Direito de escolha

Timothy Archibald
Mundo particular – A partir da premissa de criar maior vínculo emocional com seu filho elijah, timothy archibald começou a fotografá-lo. pouco depois, quando elijah completou 5 anos, foi diagnosticado com autismo. o pai continuou com afinco a sua série

A Organização Mundial de Saúde calcula que existam 70 milhões de autistas no mundo. No Brasil, são cerca de dois milhões. A incidência é de um caso para cada cem crianças nascidas vivas, na proporção de uma menina para cada quatro meninos. O autismo foi descrito pela primeira vez pelo psiquiatra norte-americano Leo Kanner. O problema, uma espécie de pane no sistema neurológico, é descrito como uma disfunção global do desenvolvimento, marcado por três características fundamentais: inabilidade para interagir socialmente, dificuldade no domínio da linguagem para se comunicar e padrões de comportamentos restritivos e repetitivos.

O que isso significa? Imagine desembarcar em um país estranho, que não consegue se comunicar com ninguém. Você não sabe a língua, não entende como as pessoas se comportam. Quem não ficaria nervoso, agitado e, no desespero, até mesmo agressivo? No limite, talvez esse estrangeiro se fechasse em seu próprio mundo, sem saber como interagir. A metáfora pode parecer simplista, mas dá uma ideia do que acontece na mente de quem tem algum Transtorno do Espectro Autista (leia mais no final da página).

Passados quase 70 anos da descoberta da doença, a luta agora é por detectar o risco precoce e, rapidamente começar o tratamento da criança e o acolhimento dos pais. Essa é a única maneira de evitar que o paciente se feche em seu próprio mundo. Resgatá-lo desse universo particular, mais tarde, em outra fase do desenvolvimento pode ser uma missão quase impossível.

Tornar os serviços de saúde pública, do posto de saúde até os dispositivos mais especializados, aptos para detectar traços de TEA e iniciar o acompanhamento desde o berço é uma das principais bandeiras do Movimento Psicanálise, Autismo e Saúde Pública, que surgiu como reação a uma provocação: no final do ano passado, a Secretaria Estadual de Saúde decidiu fechar o CRIA, o Centro de Referência da Infância e Adolescência, um braço do Departamento de Psiquiatria da UNIFESP, há mais de dez anos reconhecido pelo tratamento multidisciplinar competente e gratuito para bebês, crianças e jovens com TEA e outros problemas graves.

O argumento era de que o trabalho com orientação psicanalítica − realizado ali por pediatras, psicólogos, fonoaudiólogos, terapeutas ocupacionais ou acompanhantes terapêuticos − não tinha bases comprovadas. E também foi lançado um edital, afirmando que apenas os profissionais da Psiquiatria e da Psicologia Cognitivo-Comportamental detinham o conhecimento específico e, portanto, estavam autorizados nesse tipo de tratamento.

A notícia surpreendeu os profissionais da área e eles resolveram se unir. Foram formadas comissões e pedidas audiências com o ministro da Saúde, Alexandre Padilha, e com o secretário da Saúde do Município de São Paulo, José de Filippi Jr.

“Acompanhamos a apresentação do Programa de Saúde e percebemos que ele é bem interessante, mas a proposta de trabalho estava focada no tratamento dos dependentes de crack. Não havia sequer uma palavra a respeito da saúde mental da criança. Então, considerando que é nossa função ética e política, pois muitos de nós trabalhamos com a infância, resolvemos nos organizar e pedimos uma audiência com o secretário municipal de Saúde e equipe. Fomos bem recebidos e percebemos vários pontos de convergência nas nossas propostas de atuação”, diz Eliane Berger, psicanalista há mais de 30 anos, professora do Departamento de Psicanálise do Sedes Sapientiae e uma das articuladoras do MPASP junto à Prefeitura.

Realidade e ficção

 O estereótipo do TEA, em geral, é a daquela pessoa fechada em seu próprio mundo, sem se conectar com nada nem ninguém. O que pouco se sabe, contudo, é que a doença tem diferentes graus de gravidade e não existe um caso idêntico ao outro. Mesmo! A personagem Linda, da novela Amor à Vida, está no ar para mostrar o quanto há de desinformação em relação ao problema e esclarecer, na ficção, a realidade de autistas e suas famílias. Uma forma de diminuir o preconceito e a exclusão.

A internet e as redes sociais também têm ajudado bastante nesse propósito. A atriz Bruna Linzmeyer, que interpreta Linda, afirmou que uma de suas maiores inspirações para compor a personagem foi a canadense Carly Fleischmann*. Aos 11 anos, Carly, que não fala, começou a se comunicar pelo computador e dá notícias sobre sua condição de maneira inteligente e profunda.

