois já teve diverticulite. E esse tempo de sono muitas vezes foi encurtado.

Já ocorreram situações como uma tensa e longa reunião da Organização Mundial do Comércio (OMC), em Genebra, na qual o chanceler brasileiro aproveitou um tempo de folga, noite alta, e deitou em um sofá, usando o paletó enrolado como travesseiro e um lenço debaixo dos óculos. O cochilo de pouco mais de uma hora foi o suficiente para que retornasse com pilha recarregada à reunião. Voltando às viagens, a necessidade de usar aviões da FAB – ele já voou nos Learjet, no Sucatinha (emprestado pelo presidente Lula) e agora usa os Legacy da FAB, que já são apelidados de “Itamarajet”- explica-se pelos próprios roteiros, não cobertos pelas linhas regulares.

Uma viagem como a realizada no começo de 2005, que percorreu três continentes (oito países em oito dias) e levou o chanceler a Trinidad e Tobago, Estados Unidos (Nova York), novamente Trinidad e Tobago, Guiana Francesa, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Senegal, Nigéria, Camerum (o Brasil passou a adotar o nome africano, em vez de Camarões), de novo Senegal e finalmente Brasil, na preparação da primeira viagem de Lula ao continente africano, nunca seria possível em vôos de carreira. “Se você quer criar um mundo multipolar, tem de ir aos lugares, estabelecer relações, construir parcerias. E essas visitas, essas reuniões ao vivo facilitam muito as coisas depois, quando, por exemplo, você precisa manter um diálogo por telefone com outro chanceler ou dirigentes de organismos internacionais”, afirma Celso Amorim. Que, aliás, quando encerrou a conversa com Brasileiros, falou por telefone com o chanceler francês, Bernard Kouchner, como se se tratasse de (e é) um fato corriqueiro.

Na mesma manhã do dia da conversa com a revista, Amorim havia recebido em Brasília a secretária de Estado dos Estados Unidos, Condoleezza Rice, a quem chama de Condi (apelido usado pelo círculo de poder e amizade mais próximo à americana) e com quem tratou, entre tantos pontos, de “segredinhos políticos”. Mas, evidentemente que ter se transformado em um chanceler aéreo não explica o sucesso da diplomacia brasileira sob o comando de Amorim. Ele, aliás, insiste que a política externa não é sua e, sim, “do presidente Lula”, a quem não conhecia pessoalmente antes de ser convidado para o cargo. “Desde o começo se buscou ampliar o número de parceiros comerciais, fazer alianças políticas e econômicas fora do que se considerava como viável”, recorda.

Logo no começo de sua gestão, em 2003, o Brasil lançou as bases de uma união política e econômica com Índia e África do Sul, em uma reunião histórica no Itamaraty, marcada por algumas curiosidades, como a mesa de reuniões triangular e uma cadeira conversadeira do tempo do Império, com três lugares. Mas a realidade é que o Ibas (associação entre Índia, Brasil e África do Sul) hoje é reconhecido como um bloco internacional multirregional e que serviu como base para ações mais incisivas da diplomacia brasileira no verdadeiro campo de batalha que é o comércio exterior. O Ibas, que ajudou a dar o empurrão inicial na criação do G-20, grupo de países em desenvolvimento que são grandes produtores e exportadores de alimentos, transformou-se em um dos mais poderosos interlocutores na OMC, mudando de forma definitiva as relações nas reuniões do órgão.

Celso Amorim não gosta muito de focar o sucesso da diplomacia brasileira nos aspectos econômicos, preferindo dar mais destaque ao sucesso da visão multipolar de mundo, em que o Brasil cada vez mais assume um papel de liderança. Mas não resiste a apresentar dados que comprovam que a opção de deixar de lado a polêmica Área de Livre-Comércio das Américas (Alca) foi uma opção correta. “Em 2002, 25,74% de nossas exportações eram para os Estados Unidos, correspondendo a US$ 15,5 bilhões. Para a América Latina e o Caribe, no mesmo ano vendemos US$ 11,5 bilhões, o que correspondia a 19,7% de nossas exportações. Fechamos 2007 com exportações de US$ 41,8 bilhões para a América Latina e o Caribe, correspondendo a 26,02% do total, o que fez da região nosso maior comprador, acima até da União Européia, para quem exportamos no ano passado US$ 40,4 bilhões”, comenta.

Os Estados Unidos passaram para o terceiro lugar, com compras de US$ 25,3 bilhões (15,76%). Celso Amorim destaca ainda que, em termos de países, os Estados Unidos seguem na primeira colocação como destino das exportações brasileiras, com a Argentina em segundo lugar, com US$ 14,4 bilhões, correspondendo a 8,97%, acima da China, para quem o Brasil vendeu no ano passado US$ 10,7 bilhões. Ele volta a dar uma estocada nos que ainda criticam a mudança de foco do Brasil de, mantendo os fregueses tradicionais, ir em busca de novos clientes mundo afora. “Se a África fosse um país, seria nosso quarto maior parceiro, com compras de US$ 8,5 bilhões no ano passado, correspondendo a 5,3% de nossas exportações. Para lá, seis anos atrás, não se vendia quase nada”, ressalta.

