Dois pousos, duas medidas

Em um período de um mês, dois aviões se acidentaram de maneira estranhamente semelhante. Os dois pilotos obrigados a realizar um pouso forçado, optaram por descer em um rio. A única diferença entre os dois casos foi o resultado das aterrissagens.
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Dia 15 de janeiro de 2009. No vôo 1549, que desceu no Rio Hudson, em Nova York, após a turbina tragar alguns pássaros logo em seguida à decolagem, sucesso total, um pouso perfeito, todas as 155 pessoas sobreviveram e o piloto transformou-se em herói nacional.

Já no Brasil a história foi diferente. Dia 7 de fevereiro de 2009. O piloto do Bandeirante modelo EMB110 foi obrigado a fazer um pouso no Rio Manacapuru, quando ia do município de Coari rumo a Manaus. Porém, o resultado foi muito diferente: das 28 pessoas que estavam no avião apenas quatro sobreviveram. Uma verdadeira tragédia.

Mas, como explicar os resultados tão diferentes em casos aparentemente parecidos? No caso do Brasil, o piloto foi o culpado? No caso de Nova York, o piloto foi realmente um herói? Para esclarecer essas e outras perguntas, Brasileiros falou com o piloto Ruy Flemming*, instrutor padrão da Academia da Força Aérea, ex-piloto da Esquadrilha da Fumaça e especialista em Segurança da Aviação pelo ITA (Instituto Tecnológico de Aeronáutica). Atualmente, Flemming, que tem mais de 7.500 horas de vôo em diversas aeronaves, atua como piloto na aviação executiva e assina artigos para revistas especializadas em aviação. Confira o papo com o piloto.

Brasileiros – Qual a dificuldade principal para um piloto fazer um pouso na água?
Ruy Flemming –
Desde cedo, os pilotos aprendem as técnicas para minimizar os estragos de um pouso na água com uma aeronave preparada para pousar apenas em terra firme. Porque essa situação só vai acontecer em emergência, ninguém treina com o avião real. O principal problema é a desaceleração brutal que a aeronave sofre depois que toca na água.

Brasileiros – Como explicar o sucesso do pouso no Rio Hudson, em Nova York, e a tragédia ocorrida no Rio Manacapuru, próximo a Manaus?
R.F. –
Quanto ao evento de Nova York, não há dúvidas de que tenha sido um pouso forçado na água. As imagens e as transmissões entre o avião e a torre de controle comprovam essa teoria. Logo depois de atingir os pássaros, o comandante deixou claro que não teria outra alternativa senão pousar no Rio Hudson. Em Manacapuru, o pouso forçado na água ainda é uma teoria.

Brasileiros – Qual o tipo de dificuldade geográfica dos dois pilotos, já que apesar de os dois pousarem em um rio, em um caso o pouso foi feito no coração da populosa cidade de Nova York, e o outro desceu em plena floresta tropical amazônica?
R.F. –
Acredito que um piloto que tiver um sério problema com seu avião, tanto sobre uma grande cidade, quanto sobre a selva, e tiver condições de escolher, vai optar por pousar num rio para minimizar os estragos e aumentar as possibilidades de sobrevivência. Se não existir uma pista, um rio pode garantir um espaço para que haja a desaceleração. A diferença entre o cenário nova-iorquino e o amazônico, obviamente, é o resgate depois do acidente.

Foto: Michell Mello / Em Tempo / AE
O Bandeirante EMB110 sendo puxado do fundo do Rio Manacapuru, no Amazonas

Brasileiros – A preparação que os pilotos recebem para enfrentar esse tipo de emergência é igual em todos os países?
R. F. –
A Organização de Aviação Civil Internacional (OACI) determina os requisitos mínimos para a operação das aeronaves entre os países signatários, que são em número de 190. Cada país tem sua própria legislação, que pode ser mais restritiva. A grande diferença entre os dois casos, no que se refere à legislação, reside no fato de que no caso de uma companhia aérea (US Airways), a legislação é mais restritiva do que no caso de um táxi aéreo (Manaus Aerotaxi).

Brasileiros – Quanto às aeronaves, o procedimento é diferente no caso desse tipo de pouso de emergência já que no Hudson era um Airbus A320 enquanto no Amazonas era um Bandeirante EMB110?
R. F. –
Cada fabricante sugere os procedimentos para pouso em emergência na água. De forma geral, o toque deve acontecer com o trem de aterrissagem recolhido e com a menor velocidade possível.

