Eram amigos, ambos filhos da alta burguesia judaica de Viena, capital do então Império Austro-Húngaro, e verdadeiro centro cultural do mundo europeu, com figuras como o músico Gustav Mahler (1860-1911), o pintor Gustav Klimt (1832-1892) e o escritor Karl Kraus (1874-1936) circulando por suas ruas. Frequentavam os mesmos bailes, restaurantes e concertos, e discutiam política, arte e literatura nos mesmos cafés. Sintomaticamente, ambos tiveram uma relação estreita com Freud (1856-1939) – que se valia da ficção como uma das fontes para suas descobertas sobre o inconsciente – e também com o poeta Rainer Maria Rilke (1875-1926) e o escritor Thomas Mann (1875-1955), além do sionista Theodor Herzl (1860-1904). O antissemitismo, aliás, é tema fundamental em seus livros, ainda que tratado de formas diferentes.
Outro tema comum e subliminar em seus escritos é o suicídio – no caso de Zweig (1881-1942), o próprio, cometido em Petrópolis ao lado de sua mulher; no caso de Schnitzler (1862-1931), o de vários parentes, incluindo a filha querida, Lili. Ambos também tiveram bastante sucesso e foram respeitados pela crítica, mas caíram em relativo esquecimento, sendo redescobertos de uns anos para cá.
No Brasil, tanto um quanto outro têm seus livros reeditados aos poucos ultimamente. De Zweig sairam a biografia de Maria Antonieta, O Mundo Insone (livro de ensaios) e Três Novelas Femininas, todos pela Zahar. A Record, por sua vez, publicou, de Schnitzler, sempre com organização e tradição do ótimo Marcelo Backes, as novelas O Tenente Gustl, monólogo interior que alguns consideraram precursor de Joyce, O Médico das Termas e o romance Caminho para a Liberdade.
Com tantas coisas em comum, os dois autores vienenses tinham estilos bem diferentes, tanto na vida como na arte, e eram separados no tempo por uma geração, o que pode ter contribuído para isso. As autobiografias mostram bem essas diferenças, inclusive no escopo. Schnitzler, quase vinte anos mais velho, escreveu Juventude em Viena entre 1915 e 1920. Seu livro trata do período imediatamente anterior à fama como escritor, que veio justamente na virada do século, com o mencionado Tenente Gustl. Ele descreve sua infância e depois a vida de médico, mas principalmente seus muitos casos amorosos e amizades, elementos que viria a utilizar em seus livros de ficção com uma profundidade psicológica que lhe valeria elogios de Freud. Mais do que o contexto histórico-político, ele se volta para a alma humana, os desejos, ciúmes e frustrações, a experiência erótica, o jogo de sedução, o arrebatamento, mas também o tédio e a melancolia. Seu olhar é crítico, mas afetivo, leve, mas com insights poderosos.
Curiosa é sua descrição do fazer médico, profissão herdada do pai alcoólatra, que envolve tratamentos de sífilis (ele menciona Moritz Kaposi, fundador da dermatologia moderna) e experiências com a hipnose (o neurologista Jean-Martin Charcot também é citado). Ele ainda menciona a depressão de uma modelo que posa para uma fotonovela erótica – foi, possivelmente, uma das primeiras vezes que o termo surgiu na literatura, como bem assinala Backes no posfácio. É provável que o próprio escritor tenha sucumbido a uma tristeza intensa, pois morreu três anos após o suicídio da filha, aos 69 anos. A literatura é mencionada de maneira mais superficial, em geral descrevendo seus primeiros esforços como poeta e dramaturgo para angariar a admiração de amantes e mulheres por quem se apaixonava. Num dado momento, no entanto, dá a chave para a origem de O Caminho para a Liberdade, sua obra ficcional mais extensa e ambiciosa.
Autobiografia: o Mundo de Ontem, por sua vez, é bem mais angustiada e ampla. Zweig colocou o ponto final no livro pouco antes de tomar a dose letal de morfina que o mataria, juntamente com a esposa Lotte. Morava no Brasil há cerca de um ano, depois de um período na Inglaterra e Estados Unidos, fugido da perseguição nazista. Sua morte deveu-se ao desgosto profundo com a humanidade, a violência da guerra e um pessimismo do qual não conseguia se desfazer, além de problemas pessoais, como a difícil convivência entre Lotte e sua primeira mulher, Frederike, que o ajudava com as memórias (sobre isso, ver Morte no Paraíso, excelente livro de Alberto Dines, que também assina prefácio e posfácio desta autobiografia).
Adorava o Brasil, a ponto de escrever um livro entusiasmado, ao qual aplicou o título que ressoa até hoje: O País do Futuro. Entusiasmo era, a despeito das depressões que teve, uma de suas marcas. Aberto, espontâneo, teve muitos amigos, dos quais fala com admiração incontida em sua autobiografia. E que amigos! Com fluidez e uma eloquência gentil, ele descreve conversas com Freud, James Joyce, Rodin, Hermann Broch e o próprio Schnitzler, a quem hospedou, certa vez, em sua casa de Salzburg. Ele mesmo foi, em sua época, o autor mais traduzido do mundo, e, possivelmente, o mais popular. Suas biografias de Erasmo, Napoleão e Balzac correram mundo, assim como suas peças, poemas, novelas e romances.
Assunto é que não lhe faltava, pois teve uma vida fascinante. Viu de perto a invasão dos alemães na Bélgica, no início da Primeira Guerra Mundial, e a derrocada do império Austro-Húngaro. Viajou pelo mundo inteiro, era um verdadeiro cosmopolita. Viveu por períodos em Veneza e Paris, e foi à Rússia conhecer de perto a Revolução, onde se encontrou com Maxim Górki. Sempre lutou, com determinação pungente, pelo pacifismo e união das nações. E se rebelou contra o racismo, além de militar pelo socialismo. Era um homem que vivia intensamente seu tempo, com todas as forças de que dispunha. E que morreu vítima da mesma intensidade com que a tudo via, da luz à sombra.
Autobiografia: o Mundo de Ontem
Stefan Zweig. Tradução de Kristina Michahelles. Prefácio e posfácio de Alberto Dines. Zahar 400 páginas
Juventude em Viena
Arthur Schnitzler. Organização e tradução de Marcelo Backes. Editora Record, 480 páginas
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