Os ataques de 13 de novembro em Paris são um clássico. Ocorreram exatamente onde se previa, por quem se imaginava que estaria envolvido e provocando as reações de costume. Significa que está tudo nos conformes e que nada de muito novo surge desta apenas mais recente carnificina e barbaridades? Não. Vamos em primeiro lugar ao que se considerava muito provável.
Terroristas da feição islâmica (mas não só) estão em busca do gesto espetacular, que é o principal objetivo da ação. As grandes capitais europeias são alvos óbvios. A existência, nessas mesmas cidades, de bolsões de imigrantes e seus descendentes (já com a cidadania dos países atacados) oriundos de regiões onde progride o radicalismo religioso oferece farto material humano para a atividade terrorista. Ao contrário, porém, do que afirmam as versões ingênuas (ou, simplesmente, deturpadas pelo viés ideológico), não são pobreza, isolamento, humilhação os motivos que detonam, no indivíduo, a mola “terrorismo”. É a ideia. Que precisa do grupo organizado, dirigido (até certo ponto) centralmente, com capacidade logística e certa proximidade do alvo. Tudo isso ficou prontinho, esperando para acontecer, a partir da desintegração da Síria e de parte do Iraque envolvidos em guerras civis. É provável que outros ataques aconteçam, e nos mesmos moldes – com pouquíssima capacidade, por parte dos grupos terroristas, de causar danos essenciais em infraestrutura, na economia ou no funcionamento de qualquer instituição nos países ocidentais. Mas enorme repercussão.
Vamos agora ao que é mais difícil prever. Eu prefiro considerar os ataques pelo ângulo das relações internacionais em sentido mais abrangente e examinar em que proporção eles antecipam (na medida em que alguns acontecimentos abrem nossos olhos para tendências já atuando) mudanças importantes. Pelo menos uma delas — o reconhecimento, por parte das grandes potências, de que é necessário impor ordem em alguns espaços – está em andamento. Depende, porém, da visão de cada potência do espaço que lhe parece mais importante no momento.
Note-se que a capacidade de atuação de grupos terroristas como o Estado Islâmico (ou o Boko Haram, na África) está diretamente ligada à incapacidade de potências, quaisquer que sejam, de afirmar qualquer tipo de ordem em alguns espaços geográficos. É o evidente caso da Síria, que, da mesma maneira que a Líbia, deixou de ser um país tal como o conhecíamos. Em parte a afirmação se aplica também ao Iraque e às fronteiras traçadas ainda durante a Primeira Guerra Mundial pelas potências que sairiam vencedoras (Reino Unido e França, nessa questão) sobre os espólios do então Império Otomano. Em outras palavras, o problema da reorganização da região depende da maneira como as diversas potências, regionais e as “externas” (como preferem muitos analistas árabes), vão se entender – ou não.
Pode-se criticar o presidente americano, Barack Obama, à vontade, mas ele tem se empenhado em demonstrar certa coerência de raciocínio estratégico. Ele não vê o intratável problema árabe/israelense, ou o pântano da Guerra Civil da Síria, ou a dissolução da Líbia no caos tribal como problemas estratégicos de primeira linha para os Estados Unidos. Pode-se enxergar o acordo das potências com o Irã sobre o programa nuclear dos aiatolás sob várias perspectivas, mas uma parece ser consenso: é o eixo central da estratégia americana para a região.
Aparentemente, os americanos sob Obama (eu me refiro aos especialistas que formulam a política externa em Washington) se convenceram de que a importância do Irã como potência regional não pode ser ignorada, e que um entendimento com os aitolás se transforma em fator de estabilidade – e não de risco – num arco importante da região. O problema, do ponto de vista americano, é conciliar as diversas rivalidades e conflitos regionais num todo coerente (algo que só grandes impérios do passado, como o romano, o bizantino, o persa ou o árabe foram capazes). Não é o caso de se esmiuçar neste texto todas as circunstâncias que fazem do Oriente Médio o lugar por excelência onde o inimigo do meu inimigo não é necessariamente meu amigo, nem meu amigo é inimigo do meu inimigo.
Esse “todo coerente”, ao qual me refiro acima, depende não só do Irã, da Turquia e da Arábia Saudita, além do que sobrou da Síria sob um governo ditatorial. Depende de potências “externas”, como a Rússia, que tem um pedaço do Oriente Médio dentro do próprio território (nesse sentido o radicalismo religioso, muito presente no Cáucaso, por exemplo). E dos próprios países centrais da Europa, que, do ponto de vista histórico (pelo menos nos últimos cem anos), são parte ativa em todos os conflitos na região. A percepção deles do que seja prioridade estratégica (portanto, política) em relação ao que acontece na Síria (e, por consequência, no Estado Islâmico) contrasta em parte com Washington.
E aqui vamos ao que é tão difícil de se prever. Diferenciar atos de política externa do que se considera atos de política doméstica tornou-se ainda mais complicado na era da diplomacia pelas redes sociais, e que prefiro exemplificar por uma caricatura. Como teriam agido Winston Churchill ou Franklin Roosevelt (para ficar em dois nomes recentes que, em determinados momentos, tiveram de enfrentar a própria opinião pública) no Twitter, Facebook ou Instagram, para não falar do YouTube? Estariam competindo para obter mais “curtidas” nas páginas oficiais? É óbvio que essa pergunta jamais teria uma resposta, mas o que quero demonstrar aqui é simplesmente que a pressão da opinião “doméstica” é o fator principal hoje na avaliação que líderes ocidentais fazem dos perigos do terrorismo e da forma estratégica de lidar com ele.
Os públicos domésticos estão fortemente influenciados pela noção, amplamente difundida nas populações dos grandes países europeus (Alemanha, França, Itália e Reino Unido), de que Islã e valores ocidentais não são compatíveis. É um problema cultural de longo alcance, muito antes de ser uma questão imediata aguçada por desemprego ou chegada em massa de imigrantes. Podemos chamar esse fenômeno de xenofobia ou direitismo ou o que quer que seja, mas não há governante na Europa (e nos Estados Unidos) que possa ignorá-lo. O peso do momento, aliado à leitura do passado, dificilmente permite “visões” de futuro.
Percebe-se que está embutida aqui uma espécie de “inevitabilidade” do tão famoso “choque de civilizações” (a expressão empregada por Huntington em 1993, bem antes da Al Qaeda e Estado Islâmico) – não pelo fato das características instrínsecas, quaisquer que sejam, das “civilizações” mas, sobretudo, pela resposta imediata que a diplomacia do Twitter exige. Alguns comentaristas assinalam que a alternativa à convivência entre “civilizações” (entendida aqui como a convivência de ideias e valores nos mesmos espaços urbanos, por exemplo), comumente descrita como multiculturalismo (e a execrável relativização de valores, na minha opinião), é mais sofrimento, ódio e derramamento de sangue.
É provavelmente essa triste segunda opção que nos espera por um bom tempo. É uma expressão de um mundo muito mais perigoso, o atual, do que foi o mundo da Guerra Fria (o mundo da minha geração). É irônico que o planeta dividido entre mais potências, aparentemente com mais “opções” de alinhamento ou alianças, seja um mundo mais perigoso. Mas é, e continuará, enquanto os principais atores internacionais do momento não forem capazes de se entender por um mínimo de ordem em algumas regiões nevrálgicas. Quando isso acontecer, o Estado Islâmico será nota de rodapé.
*William Waack é jornalista e apresentador do Jornal da Globo e do Globo News Painel
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