Do canavial ao estaleiro: “meu São Paulo é aqui”

No texto de apresentação de Navegar é Possível, que conta a epopeia da construção do primeiro navio brasileiro nos últimos 14 anos, entregue no começo de maio à Transpetro, o presidente da empresa, Sergio Machado, narra uma história emblemática que resume a transformação provocada na vida da população nativa após a instalação do Estaleiro Atlântico Sul em Suape: “Aos 12 anos, Hildebergue Felix da Costa já cortava cana na zona rural da região de Ipojuca, em Pernambuco. Dez anos depois, sem oportunidades na sua cidade, este filho de agricultores deixou o Estado rumo ao interior de São Paulo em busca de emprego. Em 2006, ouviu falar que a sua cidade natal passava por uma revolução. Lá estava sendo instalado o maior estaleiro do Hemisfério Sul. Hildebergue voltou para casa. No lugar onde antes funcionava um matadouro, encontrou um centro de treinamento profissional. Hildebergue estudou e conseguiu emprego. Hoje, ele mesmo afirma: ‘Meu São Paulo é aqui’.

Na hora do almoço, parada em frente ao navio João Cândido, o primogênito da retomada da indústria naval no País, a soldadora Josenilda Maria da Silva, 32 anos, madrinha do navio, fica admirando a obra enquanto aguarda o momento de posar para o fotógrafo da Brasileiros. E abre um largo sorriso quando lhe pergunto:
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– O que você sente ao ver este navio pronto?

– Sabe, eu fico pensando se fomos nós mesmos que fizemos isso tudo com a nossa solda…

Hoje, assim como Hildebergue e Josenilda, fazem parte dessa história 3.700 funcionários, a grande maioria filhos de lavradores, homens e mulheres que já trabalharam nos canaviais das antigas usinas da Zona da Mata. Haviam migrado para o Sul ou estavam desempregados, quando o Estaleiro Atlântico Sul – empresa formada pelas empreiteiras Camargo Corrêa e Queiroz Galvão em sociedade com os sul-coreanos da Samsung e a PJMR – começou a mudar a paisagem do mangue e a vida dos moradores da região.

Quem está aqui desde o começo é o engenheiro de manutenção e administrador de empresas Gerson Beluci Miguel, paulista de Palestina, pequena cidade da região de São José do Rio Preto, que estava estudando propostas de trabalho em Brasília e São Paulo, quando amigos do Recife lhe falaram da instalação de um estaleiro em Suape.

Mandou seu currículo, com passagens por grandes empresas, mais o MBA em gestão empresarial pela Getúlio Vargas e, no dia 8 de janeiro de 2007, foi contratado como gerente administrativo. Agora é diretor da mesma área, responsável por recursos humanos, meio-ambiente, tecnologia da informação e comunicação. Beluci mostra com orgulho o seu crachá de número 0008.

Ao mesmo tempo em que começava a ser erguido o grande galpão do estaleiro, ele foi encarregado de cuidar da formação da mão de obra, de preferência recrutando trabalhadores da região, por decisão dos acionistas da empresa. Quando as inscrições foram abertas, milhares de pessoas chegavam a dormir nas filas nos postos instalados em cinco cidades (Ipojuca, Cabo, Jaboatão, Moreno e Escada), em parceria com as prefeituras, o governo estadual e o Sesi-Senai.

Os únicos pré-requisitos para admissão eram idade mínima de 18 anos e ter estudado pelo menos até a 4ª série do ensino fundamental. Dos mais de 20 mil inscritos, 4.700 foram aprovados para fazer os cursos de nivelamento escolar, que constavam de 100 horas de português e mais 100 de matemática. “Tomamos a decisão de formar trabalhadores a partir do zero, sem nenhuma experiência, para lhes ensinar as características próprias da indústria naval.”

Um prédio abandonado do antigo Matadouro Público Municipal de Ipojuca foi transformado por Beluci, com a ajuda da prefeitura, em uma escola que ele chamou “Escola Nascedouro de Talentos”. Depois de dois meses de curso, os aprovados eram encaminhados para o Senai em Cabo de Santo Agostinho. A cada dois meses, 300 eram chamados para o Centro de Treinamento Engenheiro Francisco Vasconcelos, já com uma bolsa mensal de R$ 120,00, transporte oferecido pela prefeitura e lanche pela empresa.

O estaleiro e o primeiro navio foram construídos simultaneamente, junto com a formação da mão de obra, com 90% dos funcionários tendo sido recrutados e formados na própria região de Suape. Em apenas 22 meses, seria erguido o maior estaleiro do Hemisfério Sul, de onde já saiu o primeiro navio, que está em fase de acabamento no dique molhado e deverá zarpar em agosto rumo ao Rio de Janeiro. Outros 22 petroleiros já foram encomendados pela Transpetro e deverão ser entregues até 2015.