O diagnóstico de autismo de Carly foi confirmado quando ela tinha
2 anos. Os médicos diziam aos pais da menina que ela tinha um atraso mental, que permitiria chegar somente ao desenvolvimento de uma criança de 6 anos. No entanto, seu pai sempre soube que, de alguma maneira, ela estava ali, vendo, ouvindo e registrando
suas vivências à sua maneira.
Até que um dia, Carly, subitamente, digitou no computador as letras
que formaram a palavra “hurt” (dor, em português), seguida
de “help”. E ela nunca tinha escrito nada na vida antes.

Divulgação / Rede Globo
Discussão – Mais uma vez, novela da Globo usa a ficção para debater sobre discriminação de portadores de algum distúrbio. A atriz Bruna Linzmeyer interpreta a personagem Linda, de Amor à Vida, para mostrar o quanto há de desinformação em relação ao problema e esclarecer a realidade de autistas e de suas famílias. Uma forma de diminuir a exclusão

Os pais de Carly, então,
a incentivaram a digitar o pedido, quando quisesse algo. Depois de alguns meses, a comunicação fluiu. “Uma sensação de estar dentro de um corpo que você não pode controlar”, é como ela descreve o autismo. Essa foi apenas uma das revelações sobre o que se passa em sua mente. Para tentar compreender o universo de
quem tem o problema, vale primeiro atender a um dos pedidos de Carly: “Eu tenho autismo,
mas isso não é quem sou. Gaste
um tempo para me conhecer antes de me julgar”.

Lapidação gradativa

Como Carly, Vinicius* ficou em silêncio até os 4 anos. Mas, um dia, disse a primeira palavra: “Elefante”. A brincadeira, naquele momento, era assistir à mãe desenhar bichos em uma pequena lousa mágica, aquela em que se escreve e apaga facilmente, acionando um botão. Depois dos cães e gatos de sempre, Vinicius quis porque quis um elefante. Foi quando o menino se superou. “Ele falou por pura necessidade”, conta a mãe, a enfermeira Verônica Pereira dos Santos, de 33 anos. Pouco tempo depois, Vinicius finalmente chamou: “Mamãe!”. “Percebi que ele começou a ver que a linguagem tem uma função”, diz Verônica.

Hoje, aos 5 anos, Vinicius fala “bom dia”, pede água, mas ainda tem um longo caminho no seu contato com o mundo. “A fala não é apenas o aparelho articulador. É expressão do desejo. Se a criança não tem o que expressar, não tem o que dizer. A dificuldade fonoarticulatória, portanto, é de se perceber como pessoa e se expressar”, explica a terapeuta Marizilda, do CRIA.

Alegre, agitado e amoroso, há um ano Vinicius é atendido no CRIA. Para os pais, receber o diagnóstico de autismo também é como embarcar rumo a um país desconhecido, depois de uma longa viagem. A primeira suspeita, no caso de Vinicius, foi de surdez, já que, aos 2 anos, ele não atendia a chamados. Mas o laudo do otorrino comprovou audição perfeita. A pediatra, então, solicitou uma bateria de exames. O neurologista foi o primeiro a levantar a hipótese de autismo, pedindo mais e mais avaliações. Sorte que o convênio médico da família cobriu as consultas. Depois de seis meses de laudos, Vinicius recebeu o diagnóstico de autismo. A palavra, para a mãe, dizia respeito ao estereótipo, a ideia mais comum que passa pela cabeça das pessoas. “Aquela criança isolada, agressiva, estranha”, descreve.

Arquivo pessoal
Contato – Aos 11 anos, Carly Fleischmann começou a se comunicar pelo computador

O maior desafio de Verônica é lidar com essa dificuldade do filho. Na viagem de Franco da Rocha, onde moram, até a Vila Mariana, onde fica o CRIA, ela toma trem e metrô. “Ele corre pelos corredores, grita, tenta me morder”, conta. Verônica entende tudo isso como “característica do autista”, mas não nega o quanto sua vida mudou depois de Vinicius.

Mãe também de Sofia, de 3 anos, ela deixou um dos dois empregos para dar atenção ao menino, que depende dos pais para tomar banho e escovar os dentes. O pai, professor de Ensino Fundamental, é participativo, mas fica mais com o lado caseiro. “Vinicius adora dormir com ele”, conta.

