E Sinatra se fez lenda

O homem considerado a maior voz do século 20 nasceu morto. Foi o que pensaram a parteira e o médico – que veio tentar salvar sua mãe, a grandalhona Dolly Sinatra. Com o lado esquerdo do rosto rasgado, bem como o pescoço e a orelha esquerda, pelo parto a fórceps obstétrico, Frank Sinatra, com exagerados 6 kg, foi largado sobre uma pia, sangrando e roxo, e todos fixaram sua atenção à mulher que agonizava. Estava de fato morto quando uma mulher, movida pela pena e pelo instinto materno, foi dar uma olha naquela massa disforme. Pegou o menino, jogou-lhe água fria e lhe deu um tapa providencial. E um choro explodiu na sala. A história, contada para Sinatra anos depois, causou-lhe um complexo de rejeição por toda a vida. Tanto que, quando se apresentava ou interpretava papéis no cinema, estava sempre devidamente maquiado para esconder as cicatrizes do rosto. “Eles não estavam pensando em mim”, desabafou certa vez sobre seu nascimento. Mas isso foi só o começo. Uma infância de terror esperava por ele, filho único de uma mamãe obcecada em ter uma menina – a ponto de criar o garoto por anos com roupas cor de rosa e femininas.

Toda a vida de Sinatra seria um reflexo dos traumas que sofreu no convívio terrível que manteve com a mãe. Se em alguns momentos a genitora o mimava, na maior parte das vezes era violentamente reprimido quando não conseguia agradar. No bar de seus pais, ela mantinha um taco no formato de um cassetete policial e o usava para espancar o menino por qualquer motivo. Ou sem nenhum motivo. Depois o abraçava e o apertava no peito. Assim, cresceu sofrendo de uma carência infinita, de incapacidade de estar sozinho. Um impressionante retrato, bem diferente daquele homem sorridente e confiante que enfrentou uma plateia de 200 mil pessoas no Maracanã, em 1980, e cantou como nunca, aos 65 anos de idade. “Ela me deixava apavorado, eu nunca sabia se odiaria o que eu tinha feito”, ele lembrou à atriz e amiga Shirley MacLaine. Em parte, o artista teve atitudes ambivalentes em relação às mulheres por toda a vida. A elas dava um pouco do que a mãe lhe havia feito. Sexualmente, era inibido, por incrível que pareça.

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Esse Frank Sinatra dissecado assim, na abertura de Frank – A Voz, é fundamental para entender um dos ícones e mitos do século passado. Muitos livros já foram escritos sobre Sinatra, alguns excelentes, mas o calhamaço de 750 páginas de James Kaplan é daquelas obras que se têm a impressão de que o assunto foi esgotado. Além do texto saboroso, em ritmo de novela, o autor, ao mesmo tempo que narra os fatos, tenta explicá-los. Por exemplo, que a ligação de Sinatra com a máfia italiana veio de seus pais que, no boteco da família, vendiam bebida proibida fornecida por criminosos durante a lei seca. Com a mãe, ele “tinha o seu próprio modelo de máfia dentro de casa. Não é de admirar que, quando ele finalmente encontrou a coisa de verdade, sentiu um reconhecimento imediato, uma atração instantânea”, escreve o autor. “E não é de admirar que, quando conheceram Sinatra, os mafiosos de verdade sorriram e apertaram sua mão.”

Sinatra foi o primeiro grande ídolo da nascente cultura de massa americana e mundial, nos anos de 1930 e 1940, quando se popularizou nos Estados Unidos o rádio e o cinema. Foi uma mistura de talento inquestionável, cuja voz modificava qualquer música, dava-lhe paixão e sentimento, enquanto assessores de imprensa e promotores cuidavam de fazê-lo mais e mais popular, com multidões que corriam aos teatros para vê-lo cantar. Ou aos cinemas, nos papéis de personagens fora da lei ou que andavam à margem da mesma sociedade elitista etnocêntrica que comprava seus discos. Kaplan o mostra como um músico de ouvido requintado, que passava horas a estudar as letras e a buscar a melhor forma de lhe dar musicalidade. Um perfeccionismo que se completava no estúdio. Daí o apelido The Voice (A Voz), orgulho de seu país como o grande intérprete da canção americana – o que fez dele, claro, famoso em todo o planeta. Sabia também se promover. Espalhou à imprensa que, para desenvolver seus poderes de controle da respiração, nadava embaixo d’água – fato nunca provado.

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Kaplan foca sua biografia nos 40 primeiros anos de Sinatra, do nascimento em 1915 até a primeira metade dos anos 1950. O recorte não foi à toa. Nesse período, ele viveu o drama de ser preso algumas vezes, ascender como cantor e ator, cair em desgraça e renascer, em uma trajetória de contradições e ódios, a ponto dos amigos chamá-lo, em sua ausência, de “Monstro”. A história trata também das primeiras moedas que ganhava dos fregueses do bar do pai, que lhe pediam para cantar os últimos sucessos. Entre 1938 e 1939, foi preso duas vezes, uma delas por adultério. Seguiram-se casos lendários que o próprio Sinatra criou e polêmicas marcaram toda a vida. Como o tumultuado casamento com a musa do cinema Ava Gardner, que quase destruiu sua carreira – marcado por muitas traições da parte dela e paixão de sua parte. Mas predominava a vaidade. “Nada importava a ele, exceto sua carreira”, lembrou o amigo Nick Sevano. “Ele tinha um ímpeto como nunca vi em ninguém.”

Uma das passagens interessantes foram as filmagens em 1953 de A Um Passo da Eternidade, de Fred Zinnemann, quando Sinatra soube agarrar a chance para reerguer sua carreira. Ele lutou muito pelo papel – nessa época ele se apresentava de modo decadente em boates. Temeu a concorrência de grandes astros. Famoso por ser uma prima donna nas gravações dos filmes que fez, o cantor dessa vez “foi muito bom, muito bom o tempo todo”, segundo o diretor. “Nada de histrionismo, nada de mau comportamento”. Era o que não se esperava dele. Na tela, o cantor-ator roubou a cena, nesse clássico estrelado por Burt Lancaster e Montgomery Clift. Ele não só levou um Oscar por sua interpretação, como fez Hollywood se render a ele, numa das mais famosas viradas de mesa de um astro em declínio de sua história. Começava, assim, a nascer a lenda, finalmente. E uma lenda nunca morre.


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