Não faltará trabalho tão cedo para os antigos cortadores de cana, pescadores, donas de casa, agricultores, guardas municipais, vendedores de amendoim e catadores de castanha, agora transformados em soldadores e montadores. Entre eles, estão 450 mulheres como a madrinha Josenilda, que tinha virado apenas dona de casa depois que fechou a cerâmica Vale do Sol, onde trabalhava, em 2007.

O pai, Josias, que trabalhava em uma usina de açúcar, sumiu de casa quando ela tinha quatro anos. A mãe, Maria do Carmo, em meio a uma briga, acertou um paralelepípedo no marido, e viajou para São Paulo. Josenilda e a irmã Joseana foram para a casa da avó materna, Antonia. Dois anos depois, a mãe voltou, e a vida seguiu seu rumo sem maiores atropelos para Josenilda, que terminou o segundo grau e queria ser repórter. “O dinheiro foi curto para fazer faculdade… Eu queria ser repórter porque gostava de conversar com as pessoas, saber da vida dos outros…”

Sempre sorridente e despachada, começou a trabalhar aos 19 anos como aprendiz de ceramista. Com o primeiro salário, comprou um tênis e deu o restante para a avó Antonia. Na cerâmica, conheceu o marido, Inaldo, com quem está casada há dez anos e tem dois filhos. “Casei de enxerida, eu nunca quis ser dona de casa”, conta ela, que passou cinco anos sem trabalhar fora até surgir a notícia em Ipojuca de que o estaleiro estava abrindo inscrições.

Josenilda só se inscreveu no último dia. Havia 500 vagas para quatro mil inscritos na cidade. Ela foi uma das primeiras a ser chamada para a turma 00 no Centro de Treinamento. “Não encontrei dificuldade. Trabalhar na solda é mais fácil do que ser dona de casa…” Com o marido desempregado, fazendo bico com moto-táxi, é o seu salário de R$ 862,00 que garante as despesas da casa, mas ela quer mais. Primeiro, fazer curso de inspetor de solda, que paga um salário em torno de R$ 3 mil e, mais tarde, quem sabe, fazer a escola de Engenharia Naval, que o governo estadual prometeu construir na região.

É o mesmo sonho do soldador Carlos Antonio Calisto, de 36 anos, paulista de Guarulhos, que emigrou para o Japão junto com a mulher, a sansei Márcia, em 2002. Agora, ele é um dos 120 dekasseguis repatriados pela Atlântico Sul para trabalhar no estaleiro de Suape. No Japão, os dois também trabalhavam como soldadores, e não pensaram duas vezes quando surgiu o convite para voltar a trabalhar no Brasil.

O casal chegou ao Brasil no dia 16 de janeiro. Dois dias depois, já estava trabalhando no estaleiro. “Eles estavam precisando de gente…”, conta Calisto. Pois é, e eles, que saíram do Brasil havia oito anos, justamente em busca de trabalho, agora estavam sendo recrutados no Japão para trabalhar em Pernambuco. Carlos e Márcia encontraram o País mudado: os salários subiram – cada um recebe R$ 1.690 por mês como soldador especializado -, mas os aluguéis também. Eles não se conformam em pagar R$ 900 por um apartamento pequeno em Jaboatão, mais do que recebem como “ajuda aluguel”.

Ainda se adaptando à nova vida, os Calisto estão botando fé no prometido plano de carreira da empresa e querem fazer cursos para ganhar mais. Com pressa para não enfrentar uma fila muito grande no refeitório, onde são fornecidas sete toneladas de alimentos por dia aos funcionários, incluindo os 1.500 das empreiteiras que trabalham nas obras, o casal agora faz planos para melhorar de vida, sem sair do Brasil.

Os dekasseguis retornados são operários que agora sonham alto. Querem ser engenheiros navais, como tantos outros jovens do estaleiro, que ali tiveram a sua primeira carteira de trabalho assinada. Vive-se aqui um clima de alto astral, de coisas novas acontecendo, e dando certo. No dia do lançamento do navio, 7 de maio, encarregada de cortar a cordinha para estourar uma garrafa de champanhe no casco, a madrinha Josenilda disse ao presidente Lula para não se preocupar porque ela não falharia nessa tarefa. “Pode ficar tranquilo, presidente. Eu sou mulher de sorte. Levanto todo dia da cama de pé direito…” O João Cândido foi bem batizado.

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