Graças ao atendimento do CRIA, Vinicius saiu das fraldas. Frequenta uma escola regular particular. Os pais ainda pagam a natação e sabem que, se não fosse o atendimento público, o preço dos profissionais seria inviável para o orçamento da família. “Vinicius é um diamante bruto, que precisa ser lapidado”, diz Verônica. A veia dramática do menino fica evidente quando, ao final de uma brincadeira na terapia, ele desce as escadas berrando e estendendo a mão para a mãe, como em uma cena de ópera. “Tudo ele sente em dobro”, diz ela.

A sensibilidade acima da média é atribuída a uma “hipersensibilidade ligada
à desorganização dos sentidos”, segundo a terapeuta. “O barulho, para eles, é muito invasivo
e se torna assustador”, explica Marizilda Pugliesi. Entender as idiossincrasias do filho é o maior desejo de Verônica. “Às vezes, fico olhando para ele e me perguntando: ‘O que se passa nessa cabecinha?’. Daria tudo para ser Vinicius por um dia.”

Em poucos meses, a mobilização ganhou adesão de 450 profissionais e cem instituições parceiras. “Esse é um movimento ético, não corporativista. Não estamos lutando por uma reserva de mercado clínico, mas pelo direito de os cidadãos terem opção entre as várias linhas de tratamento, na hora de escolher o que é mais adequado a seus filhos. Se não são as famílias que escolhem o modo de tratar seus filhos, quem o faria? A indústria farmacêutica? O Estado? Entendemos que um Estado não pode ser tendencioso na implementação de diretrizes de atenção, cuidado e tratamento a ponto de excluir em suas concepções a possibilidade de que as diferentes abordagens, que compõem o cenário científico e de comprovado efeito clínico, tenham lugar nos dispositivos da rede de atenção do SUS. A ideia de escolha é muito cara à psicanálise. É também por esse motivo que insistimos na multidisciplinaridade das equipes e na pluralidade dos tratamentos”, afirma Ilana Katz, psicanalista há 20 anos do Núcleo de Estudos e Pesquisas em Psicanálise com Crianças (NEPPC), do grupo de articulação do MPASP com o Ministério da Saúde.

A curto prazo

Essa ação em rede deu resultado e produziu um fato inédito: “Pela primeira vez, para um movimento organizado de psicanalistas, como o MPASP, a defesa do espaço da psicanálise passa pela defesa da multiplicidade de abordagens teóricas nos tratamentos, defendida pelo SUS”, pontua Eliane Berger.

A grande questão é que os dispositivos de saúde, tanto estaduais quanto municipais, não façam cisão entre os tratamentos para saúde mental e para pessoas com deficiência. No senso comum, costumamos misturar esses conceitos que, em essência, são bem distintos: se olhado como um problema de saúde mental, o TEA tem tratamento, considerando toda a complexidade, singularidade e subjetividade do paciente. E nenhum método ou treino pode ser aplicado para conseguir resultados predeterminados, pois cada caso é único, e eliminar o sintoma não resgata a saúde. Por outro lado, se o TEA for encarado como uma deficiência, o tratamento é a reabilitação, isto é, um treinamento que pode até controlar os sintomas e desenvolver comportamentos socialmente aceitos, mas não resgata o sujeito de seu isolamento. “A Linha de Cuidados do SUS prevê que o atendimento seja realizado por equipes multidisciplinares, nos serviços que já existem e fazendo a integração dos dispositivos de saúde, com os da educação, da cultura, da assistência social. Pelo princípio da territorialidade, como cidadãos, eles são atendidos nos dispositivos que já existem na rede e, assim, evitamos a segregação dos pacientes com TEA”, diz Marcia Innocêncio Moreno, assistente técnica de Saúde Mental da Secretaria do Município de São Paulo.

Hoje, existem 24 Centros de Atenção Psicossocial Infantis em São Paulo e até o final do ano está prevista a inauguração de outros oito e também uma unidade 24 horas, um serviço de emergência para atender crianças com problemas mentais, que ainda não existe na cidade.

“Mas será que essa reflexão da cidade de São Paulo existe para o restante do País? Provavelmente, não. É 1 autista para 100, não é pouco e a assistência não chega para todos. Isso tem lá na frente um grande peso para a Previdência. Se as famílias não sabem tratar seus filhos, esses autistas não trabalhados ficam completamente ineficientes. E a família em volta fica doente também. Um adulto que se comunica, que adquire habilidades básicas de independência, é um adulto melhor para a sociedade toda. Por isso, o autismo é um problema de saúde pública, do começo ao fim”, diz a psicóloga Leila Bagaiolo, da Clínica Gradual, que há 13 anos foi pioneira na aplicação da abordagem ABA (Applied Behavior Analysis) no Brasil, metodologia da linha comportamental considerada eficiente no tratamento de TEA.