Para que isso fosse alcançado, Amorim, além das viagens em ritmo quase alucinado que faz – e que lhe valeram o apelido, sussurrado nos corredores do palácio projetado por Oscar Niemeyer, de “Duracelso”, pois parece não cansar nunca -, destaca o papel do Brasil como líder da multipolaridade. Ele ressalta a presença do país em todos os foros mundiais e como protagonista. “Quando buscamos estreitar as relações com a América do Sul, com os países árabes, com a África do Sul, a Índia, a China, a Rússia; quando criamos o G-20; quando formamos o G-4 com Alemanha, Japão e Índia para pressionar por reformas na ONU; quando mostramos que é preciso uma nova relação entre os países, estamos assumindo um papel de destaque”, afirma.

Dentro desse quadro de afirmação do Brasil como um dos principais países do mundo, Amorim destaca que a atuação do País na América Latina tem lugar de destaque. Ele lembra que, quando da invasão do Equador pela Colômbia, que resultou no assassinato do número 2 das Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (Farc), Raúl Reyes, ele estava regressando de uma viagem a Cingapura e ao Vietnã. “Eu desci em São Paulo no domingo, pois tinha compromissos na segunda-feira lá, e estava com o celular desligado, por distração. Tinha tido uma primeira notícia, mas ela não mostrava toda a gravidade do fato. Fui então a uma exposição da Tomie Ohtake quando minha mulher, Ana, me achou e contou o que estava acontecendo. Celular ligado, procurei saber do Itamaraty mais detalhes do caso, pois não poderia ligar para o presidente Lula sabendo apenas o que estava na mídia e na internet”. E explica, sorrindo e imitando a voz de Lula: “Ele ia dizer ‘Celso Amorim, isso eu já sei’”.

E a decisão do Brasil de exigir uma solução imediata por parte da Organização dos Estados Americanos (OEA) foi logo tomada. “O presidente concordou que a primeira pessoa a ser contatada teria de ser Javier Insulsa, secretário-geral da OEA. E isso foi feito e deu certo, com a OEA tomando uma posição que acabou referendada na reunião do Grupo do Rio”, conta. Ele lembra ainda que, no auge da crise, deu mais de 40 telefonemas para Insulsa, para os três presidentes envolvidos no conflito (Álvaro Uribe, da Colômbia, Rafael Correa, do Equador, e Hugo Chávez, da Venezuela) e outros presidentes sul-americanos, sem contar os para Lula, até que um acordo fosse costurado.

Mas nada deu errado até agora? Celso Amorim dá um sorriso e admite que o Brasil teve duas grandes derrotas internacionais: na eleição para diretor-geral da OMC, quando o embaixador Luiz Felipe de Seixas Corrêa foi derrotado pelo francês Pascal Lamy, e na eleição para a presidência do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), quando o ex-ministro João Sayad foi derrotado pelo colombiano Alberto Moreno, que tinha apoio dos Estados Unidos. “Claro que tiramos lições das derrotas e acho que demos a volta por cima. Na verdade, miramos muito alto, mas já passou. E mesmo quem venceu admitiu que precisava trabalhar próximo a nós, como o Lamy. Sua primeira viagem depois de eleito foi de Genebra para Paris, onde eu estava, para uma reunião comigo.” E ela foi extremamente positiva, pois abriu espaço para a retomada das negociações na OMC.

O sucesso na diplomacia até que está de bom tamanho para um ex-promissor cineasta que foi assistente de monstros sagrados do cinema novo, como Ruy Guerra (em nada menos que Os Cafajestes) e Leon Hirszman, e que, aos 19 anos, foi convidado para dirigir seu primeiro filme. Mas ele se achava muito novo para a responsabilidade e recusou a oferta. “O problema todo é que minha mãe, Beatriz Nunes Amorim, tinha uma regra dentro de casa para mim e os irmãos: ‘Garanto casa, comida e roupa lavada, sem nenhum dinheiro para o resto’. Como eu iria dizer que não iria mais trabalhar no cinema, que iria fazer vestibular e ficar uns quatro anos dependendo dela?”, conta. A saída foi o Instituto Rio Branco, na época ainda no Rio de Janeiro, onde Celso e a família moravam havia mais de dez anos, desde que a mãe se separara do pai, Vicente Amorim.

“O Ruy (Nogueira), hoje embaixador, meu colega desde o primário no Colégio Mello e Souza, em Copacabana, tinha feito prova para o Rio Branco e passado. Então eu pensei: ‘Se o Ruy passou, eu também passo’. E expliquei para minha mãe que seriam dois anos de estudo apenas, que eu teria emprego garantido e que ainda havia uma bolsa de estudo.” E foi assim que o cinema novo brasileiro perdeu um promissor e talentoso cineasta. E o Brasil ganhou um dos chanceleres mais importantes de sua história.


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