Aeroporto de Congonhas, terça-feira, 17 de julho, 18h45.

Tragédia: a maior da aviação ao sul do Equador.

Contexto: dez meses antes, falha no sistema de controle de tráfego aéreo, mais o provável descaso dos pilotos norte-americanos de um jatinho executivo Legacy, da Embraer, derruba um Boeing 737-800 da Gol, novinho em folha, vôo 1907, Manaus-Brasília, com 155 pessoas a bordo.

Advertência: a pane é geral; empresas aéreas, controles de segurança, agência reguladora, Aeronáutica, organismos oficiais, ninguém é capaz de desmentir este panorama de pavor: voar, no Brasil, é hoje operação de alto risco.

Aquele vôo 3054, da TAM, deu em todos nós, ao preço trágico de 199 vítimas, um choque de realidade: aconteça o que acontecer, nada será como antes. O prazer de voar virou arrepio na espinha e frio na barriga (leia mais nas páginas seguintes). A julgar pelo que já foi apurado, o vôo 3054, da TAM, é uma espécie de concentrado simbólico de todos os erros possíveis:

1 – Um aeroporto antigo (de 1936), encravado em uma metrópole, duas pistas, sem área de escape, 91.400 pousos e decolagens e 7.689.879 passageiros até maio de 2007 – apesar dos pesares, o de maior movimento no País.

2 – Por conveniências comerciais, foram as empresas aéreas, com o aval das autoridades do setor, que pressionaram para que um aeroporto complicado – para alguns, inviável – viesse a acolher aviões de grande calibre: Boeing 727-200, Boeing 737-300, Boeing 737-800, Airbus A300, Airbus A320 (este, o do fatídico vôo 3054).

3 – O Airbus A320 que se espatifou contra um prédio e explodiu do lado de lá da pista de Congonhas tinha passageiros além de sua capacidade, combustível a mais do que o necessário (a TAM fala em reserva técnica, mas as companhias evitam reabastecer em São Paulo porque o imposto estadual sobre combustível é mais caro) e um equipamento auxiliar para a frenagem (o reverso de uma das turbinas) danificado.

4 – Chovia e a pista reformada – mas ainda sem os groovings, as ranhuras que ajudam a escoar a água – foi aberta antes do prazo, por pressão das companhias.

5 – A caixa-preta revela que o manete de comando estava em posição errada, o que acelerou o Airbus, em vez de freá-lo (no mesmo dia, o avião tinha passado por rápida manutenção em Congonhas: o problema da turbina fora detectado, mas a inspeção só durou 20 minutos).

6 – A TAM é reincidente em tragédias mal explicadas. Ali mesmo em Congonhas, em 1996, na outra cabeceira da pista, um Fokker 100 também com problemas no reverso caiu sobre casas e matou 99 pessoas.

A lista de erros pode ir ao infinito, deixando no ar a consistente dúvida: o vôo TAM 3054 foi uma exceção de triste memória ou é a regra geral na aviação comercial brasileira? Acusado, de cara, de ser um dos responsáveis pelo chamado “apagão aéreo” (que deu em CPI para que os atores da oposição pudessem brilhar, desta vez em macabro pano de fundo), o governo federal acabou fazendo o mais sincero e assustador diagnóstico, pela voz de ninguém menos do que o próprio Lula. “O sistema está em metástase”, disse o presidente da República.

O sistema inclui: o Ministério da Defesa, o comando da Aeronáutica, a Infraero (que administra 66 aeroportos e 32 terminais de carga), o Departamento de Controle do Espaço Aéreo (responsável pelos Cindactas, a rede que teoricamente zela para que aeronaves não se choquem em pleno vôo), o Conselho de Aviação Civil (que assessora a Presidência de República), o Centro de Gerenciamento de Navegação Aérea (CGNA, o fórum que reúne governo, companhias e Aeronáutica). É muita sigla para pouco desempenho.

É curioso que, na crise, tenha saído de circulação, ou quase, uma das siglas mais faladas durante o governo FHC: o Sivam, Sistema de Vigilância Aérea da Amazônia. Foram gastos perto de R$ 3 bilhões para que jamais ocorressem acidentes como o que vitimou o Boeing da Gol. Plantaram-se antenas possantes pela mata adentro, de forma a se ter uma cobertura tão perfeita e tão minuciosa que até os aviõezinhos dos traficantes de drogas, procedentes da Colômbia ou da Bolívia, pudessem entrar no campo do radar.

O sistema é impecável, mas eis aqui mais um caso exemplar do jeito Brasil de encarar as responsabilidades. Ficaram faltando ao Sivam os aviões-radares que complementariam a rede de proteção de patrulhamento. A própria Embraer teria como fabricá-los. O investimento no Sivam ficou pela metade. Acidentes continuam acontecendo sobre a Amazônia – e os traficantes, operando alegremente.

A cacofonia de siglas, de autarquias e de entidades, à qual pode se juntar uma Secretaria Executiva da Aviação Civil, idéia do novo ministro da Defesa, Nelson Jobim (o anterior, Waldyr Pires, caiu junto com o Airbus da TAM), não seria uma inutilidade burocrática se ao menos fosse operante a Agência Nacional de Aviação Civil (Anac).

O cirurgião e a metástase
A fórmula “agências reguladoras” vem do governo Fernando Henrique. É um jeito moderno e civilizado de reduzir o poder do Estado sobre áreas dinâmicas da economia. Na área das telecomunicações: a Anatel. Do petróleo: a ANP. Da saúde e vigilância sanitária: Anvisa. Assim fazem os Estados Unidos, o Japão e os países europeus. Agências reguladoras têm autonomia de decisão – tanto que não cabe ao governo retirar o mandato de seus membros. Agências reguladoras, de resto, emolduram uma nova realidade de poder em que entidades da sociedade civil e empresas do setor passam a ser co-responsáveis pelas decisões e por suas conseqüências.

A Anac, em teoria, é um órgão que não se confunde com o governo. Tem estatuto jurídico para – até – contrariá-lo. Na prática, porém, age como um cirurgião incapaz de qualquer reação diante da metástase já diagnosticada por Lula. Atua como apêndice de um governo que adora empurrar as coisas – e as crises – com a barriga.

As reiteradas vítimas dos desastres aéreos assombram, para sempre, nosso cotidiano. Acabou a ingenuidade – aquele gostinho de, como diz aquela música do Milton Nascimento, sonhar nas asas da Panair.


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