Brasileiros – O Airbus, muito mais pesado, flutuou sobre a água e possibilitou que todos os passageiros fossem resgatados com segurança, já o Bandeirante afundou. Como explicar isso?
R. F. –
O Airbus A320 é uma aeronave pressurizada, o que lhe garante a possibilidade de voar em altitudes maiores. É como se fosse um enorme cilindro de ar. O Bandeirante não é pressurizado, diversos pontos de sua fuselagem permitem uma interface com o ar exterior. Num suposto pouso na água, o Bandeirante teria menores possibilidades de se manter na superfície. Além disso, dependendo da maneira como se dá o contato com a água, pode haver uma ruptura da fuselagem, diminuindo ainda mais a capacidade de flutuação.

Brasileiros – O fato de no caso do Rio Hudson o avião ter decolado há apenas três minutos, e na tragédia do Amazonas a aeronave estar voando já há uma hora é determinante?
R. F. –
Na hipótese de os dois aviões operarem dentro das limitações de peso previstas, o Airbus estaria mais próximo do seu limite máximo de peso que o Bandeirante, que já teria consumido combustível durante o vôo. O pouso forçado na água é, na teoria, mais crítico quanto mais pesado o avião estiver.

Brasileiros – Segundo o que foi divulgado pela imprensa, o EMB110 estaria com sua lotação excedida. Esse pode ter sido o motivo da tragédia? Não seria o caso de o piloto se pronunciar e impedir a decolagem do avião com aquelas condições?
R. F. –
O problema não é só a quantidade de pessoas a bordo. O número de passageiros tem a ver com o espaço disponível para acomodar pessoas em segurança. O que conta na aviação é o peso. Cada aeronave é certificada e homologada pela autoridade aeronáutica para operar dentro de uma gama de peso, segundo critérios do fabricante. Os gráficos de desempenho, contidos nos manuais do avião, são uma das ferramentas fundamentais que os pilotos têm à mão para operar dentro dos limites. Operar dentro do envelope de vôo é a garantia de não haver problemas estruturais e, no caso da falha de um dos motores, o piloto ser capaz de prosseguir o vôo. De maneira simples, o peso das pessoas, carga, e combustível, somado ao peso básico da aeronave, não pode ultrapassar os limites impostos pelo fabricante. Quanto ao comandante, ele exerce autoridade plena dentro da aeronave e deve sempre operar dentro das normas e limitações.

Foto: He Bin / Xinhua / AE
No Rio Hudson, em Nova York, todos os 155 passageiros foram resgatados com vida

Brasileiros – No caso do Rio Hudson, o motivo do acidente foi um pássaro tragado pela turbina, problema que estamos acostumados a enfrentar nos aeroportos brasileiros. O que fazer para evitar esse tipo de acidente?
R.F. –
Existe no Centro de Investigação e Prevenção de Acidentes Aeronáuticos (Cenipa), um programa que controla o Perigo Aviário, como é conhecido o acidente envolvendo aeronaves e pássaros. No ano passado, das 390 colisões reportadas, em 244 não foi possível determinar a ave envolvida, 38 aconteceram com os pequenos quero-queros que costumam passear pelas pistas e 35 delas (9% do total), causadas pelos urubus. Esses últimos costumam causar mais estrago pelo peso, tamanho e por serem facilmente encontrados próximos a alguns aeroportos. A mesma estrada que leva o passageiro até o aeroporto para voar, costuma levar o lixo produzido pela cidade até os lixões. O trabalho do Cenipa é estimular o reporte de colisões, quase-colisões e pássaros avistados, determinar as áreas mais sensíveis e promover ações para desestimular a concentração de aves próximas aos aeroportos.

*Ruy Flemming é instrutor padrão da Academia da Força Aérea, ex-piloto da Esquadrilha da Fumaça, especialista em Segurança da Aviação pelo ITA (Instituto Tecnológico de Aeronáutica), membro do IHST – International Helicopter Safety Team. Atualmente atua como piloto na aviação executiva e assina artigos para revistas especializadas em aviação. Possui 7.500 horas de vôo em diversas aeronaves.


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