Essa clínica atua na esfera pública, capacitando médicos residentes e encaminhando as crianças que chegam aos ambulatórios do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas e na Unidade de Psiquiatria Infantil e Adolescência da UNIFESP.

Como estratégia para conhecer as reais condições da rede de atenção em São Paulo, os profissionais de todos os CAPS Psicossocial Infantis (CAPSi) da capital responderam a um questionário que pretende avaliar a qualidade do atendimento do TEA.

A perspectiva é capacitar todas as equipes, desde a unidade básica de saúde do bairro até escolas e creches, a lidar com esses pacientes que ainda são considerados “esquisitos”.  E o mais importante: isso vai tornar mais fácil fazer o diagnóstico precoce, o que aumenta em muito a chance de reverter os quadros e diminuir muito os sintomas. “Atualmente, a média de idade das crianças que chegam aos CAPS com TEA é de 5 a 6 anos. O ideal é começar o tratamento multidisciplinar até, no máximo, 4 anos, para ter mais chances de melhora. Mas, se a rede estiver preparada, é possível avaliar a situação de risco de TEA e começar o tratamento muito antes dos 3 anos, isto é, da idade mínima para fechar o diagnóstico. Temos inúmeros casos em que é possível ter resultados positivos ou mesmo reverter o quadro com o tratamento precoce. A rede com creches também pode ajudar na melhora e na inclusão dessas crianças”, diz Wagner Ranna, professor de Medicina de Família e Comunidade, da Faculdade de Medicina da USP.

“Aqui, a saúde pública não sai do zero, mas se a Prefeitura, que é a gestora, assume a responsabilidade de cumprir a Linha de Cuidados do SUS no atendimento à população, a cidade ganha potência para realizar mudanças significativas, que podem servir de referência para o restante do País”, completa o médico, que também é psicanalista e atua no Departamento de Psicanálise da Criança do Sedes Sapientiae.

Quanto mais cedo melhor

A chave para o reconhecimento precoce do TEA está na comunicação não verbal, por isso exige que o profissional de saúde seja capacitado para perceber sutilezas no comportamento da criança. É observado, por exemplo, o modo como o bebê olha para objetos, o jeito como ele pede o que deseja (se aponta para o que quer) e como reage quando lhe indicam alguma direção. Mas nem sempre as evidências são óbvias para os pais nem para pediatras ou enfermeiros. Até mesmo a mania de repetição, de se fixar em um brinquedo apenas, ou de querer assistir ao mesmo filme dez vezes, é vista como algo comum em crianças.

Realidae e ficção

Temple Grandin,
dirigido por mick Jackson (2010)

Mary e Max – Uma Amizade
Diferente, de adam elliot (2009)

As Chaves de Casa,
de Gianni amelio (2003)

 

“E quanto mais cedo o tratamento for iniciado, maiores serão os progressos, principalmente nas relações afetivas e nas atividades motoras de rotina”, ressalta Marizilda Ferreira Pugliesi, coordenadora do Programa de Atendimento a Crianças com Transtornos Globais do Desenvolvimento do CRIA. Ela explica a razão da dificuldade de linguagem do autista.

Só quando Henrique* completou 3 anos, sua mãe, a cabeleireira Patrícia Soclia, de 36 anos, suspeitou que havia algo de errado. Até então, ele engatinhou, andou, falou e gostava de chamar a irmã adolescente Bruna de “Bubi”. Um belo dia, deu para repetir tudo o que ouvia. ‘‘Ele respondia à pergunta com a mesma pergunta’’, conta Patrícia. O menino também encafifou com um pedaço de barbante e começou a arrastá-lo pela casa, como se puxasse objetos imaginários. O barbante se tornou o brinquedo favorito, superado apenas pelo prazer em rasgar folhas de papel ou sacolas plásticas de supermercado. “Digo que nossa casa é insustentável. Ele rasga tudo e passa horas brincando com os retalhos de papel ou de plástico’’, diz Patrícia.

As repetições de frases levaram a família a uma fonoaudióloga, que suspeitou de ‘‘traços de autismo’’, o que foi comprovado alguns meses depois por um exame neurológico. O clichê ‘‘meu mundo caiu’’ foi a única frase que ocorreu a Patrícia. ‘‘Naquele momento, tudo o que a gente pensa para um filho, que ele vai ter uma rotina, estudar, casar, nada mais fazia sentido.’’ O marido, taxista, só chorava. ‘‘Hoje, é um pai exemplar’’, ela elogia.

