Na história do cinema, poucos diretores tiveram o nome intrinsecamente ligado a um estilo narrativo ou estético a ponto de tornar-se um adjetivo, como hitchcockiano ou felliniano. Autores de peso, Felinni e o velho Hitch impuseram tal façanha após rodar latas e latas de filme e consolidar extensas carreiras. Em 1992, um aspirante a ator e roteirista, ex-balconista de videolocadora incluiu à força seu sobrenome no glossário dessa nobre seara. Quentin Tarantino, um jovem ítalo-americano de 29 anos, deixou imprensa, roteiristas e diretores atônitos com o longa-metragem Cães de Aluguel.
Duas décadas depois, ele continua fazendo jus ao tarantinesco que conquistou com seu filme de estreia, sustentado por diálogos impagáveis, impregnados de um humor sarcástico e politicamente incorreto, a ultraviolência cômica de seus personagens e a obsessão por subgêneros do cinema, subsídio da frenética metalinguagem que marcaria seus outros filmes.
Lançado em 2000, nos Estados Unidos sob o título Quentin Tarantino – The Geek Film Files (algo como Quentin Tarantino – Os Arquivos do Viciado em Cinema), o almanaque organizado pelo jornalista Paul A. Woods chega às nossas livrarias, especialmente atualizado para o mercado brasileiro, com artigos sobre os filmes lançados posteriormente por Tarantino, os volumes I e II de Kill Bill, À Prova de Morte, e o mais recente deles, Bastardos Inglórios, que subverte a história ao mudar os rumos de ninguém menos que Adolf Hitler.
O lançamento do almanaque é uma iniciativa do selo Barba Negra, da Editora Leya, e ganhou apenas o nome Quentin Tarantino. A obra reconstitui a trajetória do inventivo cineasta a partir de artigos, resenhas, entrevistas e textos de diversos autores e do próprio – discorrendo sobre seus filmes e fetiches, como o movimento Blaxploitation (que colocou os negros americanos na tela do cinema, nos anos 1970), fitas obscuras de Kung Fu, os filmes do mestre do terror italiano, Lucio Fulci, e os western spaghetti (o famigerado bangue-bangue à italiana, por aqui).
O livro explicita os trunfos que levaram Tarantino à defesa de parte da crítica de ser ele o mais importante cineasta de sua geração, mas também é justo em evidenciar deslizes como o oportunista filme de episódios Grande Hotel (no qual ele assina com amigos um dos quatro curtas), produzido na esteira do sucesso de Pulp Fiction.
Muito antes de se tornar o queridinho do mundo do cinema, com superpoderes de um astro de rock, Tarantino nasceu e foi criado em South Bay, em Los Angeles, cercado por três mulheres e o padrasto. É o tímido primogênito de Connie, uma adolescente de 16 anos que, na infância do menino, passava horas em casa assistindo ao Soul Train com Jackie, uma negra americana, e a mexicana Lilian, amigas que dividiam o modesto lar onde morava o futuro cineasta. Exibido aos sábados, o programa da rede WCIU de TV era apresentado por seu criador, Don Cornelius (morto em fevereiro deste ano), e foi porta-voz da cultura negra dos anos 1970, palco dos maiores artistas da soul music e do funk americano, como Stevie Wonder, Kool & The Gang, Isaac Hayes e James Brown.
Tarantino era obcecado pelo Soul Train, a ponto de sonhar em ser o primeiro branco a integrar a trupe de negros que embalava o estúdio com suas danças desconcertantes, roupas e cabelos extravagantes. Sobre esse período de sua vida, ele revela, provocativo, em Blaxploitation: O que é… O que era!: “Nunca senti falta dos anos 1960, porque tive os 70 dos negros, e prefiro isso à década dos hippies”. No artigo, ele elege Coffy seu filme predileto do Blaxploitation. A fita de Jack Hill é estrelada por Pam Grier, musa do movimento, que foi tirada do total ostracismo por Tarantino, em 1997, ao protagonizar a aeromoça de seu terceiro filme Jackie Brown. Grande ironia, o livro reproduz o artigo O Mundo N, onde o jornalista Pascoe Sawyer resgata a celeuma com Spike Lee que, logo após a estreia de Pulp Fiction, acusou Tarantino de racismo por utilizar 28 vezes a palavra nigger (negro, em conotação ofensiva, segundo Lee) em Cães de Aluguel e 38 vezes em seu novo filme, que havia acabado de arrebatar o júri de Cannes, em 1994, e levado a Palma de Ouro.
A premiação no renomado festival francês abriu caminho para a estrada ascendente do ítalo-americano que, conforme anuncia a página 67 do almanaque, tem três diretores de mesma procedência em sua lista de dez filmes prediletos: Martin Scorsese, por Taxi Driver (“É simplesmente perfeito!”, justifica), Sergio Leone, pelo clássico western Três Homens em Conflito, e Brian De Palma, duas vezes citado, com Pecados de Guerra e Um Tiro no Escuro, filme que tem o título original Blow Out e presta tributo a outro clássico do cinema italiano, Blow Up, de Michelangelo Antonioni.
Como Tarantino, De Palma sempre abusou da metalinguagem e da reverência a outros diretores. Seu Vestida para Matar, com a brilhante atuação de Michael Caine, é explicitamente hitchcockiano. Protagonizado por John Travolta, Um Tiro no Escuro é, para Tarantino, a prova inconteste do grande talento do ator e o fez desejá-lo para o papel de Vince Vega, o gângster fora de órbita que contracena com Samuel L. Jackson em Pulp Fiction. Para justificar a inclusão de Acossado, de Jean-Luc Godard, na lista de seus dez mais, o diretor recomenda: “Veja a resenha de Pauline Kael”, referindo-se à primeira-dama da crítica cinematográfica americana. Tipicamente tarantinesco.
O almanaque é um belo aperitivo para os fãs aguardarem a estreia de Django Livre, o novo longa do cineasta, que será lançado no Natal, nos Estados Unidos, e previsto para chegar aos cinemas brasileiros em 18 de janeiro de 2013. Divulgado recentemente, o trailer do faroeste protagonizado por Jamie Foxx é recortado por The Payback, clássico de James Brown, de 1973, que, muito provavelmente, voltará a embalar festinhas de descolados ao redor do mundo, como fez a milionária trilha de Pulp Fiction.
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