Duas décadas satyrianas

Quem passeia à noite pela Praça Roosevelt dificilmente acreditaria que, há cerca de 10 anos, eram poucos os que tinham coragem de caminhar pelo então “lado selvagem” do Centro de São Paulo. O endereço parecia ter saído da lírica mais sombria dos discos de Lou Reed. Se hoje aquele pedaço da cidade pulsa em vida e representa parada obrigatória para turistas em busca de efervescência cultural, ponto de encontro de artistas, jornalistas, escritores, dramaturgos, diretores, cenógrafos e demais agitadores culturais, muito se deve ao grupo Os Satyros.

Para comemorar os 20 anos de existência da companhia e os dez de residência na praça, a Imprensa Oficial acaba de lançar Os Satyros, fotobiografia bilíngue que reúne registros fotográficos de 44 montagens realizadas ao longo de sua trajetória. Com organização de Germano Pereira e texto de apresentação de Aimar Labaki, o livro traz ficha técnica completa de cada uma das peças e oferece um verdadeiro passeio pela aventura imaginativa de Os Satyros.
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Ao lado da obra Cia. de Teatro Os Satyros – Um Palco Visceral, parte da coleção Aplauso, também editado pela Imprensa Oficial e escrito pelo saudoso ator, escritor, professor, crítico e, além disso, um satyro, Alberto Guzik, completa a história da companhia.

Quando a trupe Os Satyros escolheu o endereço como sua sede e abriu o primeiro Espaço dos Satyros, a região era conhecida como polo aglutinador de traficantes, michês, travestis e prostitutas, com a história ainda morna de um bar fechado depois de uma chacina. “Quem viu essa praça há dez anos, tem de reconhecer o incrível trabalho de um grupo de artistas pela democratização da arte e sua colaboração para a melhoria das condições sociais e urbanísticas da praça”, diz Fabio Delduque, artista plástico, diretor artístico e produtor cultural. O grupo, no entanto, tinha a seu favor a experiência adquirida quando, no início dos anos 1990, arrendaram o extinto Teatro Bela Vista e o transformaram em uma espécie de “Meca” temporária da vanguarda paulistana.

Passando por cima das ameaças vindas de seus antigos moradores, em pouco tempo Os Satyros conseguiram revitalizar a Roosevelt e arredores. Seguindo seus passos, outras companhias de teatro, como o grupo Parlapatões, também se mudaram para lá. Hoje, é preciso reconhecer a importância de Os Satyros e os demais artistas que acreditaram em sua proposta para o processo de revitalização do Centro de São Paulo ainda em andamento.

Celebração dionisíaca
A chegada à Praça Roosevelt encerra uma fase sem endereço fixo e quase nômade, quando a companhia se dividia em apresentações por diversos países da Europa, tendo como base Lisboa, Portugal, e temporadas em Curitiba e São Paulo e marca a realização do primeiro Satyrianas – Uma Saudação da Primavera, evento descrito por seus realizadores como uma celebração dionisíaca em homenagem ao poder do teatro. Espécie de megafestival de artes, incluindo não só o teatro, mas também cinema, circo, música, literatura, histórias em quadrinhos e arte de rua, as Satyrianas chegam a reunir 50 mil pessoas durante os quatro dias de evento, além de fazerem parte, hoje, do calendário cultural do Estado de São Paulo. Realizada entre os dias 25 e 28 de novembro, a 11a edição teve como homenageado Alberto Guzik. Espécie de mentor do grupo, Guzik faleceu em 26 de junho deste ano. A edição 2010 trouxe novidades, como o projeto Ouvi Contar, que surgiu da parceria entre a companhia e a SP Escola de Teatro. O projeto realizou em domicílio de moradores da Roosevelt uma série de leituras dramáticas. Este ano, no entanto, boa parte dos espetáculos e tendas tiveram de ser deslocados para o Parque Augusta, localizado na esquina da rua Augusta com a Caio Prado, tirando temporariamente o evento do quintal dos Satyros, isto por causa das reformas, há muito tempo aguardadas, que estão sendo realizadas na praça. O braço cinematográfico do evento VisuMix, no entanto, manteve-se na Roosevelt com projeções de filmes de arte, vídeos experimentais e videoclipes com trabalhos de mais de 50 artistas convidados, com destaque para Dora Longo Bahia, Eder Santos, Maurício Ianês, Bijari e Helena Ignez. Os trabalhos foram projetados sobre as lajes da praça que serão demolidas nos próximos meses. “Acho que será o último registro dessas estruturas e achamos importante esse momento de transformação”, diz Delduque, que divide a curadoria do evento com Patricia Godoy.

Longo caminho
Apesar de tudo, as coisas ainda não são fáceis para a companhia. “Nas comissões que se dedicam a distribuir verbas públicas para a cultura, estamos sendo solenemente ignorados há mais de três anos”, desabafa Rodolfo García Vázquez que, ao lado de Ivam Cabral, fundou o grupo em São Paulo, no ano de 1989, com uma proposta essencialmente experimental. Mas já parece distante a fase inicial em que a trupe não conseguia um palco para apresentar espetáculos como Sades ou Noite com os Professores Imorais (1990) e, convidados a participar do Festival Internacional de Teatro de Expressão Ibérica (FITEI), tiveram de fazer pedágio nos semáforos e juntar dinheiro para a viagem.

» Confira entrevista com Rodolfo Vázquez, cofundador da companhia Os Satyros


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