Aos 6 anos, Henrique, há três é uma das 40 crianças com TEA atendidas no CRIA (Centro de Referência da Infância e Adolescência da UNIFESP). Em um casarão verde-água, com primaveras vermelhas caindo sobre o muro, ele passa as tardes de quarta-feira, onde é acompanhado por uma equipe multiprofissional, que conta com médicos psiquiatras, psicólogos, assistentes sociais, terapeutas ocupacionais, psicopedagogos e fonoaudiólogos, para garantir um olhar amplo e abrangente sobre o problema.

Livros para quem quer saber mais

Um Antropólogo em Marte. Oliver Sacks (Companhia das Letras, 1995)

Uma Menina Estranha. Temple Grandin e  Margaret  M. Scariano (Cia. das Letras, 1999)

O Estranho Caso do Cachorro Morto. Mark Haddon (Editora Record, 2004)

A Visita Cruel do Tempo.
Jennifer Egan (Editora   Intrínseca, 2011)

Ele é um menino sorridente, que dá pulinhos quando é apresentado à reportagem da Brasileiros. “As crianças autistas se reconhecem, se entendem. Ele vai embora daqui chorando”, diz a mãe, que parou de trabalhar para dar apoio integral ao filho. Henrique gosta de dinossauros e de brincar com os primos. Frequenta uma escola pública regular, onde Patrícia demorou a se acertar com a professora. Depois de pedir duas vezes um encontro para explicar o caso do filho, não teve resposta. Na reunião de pais, ao perguntar sobre Henrique, ouviu apenas: “Ele só fica no canto da sala, com uns gravetinhos, no mundo dele”. Ao perceber que, na escola, havia o risco de regressão, Patrícia conseguiu uma mudança de sala. A nova professora está em contato com a psicoterapeuta do CRIA para alinhar os caminhos. “Com tratamento e a capacidade de interagir com o mundo, acredito que meu filho vai ter uma vida autônoma”, diz. Atualmente, a estimativa é que 30% das crianças com TEA se tornem adultos independentes. Na década de 1950, eles eram apenas 10%.

Sobre a evolução de cada criança, Marizilda diz que não há uma previsão dos resultados. “São crianças com estruturas não decididas.” Embora existam os graus grave, moderado e leve, ela acredita que defini-los é algo sofisticado. “Cada autista tem competências diferentes.” Um dos casos emblemáticos é o de um menino que não se percebia como pessoa. “Ao chegar aqui, ele apenas rodava com um pião. Era obeso, não tinha dimensão de si mesmo e nem contorno definido.” Hoje, depois de sete anos no CRIA, ele frequenta uma escola pública regular.

“Nunca vi uma criança autista igual a outra”, afirma Patrícia, desfazendo mais uma vez o estereótipo do menino em um canto isolado, se balançando. Passado o choque de ser “mãe de autista”, ela só vê qualidades no filho. “Henrique é um anjo, por dentro e por fora. Sua essência é pura. Ele não identifica o feio e o bonito. Acha tudo lindo. Se cada ser humano fosse um pouco autista, o mundo seria melhor”, diz.

Marizilda não vê o quadro com tanta poesia. “É um distúrbio que gera sofrimento, precisa ser diagnosticado e tratado.” Sua recompensa, confessa, é ouvir das mães: “Acho que agora meu filho entendeu que é uma pessoa”. Isto é, um ser humano com subjetividade e singularidade, que não pode ser apenas treinado para se adaptar ao mundo.

Uma só palavra para todas categorias

O termo Transtorno do Espectro Autista foi lançado na recém-publicada edição do DSM-V, o Manual de Classificação de Doenças Mentais da Associação Americana de Psiquiatria, que serve de referência mundial para estabelecer diagnósticos. Outra mudança: o DSM-V desconsidera as categorias autismo, síndrome de Asperger, Transtorno Desintegrativo e Transtorno Global do Desenvolvimento Sem Outra Especificação. Todos são designados como TEA e as avaliações priorizam a intensidade dos sintomas, que podem ser leves, moderados ou severos. O manual está causando polêmica. Muitos consideram simplistas seus critérios de elaboração, o que daria margem a diagnósticos abrangentes demais. Há quem considere também o documento excessivamente favorável à medicalização. A Lei nº 12.764 da Constituição Brasileira, do final de 2012, já considerou essa atualização e instituiu uma Política Nacional de Proteção dos Direitos da Pessoa com Transtorno do Espectro Autista, que favorece cerca de dois milhões de pessoas.


*Os pais vinculados ao CRIA autorizaram a publicação dos nomes dos filhos, menores de idade.

 


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